quinta-feira, 25 de junho de 2020

António Oliveira e Castro: Narrar o apocalipse



Que Arrábida? “Lera que os sobreiros tinham desaparecido do sul de Portugal, e que a Serra da Arrábida, ali bem próxima, era uma corcova estéril, branca como um osso de milenar sepultura.” Que Arrábida, outra vez? “Sabes o que aconteceu à Serra e ao Parque Natural da Arrábida?”, pergunta Mafalda, informando logo a seguir que “a indústria do cimento a consumiu, os diques são vorazes.” Que diques? É ainda a mesma personagem que esclarece Ricardo, o irmão: “Defendem Lisboa, Setúbal, Aveiro, Faro, centenas de quilómetros de muralhas, das águas do mar.” Que natureza? Ricardo circulava em Lisboa, olhava as diferenças na comparação dos tempos e “reparava, agora, que as árvores colocadas ao longo da avenida eram de plástico, quase tão perfeitas como as originais.”

Os cenários e as personagens são do ano 2050 e saltam de Ponte Pequim sobre o Tejo (Lisboa: Gradiva, 2020), o quarto romance que António Oliveira e Castro, radicado em Setúbal, assina. Uma narrativa para um ambiente hipotético, mas plausível, dentro de três décadas, num mundo dominado pelas máquinas e pelas tecnologias, resultado do deslumbramento humano, repleto de artificialismos, centrado num eixo entre Xangai e o Tejo - e o leitor pode observar, ao lado da velhinha ponte 25 de Abril, a fulgurante ponte Pequim ligando as duas margens do mesmo rio...

A trama circula pelos encontros e desencontros de uma família, com história de quatro gerações: a de Curibeca (velho sonhador cheio de segredos de um saber único, sempre presente na memória dos dois netos, apesar de a história não se passar no seu tempo), a de Leónidas e Águeda (desaparecidos, julgados mortos, a recusarem o novo mundo), a de Ricardo e Mafalda (irmãos, ele a viver em Xangai, próspero no seu ducentésimo andar, ela a viver em Lisboa, ligada a um “Carocha” desactualizado, crítica) e a de Belchyor (jovem, combatente no exército chinês). É com este último que a narrativa abre e encerra, quase simulando a esperança nas mudanças (sejam elas quais forem) e o desespero pela desumanidade a que se chega. Mas são os irmãos Mafalda e Ricardo, netos de Curibeca, quem mais povoa as páginas destes dez dias, falando cada qual de si, em jeito de diálogo, dando ideia do que pensa do outro, em forma de apartes.

O leitor familiariza-se com os dois irmãos, com um narrador cúmplice que não quer desiludir e se vai mostrando discretamente, em busca “de um mundo naufragado”, enquanto as personagens procuram as suas origens, se revêem nos aromas, sabores e aprendizagens da infância, embora num tempo que não permite a reversibilidade.

Percebe o leitor que a história caminha para o apocalipse e que Lisboa, a “Xangai da Europa”, é, nesse 2050, a cidade “de tralha, de lixo”, que “perdera a sua identidade”, pintada pelo pó vindo do deserto. Entre as obras premonitórias (recordamos Orwell ou Huxley), pode ser inserida esta Ponte Pequim sobre o Tejo, que se coroa com o cataclismo - como em 1755, o perigo chega pela água: um iceberg encostado a Lisboa culmina a destruição, impedindo que as personagens se encontrem, que os laços se restabeleçam, que o mundo e a vida se recomponham. É de agonia este retrato em que nem se sabe quem ficará para ter memória, ganhando crédito a frase várias vezes repetida: “Tudo o que o olho não consegue observar, a mente imagina a dobrar.”

Uma obra a justificar a leitura: pelo enredo narrativo, pela criatividade na construção das personagens, pelo aviso que a literatura pode ser.

