Desde há poucos dias, a "carreta" das vindimas já está em Palmela, estacionada nos locais do costume, a cumprir a sua função: indicar o calendário da edição deste ano da Festa das Vindimas (3 a 8 de Setembro), adiafa grandiosa da vida do campo e desse símbolo que povoa as terras de Palmela. Para a agenda.
sexta-feira, 31 de julho de 2015
Para a agenda - Feira de Santiago quase no final
A Feira de Santiago, em Setúbal, está a chegar ao final de mais esta edição. É só mais este fim de semana. Além do programa diversificado de espectáculos, a Feira leva-nos a comemorar Bocage, o poeta, em exposição sob o título "o génio nasceu há 250 anos", bom pretexto para um encontro com um percurso da identidade e da cultura setubalenses.
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sábado, 11 de julho de 2015
António Cagica Rapaz - A memória e a identidade nas crónicas
É reedição recente a obra Noventa e Tal Contos, de António Cagica Rapaz (1944-2009), que a
Câmara Municipal de Sesimbra levou a cabo, quando passam quinze anos sobre a
primeira publicação. Na verdade, trata-se de noventa e sete textos, que o
próprio autor, em nota de abertura, hesitava em classificar quanto ao género: “não
sei se são contos, se são crónicas, memórias, olhares ou retratos”, para logo
acrescentar “se calhar é um pouco de tudo isso ou nada disso”, porque, “no
fundo, são simplesmente coisas que, ao longo dos anos, fui buscando no sótão
desarrumado que é esta minha cabeça e que fui escrevendo, ao correr da pena que
tenho de não saber fazer melhor”.
E, na verdade, assim é. Os textos respeitam a
modalidade da crónica pela sua extensão, pela forma de tornar actuais muitas
histórias, por se cruzarem com o quotidiano de personagens com as quais o autor
também se cruzou, por partirem para pequenas reflexões sobre a memória e as
formas de vida, os exemplos, as convivências, os tempos. Havendo apenas um dos
textos sem data, os mais antigos remetem-se para 1972, com publicação no jornal
Record, enquanto os mais recentes
surgem datados de 2000.
O estilo de Cagica Rapaz é vivo, intenso, medido ao
pormenor, eficaz, levando o leitor a comungar os instantes e as situações, a
viver aquilo que o próprio narrador quer fazer reviver. São histórias de
Sesimbra, das suas gentes, do sítio. São narrativas de tempos recuados, assentes
na infância do seu contador, que vogam até às figuras que fizeram parte do seu
universo e que povoaram o tempo e a geografia entre Caixas, Cotovia e Sesimbra. São relatos que vivem
sobretudo pela sua humanidade, pelas relações que tal evocação gera entre as
pessoas, todas protagonistas de vidas e da vida do narrador, que nunca se
esconde atrás de um memorialista distante, antes insiste em tornar presentes os
momentos que sentiu e as personagens que os condimentaram, sempre levado por um
apego à terra, uma Sesimbra em que a paisagem tem de ser dominada, sem dúvida,
pelo mar – “O mar e os barcos fazem parte da nossa vida, dos nossos sonhos. Por
isso, no campo, mesmo sem searas a ondular, nos parece ver barcos onde, afinal,
só há uma casa cercada por um muro pontiagudo, à beira da estrada.”
A pouco e pouco, ao longo da quase centena de
crónicas, o autor vai revelando o seu propósito: vencer o tempo, revivendo-o
pela memória, que se torna escrita. É assim que, poucas páginas de leitura
volvidas, o leitor começa a entrar no desvendamento do porquê desta escrita: “foi-se
o tempo, fica-nos a fantasia e a memória vacilante…” Um pouco adiante, ao fixar
o retrato de uma personagem, um pouco mais de confissão – “é o passado que
penetra o presente com ingénua autenticidade”. As histórias vão-se acumulando
e, uns encontros à frente, é dito que “ficam as recordações aqui e ali
reavivadas”. Já quase no final desta colectânea de crónicas, uma surge em que o
autor cimenta o seu gesto de caminhar pela memória – refere-se à colaboração de
António Lobo Antunes num periódico, entretanto recolhida sob o título de Crónicas, que, relidas, merecem de
Cagica Rapaz a seguinte reflexão: “Sentimos quão vivas estão as recordações da
infância, a ternura com que fala dos familiares, dos amigos, dos lugares, das
coisas e de um tempo.” O leitor percebe que este narrador sente a felicidade da
identificação, que cauciona o seu trajecto, mas, num gesto de simplicidade,
conclui, linhas adiante: “Desta leitura acabei por extrair uma satisfação
adicional que é o paralelismo que, vagamente, a espaços, a grande distância
qualitativa, me atrevo a vislumbrar entre algumas das suas crónicas e um ou
outro dos meus pobres escritos.”
