sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Maria Cecília Correia: a felicidade pela escrita



Na revista Mulher - Modas e Bordados de 30 de Julho de 1975, Maria Cecília Correia (1919-1993) justificava “Porque escrevo para crianças”. A crónica relacionava-se com a escrita destinada ao público infanto-juvenil, por que a autora era mais conhecida, sobretudo a partir de 1953, ano do seu primeiro livro, Histórias da minha rua, ilustrado por Maria Keil.

Atribuindo uma parte da responsabilidade de ser escritora a “um dos poucos sobreviventes do Orpheu”, que se sabe ter sido o açoriano Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971), confessa, quase no início do texto: “Escrever foi, para mim, sempre um prazer. Escrever-Comunicar. Falar para.” Se podemos ver este deleite nas pequenas narrativas que corporizam o livro de 1953 (por onde passam as plantas, os animais, as pessoas e a simplicidade da vida), não é menos verdade que esse “prazer” ressalta também em Pretérito Presente, publicado em 1976 (reeditado em 2019 pelo Grupo de Estudos Maria Cecília Correia, aquando da passagem do centenário de nascimento), que não tem como destinatário o público infantil.

De textos curtos, nele aparecem fragmentos de diário, retalhos de memórias, cartas, poemas, pequenas narrativas da vida, num enredo que entrelaça vivências, espaços, família e a própria narradora. Pretérito Presente é, aliás, um título que nos sugere essa mistura de momentos, encontrando-se o passado e o presente através da escrita. As histórias fazem-se a partir de coisas simples (um botão esquecido pode ser um pretexto), de passeios a pé, de viagens, de recordações familiares, de cenas presenciadas, de imaginação. O prazer da escrita surge em cada momento, sublinhado na notação dos sentidos - pelo tacto inebriante (“o vento ali era um companheiro agradável e os cabelos entraram logo no jogo, bailando com os empurrões”), pelos aromas recebidos (“este cheiro das ervas da Arrábida penetra-me como a saudade dos que comigo andaram e já aqui se não encontram”), pelo sabor apetecido (“espremo laranjas no velho cone de vidro, rodando, rodando, apertando as mãos, chupando o que fica”), pela musicalidade da natureza (“ouço o riso dos regatos”), pela emergência da visão (“como eu tenho fome de ver camélias na árvore!”).

A Arrábida marca presença na obra (Maria Cecília Correia adquiriu quinta em Azeitão em 1964, aí construindo casa de férias), ancoradouro feliz, tela de plantas variegadas (“paredes cobertas de folhas verdes, murta, alecrim, folhado”), ponto de partida para outras incursões - praia de Galapos, mercado de Setúbal, feira de Pinhal Novo, festa de Palmela, por exemplo - e charneira com o mundo dos outros - como foi o momento de fascínio quando ouviu o coveiro de Azeitão dizer, em frente da campa de Sebastião da Gama, “quero levar para minha casa uma poda da roseira do nosso Sebastiãozinho”.

A escrita de Maria Cecília Correia rejeita o esquecimento e valoriza uma vida com a Natureza. Só assim se compreende o desabafo que faz à sua amiga Maria Eulália de Macedo: “Pois o que é o envelhecer? Pensar que um dia tudo me pode ser indiferente! Que os cheiros não serão uma parte do amor, que o Vento me será aborrecido, que o Sol será sinónimo de espirros! Que coisa mais triste! Enquanto o meu corpo e qualquer parte da Terra formos um, a coisa não está mal.”

Um livro em que correm a sensibilidade e a beleza das coisas simples, numa escrita que é ponto de encontro com a felicidade.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 491, 2020-10-22, pg. 2.


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