Entre 1957 e 1959, António Martinho do Rosário (1920-1980), escalabitano, exercia nas campanhas de pesca do bacalhau como médico de frota, servindo o arrastão “David Melgueiro” (1957), o navio de pesca “Senhora do Mar” (1958) e o navio-hospital “Gil Eannes” (1959). Esta função levou-o a transformar em literatura o vivido e o sentido, sob o pseudónimo de Bernardo Santareno, retratando os marítimos num conjunto de crónicas no título Nos Mares do Fim do Mundo (1959, reeditado em 2016), a que associou ainda uma peça de teatro, também de 1959, O Lugre.
Nos Mares do Fim do Mundo, misturando a distância geográfica e o sofrimento, assume-se o resultado de “doze meses com os pescadores bacalhoeiros portugueses, por bancos da Terra Nova e da Gronelândia”, texto que “foi, em grande parte, escrito a bordo”.
Alguns capítulos assumem uma escrita diarística, relacionada com pequenos acontecimentos, momentos de reflexão, descrição de personagens ou relato de momentos fortes da companha, com a cor da dureza, do sofrimento, das angústias. A emoção corre atrás das relações sociais, ora tensas ora amistosas; vive nas histórias pessoais, muitas vezes confidenciadas ao médico; perde-se na contemplação do mar, esteja calmo ou insultuoso; naufraga atrás das fragilidades humanas com o homem que cai ao mar... Para intensificar essa emoção, predomina a frase curta, muitas vezes eivada de reticências e de exclamações, aqui e ali com o discurso directo dos falares dos pescadores, frequentemente mediada pelo pulsar do próprio narrador.
A figura da mulher perpassa ao longo da obra, associada à viuvez real ou à viuvez trazida pela solidão e pela ausência, dominando o penúltimo capítulo, estampada na imagem da esposa, da filha ou da noiva, apresentada como símbolo de companhia, pilar forte para a família e para a manutenção da casa enquanto a campanha dura, mas também com fragilidades como a doença ou o adultério.
Pela experiência do médico Martinho do Rosário (cujo centenário de nascimento ocorre em 2020) passou uma figura ligada às terras do Sado, alcunhado “Setúbal”. Mais do que saber quem motivou este texto, é importante o caso humano: uma década antes, numa briga em que não faltara o vinho, o “Setúbal”, sentindo-se ofendido e agredido (navalhada no pescoço), cravou uma faca no peito do adversário, que morreu. Preso, passados meses foi absolvido e ingressou na pesca do bacalhau - “Por cá anda, simiesco, duma fealdade quasimodeana, o fígado e o rosto moídos em álcool, uma palavra brejeira sempre nos lábios... Coitado do ‘Setúbal’! Com mais de quarenta anos que já tem, ainda trabalha como moço, ao lado de rapazitos com dezassete ou dezoito que, sem quebras, o apupam: ‘Ó Setúbal, queres um bagaço? Atão salta, faz mais uma cambalhota!...’” É este gesto solidário de desprezo e gozo que os outros sentem pelo “Setúbal" que indigna o narrador: “A minha vontade era chicoteá-los, duro e forte, até ver correr sangue!”
Bernardo Santareno leva até ao âmago a noção do sofrimento e da dor, não só trazidos pelas condições de risco e de dureza vividas, mas também pela irracionalidade com que o homem muitas vezes irriga a maldade, chegando a ser ele mesmo o actor (e o autor) do desprezo e da destruição de si mesmo, quando se impunha que interviesse em prol do bem-estar da companha e contra a solidão, aquele “poço-vertigem, aberto no centro da alma”.
Um livro intenso, a (re)ler, também pelo que ele representa para um tempo importante do que foi a actividade pesqueira portuguesa!
J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 471, 2020-09-23, pg. 2.
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