O
mais recente livro de José-António Chocolate, Este tempo que nos come (Setúbal: ed. Autor, 2014), poderá ser do
melhor que o poeta alentejano de Santa Eulália, que tomou Setúbal como terra de
adopção, fez num trajecto ligado às letras com quase 35 anos.
O
título não é inócuo, pois desvenda logo o agente responsável pela duração da
vida, pela ocupação dessa mesma vida, num processo de absorção que se afigura
imparável. Em acrescento, há fotografias devidas a José Alpedrinha e a Ricardo
Fonseca que vão enlaçando a poesia com as rugas do caminho a que metaforicamente
chamamos vida, que vão registando sulcos do tempo.
Em
quatro partes surge organizado o conjunto, tantas como as estações, todas
ultrapassando as estações porque mexem com formas de estar e de absorver o próprio
tempo ou a vida ou de sermos esculpidos por ela. “O tempo, do que se faz” é o
primeiro grupo, um título em construção poética, que abre com a força desse
medidor que é “Ampulheta”, mais próximo da prosa poética, anunciado com
palavras quase bíblicas: “A vida não se vive, desvive-se vivendo. Cada segundo
vai caindo ao ritmo certo e um a um se devolve o grão de areia caído da âmbula
cheia que nos foi entregue no momento de nascer.” É este primeiro conjunto o
passo para o cinzelar de uma identidade, sujeita a transformações, a sonhos, a
construção lenta e medida, que se conclui com uma confidência, “Confesso que
gosto de ser português”, assente em vivências e nessa identidade construída
sobre uma “alma lusitana” que “nos faz acreditar que sonhar é possível”.
É
de poemas mais intimistas que se compõe o grupo “O tempo que faz”, num envolvimento
do sujeito poético com o seu tempo, com os seus momentos, sejam os do
calendário, os da meteorologia, os das partículas de quotidiano. O texto que
interrompe este grupo, “Primavera no Alentejo”, é uma declaração de afecto a
esse quinhão de paraíso, criação que conseguiu confundir o seu autor – numa
visita à paisagem fortemente povoada de natureza que se estende qual tapete
Alentejo adentro, “Deus Criador fez-se de tamanha admiração / na dúvida que
aqueles campos áridos que criou, / não fossem mais aquilo que a sua criação.”
“O
tempo que se desfaz” é o quadro das memórias, o encontro com passados, trazidos
ou invocados através de pessoas, de sítios, de lembranças – a casa, a infância,
os amigos reencontrados ou rememorados, os momentos de descoberta – num revelado
filão autobiográfico, com marcas temporais e geográficas do percurso do autor. É
de grande sensibilidade o poema que finaliza este ciclo, retomando a intimidade
dos momentos, convocando os ausentes, aproveitando o momento de aniversário da
mãe, uma escrita que sugere a presença de interlocutor, como acontece em muitos
dos textos que integram este livro – “Assim quiseste a mesa composta no dia dos
teus anos, / só eu e tu, mãe, como se todo o mundo ali estivesse / e nos
bastassem as conversas repetidas e as lembranças. // (…) // Assim quiseste a
mesa composta no dia dos teus anos, / só nós dois tendo todos os nossos por
companhia. / Tantos corações num só batendo, quando / o amor era preciso para
celebrar este dia.”
Apresenta-se
o quarto grupo sob o título “O tempo, o que nos faz”, período de visitação do
poeta a si mesmo e às suas idealizações e convicções, momento de respeito pelas
palavras e de reflexão sobre os passos do presente. Em “Sigamos o tempo”, o
poeta deixa-se convencer pelo poder da sorte – “Sigamos o tempo no seu decurso
/ que os destino traçou.” – para, logo na estrofe seguinte, anunciar o que é o
seu presente de desvendamento – “Cada vez mais procuro / encontrar-me na
verdade / das coisas simples.” Mas não é apenas o destino o responsável por
este presente, pois que uma outra orientação surge, como é revelado no poema de
homenagem ao pai, “Que tristeza é esta…?”: “Vem-me de dentro esta dor que não
enjeito / e quero que minha permaneça sentindo a tua companhia. / Podes crer,
pai, que a tua bondade para mim é bom exemplo / e a tua mão calejada é que me
guia.”
Pela
poesia de José-António Chocolate, em Este
tempo que nos come, passa uma corrente de imagens fortes do encontro do poeta
consigo, transitam os valores e as convicções a que não são alheios “Abril, a
clara luz da primavera” ou a opinião sobre o presente (“Onde nos leva esta
gente”) ou o acentuado pendor para a evocação ou para a saudade de um tempo povoado
de histórias e de pessoas que passa e que apenas se consegue reter porque a poesia
tem essa capacidade de transformar as palavras em marcos de vida visitada.