A dimensão pictórica no traçado das personagens é
intensa em António Cagica Rapaz, como se pode ver pela descrição de memória que
faz de Maria Amália, sua familiar, impressão que quase nos remete para
Arcimboldo: “Com os meus oito ou nove anos, eu via nela um fruto autêntico da
terra, feito de trigo maduro, de sol cor de romã, de uva generosa, de bom pão
amassado com amor e cozido em forno de tijolo moreno”. Impressionante também é
a caracterização de uma outra personagem, que se manifesta em vários textos, o
padre João, a quem está associada uma construção literária – “foi, para todos
nós, o senhor abade das aldeias poetizadas do Júlio Dinis” –, resultante de um
retrato todo ele eivado de sentimento – “felizmente, acima dos dogmas rígidos e
tenebrosos, havia o Padre João, com a sua bondade, a sua jovialidade, a sua
ternura, o seu sorriso cativante, a calorosa cumplicidade que estabelecia
connosco”. Intenso também é o passeio na memória através de uma professora,
Auzenda Pereira, que leccionava Francês no Liceu de Setúbal no início dos anos
60 e revelou aos alunos os caminhos da beleza e da arte – “Pessoas como a Dona
Auzenda acompanham-nos ao longo das nossas vidas, ensinando-nos a apreciar as
coisas bonitas da existência, com amor e o mesmo tacto poético com que nos
levava pela mão através dos campos da Provença, em manhãs de evasão na
biblioteca acolhedora do velho Liceu…” O recorte no tratamento das personagens
é fino e sensível e assistimos a um desfile que integra o sapateiro, o
pescador, o condutor do autocarro, o barbeiro, os amigos do café, aqueles que
chegam e se deixam tornar íntimos de Sesimbra (terra de recepção também) e
todos quantos acabam por fazer parte de uma vida, de uma comunidade, com
ligação aos sítios (o café, a praça, a praia, o campo), aos momentos (a
infância, a escola, a igreja, o futebol, as festas) e aos afectos. No fundo,
são os contares do que alimentou o quotidiano, do que foi a epopeia de cada um –
não por acaso, será a propósito da narração da matança do porco que o narrador
dirá que, nesse dia, “se escrevia mais um capítulo dos muitos que compõem a
epopeia do campo”…
Se dúvidas tivéssemos quanto ao que motivava António
Cagica Rapaz nestas crónicas, o mistério seria desfeito por este curioso
parágrafo que registou no texto “Omar” (designação vinda de poeta persa do século
XI, evocado por Amin Maalouf), de 1999: “O que resta da nossa urbe é o olhar
melancólico que alguns teimosos palermas, como eu, teimam em pousar sobre
Sesimbra, tentando descobrir, desenterrar, trazer à superfície restos de beleza,
de poesia, do encanto do passado.” E, quase no final do livro, mais um
contributo para ajudar a desvendar o porquê destas evocações: “continuaria a
fazer o que faço com as pessoas de quem gosto, evocando-as aqui e mais logo,
por isto, por aquilo, como quem diz adeus de longe, do muro da lota…” Duzentas
e poucas páginas de um livro que, dizendo adeus, traz o passado até ao presente,
assumindo-se como um percurso que (re)constrói a identidade!
Sublinhados
Felicidade – “Se calhar, a felicidade é apenas meia dúzia de
horas felizes, momentos espaçados e fugidios, uma sensação de paz, uma ilusão
de eternidade, um riso de criança…”
Vida – “A nossa vida é um filme de que somos actores, de que nos julgamos
realizadores e do qual, muitas vezes, somos apenas espectadores incapazes de
interferir, impotentes para reagir. Até
ficarmos sozinhos na sala escura quando toda a gente já saiu, olhando para o
relógio. Lá fora, na rua, já começa outro filme, outras vidas. Ou talvez seja apenas
o mesmo filme que continua, em trinta e uma partes…”
Outro – “Andamos anos a cruzar-nos com pessoas de quem gostamos, a
falar-lhes de raspão, ao dobrar a esquina, e não somos capazes de arranjar
tempo para elas, para nós, para estarmos juntos, sempre a deixar para um
qualquer dia que, quando e se chega, não é o que sonhámos. (…) Importante é
gostarmos das pessoas e das coisas, sermos capazes de partilhar sentimentos e
emoções.”
Escrever – “Escrever não é indispensável, faz parte das coisas
supérfluas. Ninguém morre se não escrever e todos passam sem ler. Apenas
acontece que alguns de nós, com ou sem razão, com mais ou menos jeito, julgam
ter coisas para dizer. E escrevem. Por gosto, com paixão, por amor, escrevem.”
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quinta-feira, 9 de julho de 2015
Para a agenda: Moita Flores em Setúbal
Francisco Moita Flores entrou no enredo dos derradeiros dias do regime filipino em Portugal e trouxe O dia dos milagres, a sua mais recente obra. Amanhã, 10 de Julho, pelas 15h30, Moita Flores estará na estação de correios de Monte Belo, em Setúbal, para autografar a obra. Para a agenda.
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quinta-feira, 2 de julho de 2015
Sobre "Os últimos marinheiros", de Filipa Melo
Magnífica
reportagem, é o mínimo que se pode dizer do livro Os últimos marinheiros, de Filipa Melo (Col. “Retratos da
Fundação”. Lisboa: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015), uma reportagem
que mistura o retrato, a informação, o sentimento, as vozes, a opinião, em que
não se apagam os afectos de quem narra. Lê-se o título e percorre-nos uma
sensação de fim de ciclo ou de final de história, não porque um ou outra se
cumpram, antes porque os tempos são o que são, antes porque a relação de
Portugal com o mar, sendo geográfica, tradicional e histórica, é também
paradoxal. É assim que sucede com Os
últimos marinheiros, título a cheirar a nostalgia, a barcos no cais, a
contemplação do mar e das vidas.
O
contado resulta de duas viagens a bordo: uma, em 2009, no “Port Douro”, navio
de carga da Portline Bulk International, em circuito entre Lisboa, Leixões,
Caniçal e volta; outra, em 2015, no “Neptuno”, navio de pesca de arrasto, ao
largo da Figueira da Foz. Ao longo das duas viagens, Filipa Melo conta as
especificidades de cada um dos navios, esclarece muito do vocabulário náutico,
ouve as personagens reais com quem viajou, conta-lhes e deixa que elas contem
as suas histórias, dá nota das dificuldades e da camaradagem na companha,
enquanto o leitor vai entrando nesse universo, quase integrando a tripulação
ou, pelo menos, com ela confraternizando também.
São
retratos de descrição do estado das coisas ou que favorecem uma leitura quanto
a esse estado das coisas, essa (suposta, talvez obrigatória, talvez frágil)
ligação de Portugal com o mar. Logo no início do livro, uma verdade que nos
flagela os sonhos: “Em Portugal, os homens do mar estão em vias de extinção, ou
quase”. E, dois parágrafos adiante, a crueza: “Inclinados perante a Europa,
virámos as costas ao mar. País de marinheiros? A actualidade do nosso
imaginário mítico marítimo dissolve-se no desprezo colectivo pelo mar.
