sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

José-António Chocolate: poesia entrelaçada de tempo



O mais recente livro de José-António Chocolate, Este tempo que nos come (Setúbal: ed. Autor, 2014), poderá ser do melhor que o poeta alentejano de Santa Eulália, que tomou Setúbal como terra de adopção, fez num trajecto ligado às letras com quase 35 anos.
O título não é inócuo, pois desvenda logo o agente responsável pela duração da vida, pela ocupação dessa mesma vida, num processo de absorção que se afigura imparável. Em acrescento, há fotografias devidas a José Alpedrinha e a Ricardo Fonseca que vão enlaçando a poesia com as rugas do caminho a que metaforicamente chamamos vida, que vão registando sulcos do tempo.
Em quatro partes surge organizado o conjunto, tantas como as estações, todas ultrapassando as estações porque mexem com formas de estar e de absorver o próprio tempo ou a vida ou de sermos esculpidos por ela. “O tempo, do que se faz” é o primeiro grupo, um título em construção poética, que abre com a força desse medidor que é “Ampulheta”, mais próximo da prosa poética, anunciado com palavras quase bíblicas: “A vida não se vive, desvive-se vivendo. Cada segundo vai caindo ao ritmo certo e um a um se devolve o grão de areia caído da âmbula cheia que nos foi entregue no momento de nascer.” É este primeiro conjunto o passo para o cinzelar de uma identidade, sujeita a transformações, a sonhos, a construção lenta e medida, que se conclui com uma confidência, “Confesso que gosto de ser português”, assente em vivências e nessa identidade construída sobre uma “alma lusitana” que “nos faz acreditar que sonhar é possível”.
É de poemas mais intimistas que se compõe o grupo “O tempo que faz”, num envolvimento do sujeito poético com o seu tempo, com os seus momentos, sejam os do calendário, os da meteorologia, os das partículas de quotidiano. O texto que interrompe este grupo, “Primavera no Alentejo”, é uma declaração de afecto a esse quinhão de paraíso, criação que conseguiu confundir o seu autor – numa visita à paisagem fortemente povoada de natureza que se estende qual tapete Alentejo adentro, “Deus Criador fez-se de tamanha admiração / na dúvida que aqueles campos áridos que criou, / não fossem mais aquilo que a sua criação.”
“O tempo que se desfaz” é o quadro das memórias, o encontro com passados, trazidos ou invocados através de pessoas, de sítios, de lembranças – a casa, a infância, os amigos reencontrados ou rememorados, os momentos de descoberta – num revelado filão autobiográfico, com marcas temporais e geográficas do percurso do autor. É de grande sensibilidade o poema que finaliza este ciclo, retomando a intimidade dos momentos, convocando os ausentes, aproveitando o momento de aniversário da mãe, uma escrita que sugere a presença de interlocutor, como acontece em muitos dos textos que integram este livro – “Assim quiseste a mesa composta no dia dos teus anos, / só eu e tu, mãe, como se todo o mundo ali estivesse / e nos bastassem as conversas repetidas e as lembranças. // (…) // Assim quiseste a mesa composta no dia dos teus anos, / só nós dois tendo todos os nossos por companhia. / Tantos corações num só batendo, quando / o amor era preciso para celebrar este dia.”
Apresenta-se o quarto grupo sob o título “O tempo, o que nos faz”, período de visitação do poeta a si mesmo e às suas idealizações e convicções, momento de respeito pelas palavras e de reflexão sobre os passos do presente. Em “Sigamos o tempo”, o poeta deixa-se convencer pelo poder da sorte – “Sigamos o tempo no seu decurso / que os destino traçou.” – para, logo na estrofe seguinte, anunciar o que é o seu presente de desvendamento – “Cada vez mais procuro / encontrar-me na verdade / das coisas simples.” Mas não é apenas o destino o responsável por este presente, pois que uma outra orientação surge, como é revelado no poema de homenagem ao pai, “Que tristeza é esta…?”: “Vem-me de dentro esta dor que não enjeito / e quero que minha permaneça sentindo a tua companhia. / Podes crer, pai, que a tua bondade para mim é bom exemplo / e a tua mão calejada é que me guia.”

Pela poesia de José-António Chocolate, em Este tempo que nos come, passa uma corrente de imagens fortes do encontro do poeta consigo, transitam os valores e as convicções a que não são alheios “Abril, a clara luz da primavera” ou a opinião sobre o presente (“Onde nos leva esta gente”) ou o acentuado pendor para a evocação ou para a saudade de um tempo povoado de histórias e de pessoas que passa e que apenas se consegue reter porque a poesia tem essa capacidade de transformar as palavras em marcos de vida visitada.

1 comentário:

José - António Chocolate disse...

Caro João Reis Ribeiro, obrigado pela leitura atenta e pela análise feita ao meu livro, com o entusiasmo e a paixão que se te conhece. Irei copiar esta bela peça literária para que me sirva, no caso de fazer reedição ou guardá-las e relê-las quando fizer percurso pela memória. Abraço. José - António Chocolate