quinta-feira, 31 de julho de 2014

Jean Jaurès, 100 anos depois, revisitado com Aquilino Ribeiro


 
No dia 1 de Agosto de 1914, o jornal L’Humanité, que Jean Jaurès fundara e dirigia, trazia, ao largo de toda a primeira página a notícia sobre a morte do seu director sob o título “Jaurès assassiné”.
Na noite do dia anterior (passam hoje 100 anos), Jaurès jantava com colegas e amigos no café “du Croissant”, em Paris, bem perto do jornal em que trabalhava e, pelas 21h40, era alvejado mortalmente por Raoul Villain, jovem nacionalista adepto da entrada na guerra. Assim terminava o percurso de 54 anos de um dos mais célebres oradores, chefe socialista, pacifista, que consternou a França, país que estava a um passo de entrar na Grande Guerra.
No dia anterior, em 30 de Julho, Jaurès publicara no L’Humanité um texto que reflectia a sua posição contra a entrada na guerra, que toda a gente achava emergente: «Les forces de paix pourront donc s’exercer. Le devoir redouble pour nous tous d’utiliser ces jours ou ces heures de répit pour dénoncer le crime, pour affirmer et organiser la solidarité des prolétaires de tous pays contre l’abominable menace.»
A segunda quinzena de Julho fora, de resto, vivida por Jaurès num incessante combate contra a guerra e em favor da paz. Célebre ficou o seu último discurso, em Vaise (Lyon), em 25 de Julho, perante numerosa multidão: «Je veux vous dire ce soir que jamais nous n’avons été, que jamais depuis quarante ans, l’Europe n’a été dans une situation plus menaçante et plus tragique que celle où nous sommes à l’heure où j’ai la responsabilité de vous adresser la parole.» Era a descrença na resolução diplomática do conflito que opunha a Áustria-Hungria à Sérvia desde o assassinato de Francisco Fernando (28 de Junho), com o receio de uma catástrofe, que, na verdade, se agigantava. E Jaurès avisava: «À l’heure actuelle, nous sommes peut-être à la veille du jour où l’Autriche va se jeter sur les Serbes, et alors Autriche, Allemagne se jetant sur les Serbes et les Russes, c’est l’Europe en feu, c’est le monde en feu. (…) La politique coloniale de la France, la politique sournoise de la Russie et la volonté brutale de l’Autriche ont contribué à créer l’état de choses horrible où nous sommes. L’Europe se débat comme dans un cauchemar.»
O pesadelo aproximava-se. E mais vertiginosamente do que parecia, como a História comprova.
No seu diário de 1 de Agosto de 1914, publicado sob o título É a guerra (1934, com reedição recente pela Bertrand), Aquilino Ribeiro, que estava em Paris, escrevia: «Pouco se fala em Jaurès, ídolo da multidão. Em tempo ordinário o seu assassínio teria provocado o massacre dos extremistas da “Action Française”; a revolta, talvez, do Paris popular. O mundo acaba de perder neste político de cabeça sempre erguida para o céu uma das suas generosas e magníficas forças. Era o tribuno por excelência. Ouvia-se com o mesmo prazer com que se ouve um trecho de Beethoven executado pela orquestra Lamoureux ou tirada da Antigone declamada pela Bartet. A última vez que me foi dado gozar tal prazer foi nas Buttes-Chaumont, combatiam os socialistas encarniçadamente a lei militar dos três anos. No bom gigante barbaçudo, passos pesados de cá para lá e de lá para cá de urso em jaula, olhos luminosos divisando para além do horizonte comum, voz martelada de sonoro metal, havia ao dispor, revolver, sacudir o auditório qualquer coisa da magnitude do vento a encapelar o mar. A Terceira República não conta personalidade mais alta. Em meu peito choro-o como se fôssemos do mesmo lar. Sempre aquela Rua du Croissant, a dois passos do bulevar, estreita, lívida, saco, assim a jeito de caixão com a tampa erguida à espera do defunto, me deu impressão de aziaga. Satisfez no sentido mortuário que lhe achei. Mas terrível absurdo do destino! Agora que Jaurès, ontem homem de todas as liberdades, inimigo jurado dos preconceitos, transigia com o movimento nacionalista, arrastado na corrente como coisa sem peso, nada ele, um fanático do nacionalismo, não se apurou ainda se com taras fisiológicas ou apenas com as taras que provêm de credo destemperado, o abate a tiros de “Browning”! Receoso, o Governo apressou-se a condenar o atentado, mandando grudar pelas paredes um cartaz de reprovação. Igualmente Poincaré. A estas horas o grande orador jaz de queixos atados entre as quatro tábuas do ataúde e ninguém eleva a voz. A Humanité tem um pobre ar de viúva estúpida, embebedada com pêsames e lágrimas. Nas páginas do número de hoje fala-se com mesura e baixinho. Hervé, na corneta do diabo, papel cor-de-rosa mas a cheirar mal, prega em largas parangonas: ‘Défense nationale d’abord! Ils ont assassiné Jaurès. Nous n’assassinerons pas la France’.»
Uma década depois, em 1924, Jaurès foi para o Panteão. Quanto ao seu assassino, Villain, foi julgado e libertado em 1919, exilou-se em Espanha e aí viria a ser fuzilado pelos republicanos em 1936.
 

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