Estendidos nas praias, vemos passar navios, ao longe, cada vez mais ao longe. O
mar não existe nem sequer como conceito do poder da nação.” Fortes estas
imagens! Logo associo ao nome de um restaurante lisboeta que, perante a vista
que se esparrama sobre o Tejo, não foi baptizado de forma estranha: “A ver
navios”. Afinal, a poesia da saudade e dos longes que uma frase contém também
pode esconder a face do desprezo… Quarenta páginas andadas, depois de relatos e
de vivências, a mesma conclusão: “O declínio do nosso sector das pescas
acompanha a tendência da maioria dos países com tradições piscatórias. Mas a
falta de interesse dos portugueses pelo mar como activo nacional importante diz
mais da difícil gestão dos nossos imaginário simbólico-poético e herança
histórica e da ainda mais difícil distribuição de estatuto social. Se a nação
fosse de marinheiros, com certeza a mais-valia das pescas ficaria no sector.
Não é de todo o que acontece por cá.” Que dura conclusão para António Nobre,
que, hoje, não poderia convidar Georges a vir visitar o seu “país de
marinheiros”!
Ao
longo de setenta páginas, vamos convivendo com portugueses “cuja principal
fonte de sustento ainda é a navegação no mar”, homens e mulheres que “estão
acostumados ao horizonte que se eleva, permanece em cima por segundo e volta a
mergulhar. Uma vez, outra, outra, outra. Alguns, mesmo nos momentos mais
difíceis, mantêm a placidez da gaivota, pousada sobre a imensidão da água como
se de um banco de jardim se tratasse.”
Pelas
histórias reais que Filipa Melo vai registando vai passeando também a
literatura, com incursões de Conrad, de Pierre Loti, de Fernão Mendes Pinto, de
Hemingway, de Camões, de Antero de Quental, de Sérgio Godinho, de Raul Brandão,
de Baudelaire, de António Vieira, de Álvaro de Campos, de Yukio Mishima, de
Ternazi, de Jorge Amado e de Júlio Verne, havendo ainda lugar para o romanceiro
chegado através da “Nau Catrineta”, segmentos de obras de ficção, de poesia ou
de relatos, que sustentam a grandeza do que é a relação do homem com o mar (com
pena de que não tenha sido trazido também o nome de Bernardo Santareno a partir
das suas crónicas de Nos mares do fim do
mundo). Nessas histórias reais, os entrevistados falam do que sabem – da
família, do mar, dos seus sonhos e de como chegaram ao mar, das aventuras e
perigos passados, das suas leituras, das epopeias de que eles são heróis. E
dão-se-nos, entre muitas, as experiências de Cristina Alves, a mulher que tem
histórias bem dispostas para se inserir numa comunidade que era apenas
masculina, ou a do sesimbrense António Rocha, cozinheiro de bordo, com uma
história de vida que dava um livro…
Viajando
num navio de carga ou num navio de pesca de arrasto, Filipa Melo é sobretudo
sensível à experiência humana perante os oceanos – “O denominador comum das
histórias e casos de vida que reproduzo ao longo deste livro é a necessidade de
ajuste, mais ou menos voluntário, mais ou menos violento, do homem ao ritmo do
mar.” E, mesmo depois de realizadas as viagens, a vida das personagens foi
seguida, havendo a preocupação de localizar no presente mesmo aqueles com quem
viajou em 2009.
Neptuno,
o deus romano dos mares que dá nome ao navio da experiência de 2015, terá
recebido bem este retrato em que o mar se destaca não só pela matemática da
lonjura e do infinito, mas também por ser respeitado, pois, como confidencia
Telma Cunha (que era oficial-imediato em 2009 e agora é capitã e também tem o
hábito de frequentar o festival poveiro “Correntes d’Escrita”) sobre o mar:
“Pode estar num momento muito calmo e, logo a seguir, ficar todo trapalhão.
Dentro do navio, sente-se sempre, a toda a hora, a imensidão dele à nossa
volta. É esmagador, não nos podemos fiar.”
Sublinhados
Mar
– “O mar tanto oferece, tanto ruge, segundo leis desconhecidas. Despreza
mitificações e romantismos, faz pagar caro os despiques, exige submissão
absoluta. Se ele é a religião da Natureza, a poucos homens é concedida a
verdadeira graça do culto.”
Descobrir
– “Só se descobre aquilo que já existe.”
Olhar – “Cada um olha para o mar da maneira como olha
para dentro de si mesmo.”
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