* "500 Palavras". O Setubalense: nº 421, 2020-06-23, p. 11.


quinta-feira, 18 de junho de 2020

Bocage biografado por Daniel Pires



Entre os acontecimentos culturais ligados a Setúbal em 2020 ficará, sem dúvida, a edição da obra Bocage ou o Elogio da Inquietude, assinada por Daniel Pires (Lisboa: Imprensa Nacional), que, apesar de ter o ano passado como data de publicação, só surgiu para o público recentemente, em Maio.

Ao longo de vinte capítulos, entra o leitor nos meandros da vida do mais conhecido poeta setubalense, Bocage (1765-1805), que, no mundo das academias setecentistas, ficou conhecido por Elmano Sadino (conjugando o anagrama do seu primeiro nome, Manuel, e a referência toponímica à sua origem). Esse percurso nem sempre foi de reconstrução fácil, avisando Daniel Pires, em várias ocasiões, ser necessário “recorrer ao campo das hipóteses” para acompanhar o poeta em diversas épocas da sua vida, devido à falta de documentos ou à ausência de referências. Contudo, nesses momentos, o biógrafo informa o leitor sobre a explicação hipotética, avançando com elementos que sustentam a sua interpretação, tornando-se, assim, autor e leitor cúmplices nesta visitação a Bocage e ao seu tempo.

Apesar de o adjectivo gentílico ter sido integrado pelo poeta no seu nome da academia, as referências a Setúbal são escassas na obra bocagiana, parecendo que levou à letra o seu verso “Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado” com que abre um soneto, publicado no primeiro tomo das Rimas, em 1791. Informa Daniel Pires que, a partir do momento em que, em 1783, foi transferido para a Academia dos Guardas-Marinhas, “a sua partida de Setúbal foi quase definitiva”, pois “só terá estado na sua terra natal em 1790, na sequência do seu regresso do Oriente, e, em 1802, quando o pai faleceu.” As causas deste afastamento poderão ser várias, mas não serão estranhas a tal “inquietude” que caracterizou a sua vida, o facto de o pai ter caído em desgraça por um crime não provado e, sobretudo, o desgosto amoroso resultante do casamento de seu irmão com a jovem que o vate amava (Gertrúria, nas referências poéticas, filha do governador do Outão).

Da experiência do poeta no seu percurso de quarenta anos salvou-se a escrita, que lhe trouxe o reconhecimento, ainda sentido em vida: “no início do século XIX, Bocage usufruía de um estatuto literário elevado”, testado nas republicações e no valor que os contemporâneos lhe atribuíram - “o estilo genuíno, a autenticidade, o apuro formal, a capacidade de improvisação e a forma peculiar como dizia os poemas despertavam inequívoca admiração”. Bem interessante é a incursão que o biógrafo faz pela vida editorial do tempo do poeta, assim como pelo historial das edições sucessivas dos poemas de um autor que, apesar do valor que lhe era atribuído, terminou, “para cúmulo, sem túmulo” (título do derradeiro capítulo da obra, algo prenunciador de outros nem sempre simpáticos tratos).

O ritmo das ideias, das viagens, das contendas, dos desgostos, das descrenças, das polémicas, da miséria, da prisão e da falta de saúde, e a qualidade literária sempre acompanharam Bocage, apresentando Daniel Pires contextualizações sobre cada um dos tempos ou cada um dos problemas que enformaram o percurso do poeta (ambientes, regras, costumes, hábitos, em Portugal, no Brasil ou no Oriente) com uma eficácia informativa e uma abrangência plural que guiam o leitor, aliando ainda alguns textos bocagianos a certos momentos biográficos, sem que esta colagem se sobreponha ao reconhecimento literário dos mesmos.

Tratando-se de uma obra de leitura acessível, fortemente alicerçada na investigação (muitos documentos são divulgados pela primeira vez), bom seria que ela constituísse também um alerta para que Bocage reocupasse o lugar que merece nos estudos de literatura e cultura portuguesa do ensino secundário, mesmo por uma questão de cidadania!

