Que Arrábida? “Lera que os sobreiros tinham desaparecido do sul de Portugal, e que a Serra da Arrábida, ali bem próxima, era uma corcova estéril, branca como um osso de milenar sepultura.” Que Arrábida, outra vez? “Sabes o que aconteceu à Serra e ao Parque Natural da Arrábida?”, pergunta Mafalda, informando logo a seguir que “a indústria do cimento a consumiu, os diques são vorazes.” Que diques? É ainda a mesma personagem que esclarece Ricardo, o irmão: “Defendem Lisboa, Setúbal, Aveiro, Faro, centenas de quilómetros de muralhas, das águas do mar.” Que natureza? Ricardo circulava em Lisboa, olhava as diferenças na comparação dos tempos e “reparava, agora, que as árvores colocadas ao longo da avenida eram de plástico, quase tão perfeitas como as originais.”
Os cenários e as personagens são do ano 2050 e saltam de Ponte Pequim sobre o Tejo (Lisboa: Gradiva, 2020), o quarto romance que António Oliveira e Castro, radicado em Setúbal, assina. Uma narrativa para um ambiente hipotético, mas plausível, dentro de três décadas, num mundo dominado pelas máquinas e pelas tecnologias, resultado do deslumbramento humano, repleto de artificialismos, centrado num eixo entre Xangai e o Tejo - e o leitor pode observar, ao lado da velhinha ponte 25 de Abril, a fulgurante ponte Pequim ligando as duas margens do mesmo rio...
A trama circula pelos encontros e desencontros de uma família, com história de quatro gerações: a de Curibeca (velho sonhador cheio de segredos de um saber único, sempre presente na memória dos dois netos, apesar de a história não se passar no seu tempo), a de Leónidas e Águeda (desaparecidos, julgados mortos, a recusarem o novo mundo), a de Ricardo e Mafalda (irmãos, ele a viver em Xangai, próspero no seu ducentésimo andar, ela a viver em Lisboa, ligada a um “Carocha” desactualizado, crítica) e a de Belchyor (jovem, combatente no exército chinês). É com este último que a narrativa abre e encerra, quase simulando a esperança nas mudanças (sejam elas quais forem) e o desespero pela desumanidade a que se chega. Mas são os irmãos Mafalda e Ricardo, netos de Curibeca, quem mais povoa as páginas destes dez dias, falando cada qual de si, em jeito de diálogo, dando ideia do que pensa do outro, em forma de apartes.
O leitor familiariza-se com os dois irmãos, com um narrador cúmplice que não quer desiludir e se vai mostrando discretamente, em busca “de um mundo naufragado”, enquanto as personagens procuram as suas origens, se revêem nos aromas, sabores e aprendizagens da infância, embora num tempo que não permite a reversibilidade.
Percebe o leitor que a história caminha para o apocalipse e que Lisboa, a “Xangai da Europa”, é, nesse 2050, a cidade “de tralha, de lixo”, que “perdera a sua identidade”, pintada pelo pó vindo do deserto. Entre as obras premonitórias (recordamos Orwell ou Huxley), pode ser inserida esta Ponte Pequim sobre o Tejo, que se coroa com o cataclismo - como em 1755, o perigo chega pela água: um iceberg encostado a Lisboa culmina a destruição, impedindo que as personagens se encontrem, que os laços se restabeleçam, que o mundo e a vida se recomponham. É de agonia este retrato em que nem se sabe quem ficará para ter memória, ganhando crédito a frase várias vezes repetida: “Tudo o que o olho não consegue observar, a mente imagina a dobrar.”
Uma obra a justificar a leitura: pelo enredo narrativo, pela criatividade na construção das personagens, pelo aviso que a literatura pode ser.
* "500 Palavras". O Setubalense: nº 421, 2020-06-23, p. 11.
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