Diana é professora, autora e narradora de umas páginas
de diário durante uma manhã, no tempo que medeia entre a presença num funeral (da mãe de uma aluna, que
ligava mais às drogas e ao álcool do que à filha) e o início das aulas que nesse dia tem de leccionar.
Diana é professora e aproveita esse tempo que antecede
as aulas para se pôr em dia, reflectindo a profissão a partir de uma notícia
televisiva que transmite uma manifestação de professores, alunos e pais ligados
ao ensino particular.
Diana é professora e passeia-se pela forma de encarar
a escola e a sua acção, pela recordação de coisas lidas e ouvidas, pela
mensagem veiculada pelo seu mestre, companheiro ausente mas com um legado de ensinamentos
e reflexões que o torna presente, pela tentativa de posicionamento entre a sua
prática, os alunos e as políticas, num trânsito entre as figuras que povoam o
título da obra.
Manuel Nunes faz-nos chegar esta narrativa-ensaio
intitulada A professora, os porcos e os
cisnes (Lisboa: Gradiva, 2012) e não se pode ficar indiferente a um mundo
de problemas que é o universo do professor, na gestão pedagógica dos conflitos
e das tensões consigo e com os outros - os alunos, os outros professores, as
decisões do(s) poder(es).
A narrativa cruza a experiência de Diana com as
reflexões do mestre, obtidas a partir do seu diário ou do registo gravado das
acções de formação a que assistiu. O olhar sobre o estado da escola não resulta
num retrato feliz, o que justifica o próprio subtítulo da obra - “O pântano da
educação em Portugal” -, associado, naturalmente, ao tempo em que foi escrito e
ao contexto por então vivido na área do ensino.
A profissão do professor é esse movimento pendular
entre os porcos e os cisnes, uns e outros figuras simbólicas ricas, definidoras
das aspirações humanas já desde a Antiguidade: os porcos, seres em que foram
transformados os companheiros de Ulisses por só reagirem instintivamente ao
mundo, no sentido da satisfação não pensada dos desejos; os cisnes, recolhidos
de Platão e da forma nobre como Sócrates encarou o seu fim, epílogo injusto mas
sem abdicação.
Muitas páginas desta obra mexem connosco, seja pelo
tom utilizado (parecendo frequentemente que se trata de situações em que participamos),
seja pela pertinência dos casos evocados. Haja em vista, por exemplo, o texto
de considerações sobre a fórm(ul)a encontrada por alguns docentes para
justificarem a avaliação que atribuem aos alunos, apoiada no “excel”, num
engodo para tornar objectivo o que parte da subjectividade, numa ilusão de que
o processo de avaliação que seguem é matemático, rigoroso, imbatível... A
citação é longa, mas vale a pena...
“Hoje aqueles tipos
conseguiram irritar-me! Como é que é possível tal cegueira colectiva de um
colectivo de pessoas? Olham para um pormenorzinho, fixam-se nele e estão
plenamente convencidos de que é ali que reside a verdade! Nem sequer conseguem
compreender que, ao fixarem-se no pormenor, perdem de vista o horizonte dentro
do qual (e só dentro do qual) se torna possível a visão do pormenor!... No
fundo, não são diferentes do meu cão quando, apontando eu o dedo na direcção de
algo que tento mostrar-lhe, se põe, apalermado, a olhar para o meu dedo em vez
de olhar para a realidade indicada pelo dedo!...
Aqueles tipos estavam todos
cegos: se as contas do Excel davam 17,44, então a nota final do aluno tinha de
ser 17 e só 17 e nada mais do que 17, nunca 18, muito menos 19, não podia ser
nem mais nem menos do que 17!... Ainda se, ao menos, as contas do Excel dessem
17,45, então ainda se poderia esticar um bocadinho, mas contas são contas, é
pena mas é assim, aliás, se fosse num exame, também seria assim!...
Como se a capacidade e o
poder de avaliar pertencesse ao Excel e não ao professor (ou melhor, aos
professores do Conselho de Turma)! Todos submetidos, em regime de vassalagem
feudal, à tirania do Senhor Absoluto, Omnipotente e Omnisciente Excel! Todos
ali, contagiados por uma cegueira colectiva, esquecidos dos pressupostos e das
exigências do sistema de avaliação sistemática e contínua! Todos ali, cegos
dentro da caverna escura da ignorância (ah, caro Platão, com tu tinhas razão!),
a confundir a verdade da avaliação com a exactidão matemática do Omnisciente
Excel, esquecidos de que não há nenhuma fórmula do Excel capaz de nos dar a
verdade do invisível, do inescutável, do indizível e do inefável do aluno!
Impressionante! Arrepiante! Assustador!...
Esta é uma das grandes
tragédias da escola portuguesa: há muitas pessoas (muitas mais do que eu quero
admitir) a quem falta a visão do todo e que, por isso, cometem erros
pedagógicos de uma gravidade criminosa!...”
Depois deste relato, será caso para perguntar se há
alguém ligado à educação que ainda não tenha presenciado situações como a
apresentada... e, já agora, se não se revoltou com o que (ou)viu em termos de
argumentação (se se lhe pode chamar argumentação...)?
Mas o que mais impressiona neste texto de Manuel Nunes
é a própria ideia apontada do que é ser professor, do que a narradora entende
que seja o professor, o seu ideal no fim de contas - meta nunca conseguida mas
sempre perseguida, porque sempre sentida e adivinhada, porque tentada no
quotidiano, porque estabelecedora de marca, porque exemplo ou objectivo que
pretende ser. Sublinho três exemplos, que são outras tantas citações adequadas,
que poderiam ser outros tantos princípios a serem tidos em conta na escola do
dia a dia. O primeiro, sobre o professor: “Quem é professor ou
professora tem o dever de nunca ser vulgar. Tem o dever de nunca agir nem
reagir de forma vulgar. Em nenhuma circunstância!”. O segundo, sobre o acto de
educar: “O educador tem o dever de, perante o educando, ser arauto de Apolo. O
horizonte último do humano é a luz e é para esse horizonte que o educador tem o
dever de orientar toda a acção educativa.” O terceiro, sobre a Escola: “A
escola existe para educar para o sublime. A sua missão consiste em conduzir
para o mais alto do mais alto. Ela tem a obrigação moral de ter como meta e
como horizonte a perfeição.”
Desconte-se
neste livro o que pode ser uma marca do tempo (publicado em 2012, o que, não sendo pormenor de somenos, não impede uma
leitura do essencial, que vai muito além das marcas de datação) e
veja-se o que poderia ser um manifesto ou um código a ser subscrito por cada
professor naquilo que de reflexões o povoam, aí incluindo as dúvidas e as
práticas, a imagem social que do professor foi criada (pela política ou pelos
próprios professores), o real quotidiano da vida na escola: uma profissão
contra a “mesmice”, questionadora da falta de sentido do mecânico em que muitas
aulas se tornam, promotora de humanidade, de saber e de auto-exigência e
impulsionadora da paixão. É pedir muito?
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