* "500 Palavras". O Setubalense: nº 416, 2020-06-17, p. 10.


sábado, 6 de junho de 2020

Luís Amaro - Testemunhos para a amizade



Em 9 de Novembro de 2008, em Massamá, Luís Amaro (1923-2018) escreveu quatro dedicatórias em outros tantos livros que Sebastião da Gama lhe tinha dedicado - Serra-Mãe, Cabo da Boa Esperança, A Região dos Três Castelos e Campo Aberto. As mensagens apresentam idêntico teor, com algumas variações, aqui se transcrevendo a que foi exarada no primeiro dos livros: “À Biblioteca do Museu Sebastião da Gama, em Vila Nogueira de Azeitão, terra natal do Poeta e onde este livro - peça bibliográfica única, porque com dedicatória do querido e inesquecível autor! - ficará mais resguardado, como relíquia que é, oferece comovidamente o Luís Amaro - Homenagem também a Joana Luísa da Gama, Companheira do Sebastião”.
O Museu Sebastião da Gama ficava, assim, com a posse de quatro obras autenticadas com as assinaturas de Sebastião da Gama e de Luís Amaro, dois pólos de uma relação intensa construída sobre a poesia e a amizade, que tivera início em 1945, era Luís Amaro funcionário da Livraria Portugal, em Lisboa.
Ao longo da sua vida, o aljustrelense Luís Amaro foi autor de apenas um livro de poemas, cuja primeira edição saiu em 1949, Dádiva, que reapareceria em reedições de 1975, 2006 e 2011, assumindo um título diferente, Diário Íntimo, a que, em 1975 e em 2011, foi acrescido o subtítulo “Dádiva e Outros Poemas”. Uma interpretação rápida dos títulos permite dizer muito daquilo que Luís Amaro foi como pessoa - muito reservado, mas sempre disponível para oferecer o seu contributo aos outros.
A propósito dos seus 80 anos, um grupo de amigos preparou-lhe uma surpresa - a edição de Para lá da névoa - Homenagem a Luís Amaro (Edições Caixotim, 2005), em que testemunharam 16 autores, rol que integrou dois setubalenses, António Osório e Daniel Pires. Em 2020, novo projecto nos vem lembrar o poeta e bibliófilo alentejano através da obra Evocar Luís Amaro (Cosmorama Edições), coordenada por António Cândido Franco, António José Queiroz, Francisca Bicho e Paulo Samuel e reunindo depoimentos de 19 amigos, incluindo Daniel Pires. A linha que perpassa por todos os testemunhos é a da generosidade do homenageado, autodidacta que sempre abriu portas a quem o procurava, epistológrafo genial, já que a maioria das informações que partilhava seguia através de cartas cheias de anotações, apontamentos, referências. No retrato que a sobrinha Maria Dulce P. Amaro lhe traça, é dito: “O seu percurso não teve nada de fortuito, nem de milagroso. Era um perfeccionista, trabalhou arduamente para atingir a excelência, colocando em segundo plano a sua vida pessoal, que de um modo ‘envergonhado’ frequentemente escondia.”
Por finais de 1990, numa deslocação a Monsaraz com alunos, vi um grupo de três pessoas, parecendo-me ser uma delas o Luís Amaro. Nunca lhe tinha falado, mas conhecia-o de uma fotografia publicada algures e sabia de muita da sua acção em prol da literatura portuguesa. Fui ter com ele, apresentei-me e saudei-o. “Mas como reconheceu que sou o Luís Amaro se nem apareço por aí nos meios?” Lá lhe contei a minha história e os meus afectos literários, por onde passavam alguns amigos dele. Ficámos amigos. As cartas que dele conservo são lições sobre livros, achegas para investigações que me têm envolvido, provas de amizade inexcedível, em duas delas evocando esse encontro alentejano. Subscrevo aquilo que Daniel Pires regista no testemunho deste livro de 2020, chamando a generosidade e a disponibilidade de Luís Amaro para traços maiores. Foi também isso que senti, essa permanente dádiva, de que fui um dos privilegiados.
* "500 Palavras". O Setubalense: nº 410, 2020-06-05, p. 17.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Maria Adelaide Rosado Pinto: Sons de Setúbal



