sexta-feira, 3 de julho de 2020

Olga de Moraes Sarmento - Vida feita memória



“Nem só as pessoas que foram ou se julgaram importantes podem escrever as suas Memórias. Podem escrevê-las também - e eu diria até que devem escrevê-las - aquelas que com todo o seu coração amaram a vida, a observaram com intensidade, lhe deram grandes momentos de formosura ou de tristeza. Além disso, segundo tudo indica, vivemos uma hora de transições profundas. Amo demais a beleza para descrer dela - e estou certa de que hoje, amanhã, depois, a vida humana em suas evoluções conservará a beleza, ou a ela voltará.” Assim abre o prefácio do seu livro As minhas memórias (Lisboa: Portugália Editora, 1948) a setubalense Olga de Moraes Sarmento (1881-1948), aí denotando duas questões desde logo importantes - o memorialismo como escrita de uma vida intensamente sentida e como forma de recuperação dos aspectos belos da vida, convindo não esquecer que esta obra foi redigida a partir de Outubro de 1942 (até Janeiro de 1948), vivia a autora nos Estados Unidos, ali exilada por causa do que era a dominação nazi na Europa, particularmente em França, onde Olga de Moraes Sarmento vivera antes (acompanhando a sua amiga Hélène de Zuylen, do ramo Rothschild, na fuga da perseguição nazi).

Nestas memórias, a escritora setubalense conta todo o seu percurso, desde as “recordações dolorosas” da infância (a severidade do pai; o cordeiro de que ela gostava como seu “assassinado para o jantar”, gesto que a levou a chorar “niagaras de lágrimas”; o fascínio sentido pelo avô materno, liberal e amigo de D. Luís, figura marcante na sua personalidade; a indignação sentida quando viu o tio a chicotear uma criada negra) à viuvez a que chegou aos 23 anos (e que manteve até ao final dos seus dias) e ao ambiente de salão e de tertúlia de que se fez grande parte da sua vida, animada por conferências e pela intervenção cultural e cívica.

Nascida em Setúbal, foi Olga de Moraes Sarmento aos quatro meses viver para Elvas na sequência de uma colocação do pai, militar. Por influências familiares e sociais, a sua adesão à monarquia sempre a acompanhou, uma das razões por que passou a viver em França após a implantação do regime republicano em Portugal. Desde aí, correu mundo a fazer conferências. As suas casas em Portugal, em França (em Paris ou em Hendaia) ou nos Estados Unidos sempre albergaram o escol cultural da época e, assim, conviveu com os nomes mais representativos da música, da literatura, da pintura e da política dos vários países por onde passou, fazendo amizade com muitos deles.

Episódios intensos deste volume de memórias são vários, podendo-se destacar: o momento em que, em 1919, assistiu ao desfile da vitória dos aliados em Paris; o discurso feito em Setúbal aquando da oferta ao município de parte dos bens que tinha na casa de Paris (“desenhos de Delacroix e Columbano, autógrafos de Goethe, desenhos de Victor Hugo e inúmeras outras” recordações, biblioteca incluída), decisão tomada em 1938, quando viu que a Europa ia ser dominada pela pilhagem; o momento em que, nos Estados Unidos, participou no entusiasmo pelo fim da Segunda Guerra.

“Tempo passato, tempo amato” foi o subtítulo escolhido para este volume de memórias, nele reflectindo o propósito essencial: evocar o passado, sobretudo nos seus momentos felizes, e assumi-lo. Apesar de alguns momentos de crítica social e política, este registo alinha sobretudo na recordação dos momentos de felicidade e de alegria, de convívio e empenho social, percurso pontuado pelos acontecimentos históricos que selaram os 67 anos da autora.

* "500 Palavras". O Setubalense: nº 426, 2020-07-01, p. 12.

Sem comentários: