quinta-feira, 21 de julho de 2022

Donzela Teodora, entre a beleza e a inteligência (2)



Na História da donzela Teodora, a arrogância apresentada pelo terceiro sábio para abrir a discussão contrasta com o aspecto da jovem, cujos movimentos e gestos o leitor acompanha pela voz do narrador - “levantou-se a donzela e lhe respondeu humildemente com muita vergonha”. Esta serenidade evidenciará o conteúdo do desafio que Teodora pensara, percebendo o leitor que a parada elevada implicará que o jogo das emoções tome conta da situação ou que o novo desafio intensifique a curiosidade do leitor.

Perante o auditório das testemunhas, a donzela respondeu ao sábio Abraão: “Pois já que vós dizeis serdes tão sábio, peço-vos que me façais o que vos quero dizer e é que assentemos em uma conveniência entre nós ambos, em presença de el Rei meu Senhor e de todos os cavaleiros (...) e será desta sorte: Que se vós me vencerdes a mim, logo no mesmo instante me desvestirei e despojarei de todas as minhas roupas, até a camisa, de maneira que fique nua como a hora em que nasci e será tudo para vós; e se porventura eu vos vencer também haveis de fazer o mesmo e me haveis de dar todos os vossos vestidos e haveis de ficar também nu como na hora em que nascestes.” O sábio concordou, porque “cuidava a havia de aniquilar e envergonhar” e ali foi autorizado o acordo e registado. A aposta era forte, pois, além da exposição da nudez absoluta do vencido, este também tinha de entregar as suas vestes ao vencedor.

As perguntas e as respostas surgem em ritmo rápido, em discurso directo entre as duas personagens, quase sem que o narrador se faça ouvir, se exceptuarmos as pequenas frases em torno dos verbos declarativos, para que o leitor não se perca. Questões sobre costumes sociais, valores morais, ciência, religião, pormenores e generalidades, em jeito de adivinhas ou de máximas, sucedem-se por várias páginas, sempre com resposta pronta, mesmo em momentos que parecem rasteiras intencionais à inquirida, como quando é questionado “que faz o sol de noite”, explicando Teodora que “o sol não tem noite, antes sempre alumia, ora em umas partes ora em outras do mundo”.

Após as cerca de sessenta perguntas e respectivas respostas, o terceiro sábio rende-se, aconselhando o rei a fazer “grandes mercês e honras” à jovem. Contudo, Teodora queria mais do que isso e, assim, cumprimentou o rei e disse-lhe: “Sirva-se V. Alteza de mandar a este sábio que logo sem mais demora em vossa presença e de todos estes senhores e discretos varões tire os seus panos e mos entregue.” O sábio despe-se até ficar coberto apenas “os panos interiores, para não ficar descomposto”, reclamando Teodora o cumprimento do acordado. Sem outra solução, o sábio “pôs-se de joelhos diante dela e, pegando-lhe nas mãos, lhas beijou, deitou-se a seus pés, querendo beijar-lhos, pedindo encarecidamente que não lhe fizesse passar tão grande vergonha diante de El-Rei e tão nobres cavaleiros”, prometendo-lhe “duas mil dobras” de compensação, solução aceite pela jovem.

Resolvido o desafio que Teodora comandara, faltava ainda fechar o negócio com o rei. Impressionado, Almansor “disse à donzela que pedisse, que lhe faria toda a mercê que quisesse”. Adivinha-se um final feliz para duas personagens: “Ela lhe beijou as mãos e pediu-lhe por mercê que a deixasse tornar com o seu mercador”, que considerasse a venda proposta sem efeito, pois tudo o que era devia-o ao seu protector. O rei ficou pesaroso, mas “não se pôde desdizer”. Era o acentuar do valor da palavra dada, forma de ser exemplo para os súbditos.

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 893, 2022-07-20, p. 9


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