O nome de Maria Adelaide Rosado Pinto (1913-1997) está ligado a Setúbal, não só porque aqui nasceu, mas sobretudo pela obra ímpar que, na área da música, promoveu como estudiosa, professora, autora, fundadora de instituições, divulgadora da arte. O seu trajecto veio, aliás, dar continuidade ao de seu pai, Celestino Rosado Pinto (1872-1963), também ele setubalense, com uma carreira invulgar de regente, intérprete e compositor.
A continuidade da obra de um na obra do outro torna-se visível no livro Toadas, cantares e danças de Setúbal e sua região - Factos e tradições, assinado por Maria Adelaide Rosado Pinto (Setúbal: Junta Distrital de Setúbal, 1971), que se apoiou, em grande parte, na recolha musical e etnográfica levada a cabo por seu pai, obra que continua a ser hoje um elemento importante, aliando a arte musical a marcas identitárias da região sadina em várias manifestações da cultura local.
O primeiro grupo da recolha incide sobre as canções ligadas ao rio, ambiente de pescadores e de salineiros que, com “os seus ritmos de puxar redes e mover remos, as suas frases típicas, as suas toadas, cantilenas e danças mais ou menos alegres ou nostálgicas, características da beira-mar, davam a estas margens um pitoresco e caprichoso colorido”. Dos pescadores de Troino, ouvidos “mar fora, entoando os seus cantares durante a agitada labuta marítima”, conhece o leitor composições como “Barca velha” (1885), “Toada da beira-mar” (1889) e “Cantilena do mar” (1894), esta com a nota de ter sido “recolhida numa noite passada num barco de pesca fora da barra de Setúbal”. Do lado das Fontainhas, zona mais festiva, pode-se encontrar “Trova do mar” (1905), “Vira vira” e “Vira do Sul” (1918) e “Descante” (1919). Passa por este conjunto de cantigas a vida do mar, o amor, a festa, o galanteio, o ritmo da vida.
Um outro conjunto regista cantares de cunho religioso, como as loas do Círio de Setúbal da festa de Nossa Senhora da Arrábida na versão de 1853, um cântico dedicado à Senhora do Cabo (1865), os cantares à Nossa Senhora do Cais (1927 e 1928) e prece e agradecimento ao Senhor do Bonfim (1836), manifestações dominadas pelo pedido de auxílio nas mais variadas situações e pelo agradecimento.
O terceiro tema assenta sobre festas tradicionais da região, ligadas aos santos populares ou a momentos peculiares do ano (desfolhadas, Natal), composições muitas vezes construídas para envolverem a dança, retratando trabalhos, momentos de festa, relações entre as pessoas, formas de viver.
Os textos poéticos, sempre acompanhados da respectiva partitura musical, surgem agrupados tematicamente, depois de curto texto introdutório de contextualização, muitas vezes expandindo um sentido de deslumbramento perante os quadros populares. Ao longo do livro, vai o leitor sendo contemplado com algumas fotografias locais devidas a Américo Ribeiro, havendo ainda espaço para a descrição de trajos regionais por onde passam o descarregador de peixe, o marítimo, a peixeira, o pescador, a varina, a rapariga das ostras, a vendedeira de melancias, o leiteiro, a saloia, figuras desenhadas pelo traço de Inês Guerreiro.
Tão notório é o propósito pedagógico que acompanha esta obra, manifestado na intenção de dar a conhecer aos leitores a origem das danças e cantares que enfeitam as manifestações religiosas, festivas e de trabalho, que a sua leitura se torna fácil, esclarecedora e apetecível.
* "500 Palavras".  O Setubalense: nº 403, 2020-05-27, pg. 8.