domingo, 18 de outubro de 2020

Papa Francisco: a vida como “arte do encontro”

 

 

“Entre as causas mais importantes da crise do mundo moderno, contam-se uma consciência humana anestesiada e o afastamento dos valores religiosos, bem como o predomínio do individualismo e das filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes.” A citação provém de documento assinado em Abu Dhabi em 4 de Fevereiro de 2019 pelo Papa Francisco e pelo Imã Ahmad Al-Tayyeb, e surge incluída quase no final da nova encíclica, Fratelli Tutti (Paulinas Editora, 2020), subscrita pelo Papa Francisco em Assis, junto do túmulo do fundador dos Franciscanos, em 3 de Outubro.

O subtítulo, “Sobre a fraternidade e a amizade social”, esclarece o conteúdo e o espírito da frase franciscana que titula a comunicação, “Todos irmãos”, e o facto de, nos oito capítulos que a compõem, várias serem as referências ao encontro de Abu Dhabi bem prova o desafio dessa “amizade social” indispensável para a aproximação das culturas e das religiões, em favor de uma humanidade outra. Este discurso refere numerosos documentos já divulgados por este e anteriores papados, forma de chamar a atenção para a pertinência que a questão assume cada vez mais e de lembrar que os princípios aqui defendidos já têm sido comunicados ao mundo.

Se dúvidas houvesse sobre a relevância desta mensagem, bastaria pensarmos no que a nível mundial se tem passado quanto à pandemia, aspecto acentuado logo no início: “Quando estava a redigir esta carta, irrompeu de forma inesperada a pandemia da Covid-19, que deixou a descoberto as nossas falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto.” Ora, esta dispersão num assunto de saúde pública a nível universal deveria constituir uma lição para todos e espoletar “um anseio mundial de fraternidade”.

Usando a primeira pessoa do singular, o Papa torna-se mais próximo de cada um dos leitores, desafiando-o a pensar com ele e a sentir a co-responsabilização na mudança, porque todos temos vindo a ser co-responsáveis no acontecido: a globalização que nos torna mais sozinhos, o mercado que nos domina, a perda do sentido de vizinhança, a colonização cultural, a política dependente do “marketing”, o racismo (um “vírus”) assumido ou dissimulado, os direitos humanos muito pouco universais, a desigualdade de direitos entre homens e mulheres, a cedência ao poder das tecnologias, o fascínio do virtual, a guerra que “deixa o mundo pior do que o encontrou”... num “mundo que corre sem um rumo comum”, desencontrando-se da realidade, não assumindo as migrações, destruindo a auto-estima, aniquilando a esperança.

A parábola do “bom samaritano” do evangelho de Lucas é mote, desafiando para um olhar sobre a realidade, incentivando a que não se passe ao lado, se preste atenção ao próximo, se olhe para o sofrimento, a que sejamos agentes da dignidade. O desafio provoca o nosso estatuto - “dar-se conta de quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer circunstância.”

Citando Vinicius de Moraes, o Papa defende a vida como “arte do encontro”, obrigando-nos a pensar, a sermos criteriosos nas escolhas que fazemos e nos governantes que elegemos, a tornarmo-nos agentes do bem. Esta missiva não é só para uma facção, é ecuménica, é para todos (governantes e “media” incluídos), serve para todas as confissões. A questão é querer-se que o mundo seja outra coisa, um espaço onde mais sintamos a humanidade que temos de ajudar a construir.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 485, 2020-10-14, pg. 10.


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