No dia 1 de Agosto de 1914, o jornal L’Humanité, que Jean Jaurès fundara e
dirigia, trazia, ao largo de toda a primeira página a notícia sobre a morte do
seu director sob o título “Jaurès assassiné”.
Na noite do dia anterior (passam hoje 100 anos),
Jaurès jantava com colegas e amigos no café “du Croissant”, em Paris, bem perto
do jornal em que trabalhava e, pelas 21h40, era alvejado mortalmente por Raoul
Villain, jovem nacionalista adepto da entrada na guerra. Assim terminava o
percurso de 54 anos de um dos mais célebres oradores, chefe socialista, pacifista,
que consternou a França, país que estava a um passo de entrar na Grande Guerra.
No dia anterior, em 30 de Julho, Jaurès publicara no
L’Humanité um texto que reflectia a
sua posição contra a entrada na guerra, que toda a gente achava emergente: «Les
forces de paix pourront donc s’exercer. Le devoir redouble pour nous tous
d’utiliser ces jours ou ces heures de répit pour dénoncer le crime, pour
affirmer et organiser la solidarité des prolétaires de tous pays contre l’abominable
menace.»
A segunda quinzena de Julho fora, de resto, vivida
por Jaurès num incessante combate contra a guerra e em favor da paz. Célebre
ficou o seu último discurso, em Vaise (Lyon), em 25 de Julho, perante numerosa
multidão: «Je veux vous dire ce soir que jamais nous n’avons été, que jamais
depuis quarante ans, l’Europe n’a été dans une situation plus menaçante et plus
tragique que celle où nous sommes à l’heure où j’ai la responsabilité de vous
adresser la parole.» Era a descrença na resolução diplomática do conflito que
opunha a Áustria-Hungria à Sérvia desde o assassinato de Francisco Fernando (28
de Junho), com o receio de uma catástrofe, que, na verdade, se agigantava. E Jaurès avisava: «À l’heure actuelle, nous sommes peut-être à la veille du
jour où l’Autriche va se jeter sur les Serbes, et alors Autriche, Allemagne se
jetant sur les Serbes et les Russes, c’est l’Europe en feu, c’est le monde en
feu. (…) La politique coloniale de la France, la politique sournoise de la
Russie et la volonté brutale de l’Autriche ont contribué à créer l’état de
choses horrible où nous sommes. L’Europe se débat comme dans un cauchemar.»
O pesadelo aproximava-se. E mais vertiginosamente do
que parecia, como a História comprova.
No seu diário de 1 de Agosto de 1914, publicado sob
o título É a guerra (1934, com
reedição recente pela Bertrand), Aquilino Ribeiro, que estava em Paris,
escrevia: «Pouco se fala em Jaurès, ídolo da multidão. Em tempo ordinário o seu
assassínio teria provocado o massacre dos extremistas da “Action Française”; a
revolta, talvez, do Paris popular. O mundo acaba de perder neste político de
cabeça sempre erguida para o céu uma das suas generosas e magníficas forças.
Era o tribuno por excelência. Ouvia-se com o mesmo prazer com que se ouve um
trecho de Beethoven executado pela orquestra Lamoureux ou tirada da Antigone declamada pela Bartet. A última
vez que me foi dado gozar tal prazer foi nas Buttes-Chaumont, combatiam os
socialistas encarniçadamente a lei militar dos três anos. No bom gigante
barbaçudo, passos pesados de cá para lá e de lá para cá de urso em jaula, olhos
luminosos divisando para além do horizonte comum, voz martelada de sonoro
metal, havia ao dispor, revolver, sacudir o auditório qualquer coisa da
magnitude do vento a encapelar o mar. A Terceira República não conta
personalidade mais alta. Em meu peito choro-o como se fôssemos do mesmo lar. Sempre
aquela Rua du Croissant, a dois passos do bulevar, estreita, lívida, saco,
assim a jeito de caixão com a tampa erguida à espera do defunto, me deu
impressão de aziaga. Satisfez no sentido mortuário que lhe achei. Mas terrível
absurdo do destino! Agora que Jaurès, ontem homem de todas as liberdades,
inimigo jurado dos preconceitos, transigia com o movimento nacionalista,
arrastado na corrente como coisa sem peso, nada ele, um fanático do
nacionalismo, não se apurou ainda se com taras fisiológicas ou apenas com as
taras que provêm de credo destemperado, o abate a tiros de “Browning”! Receoso,
o Governo apressou-se a condenar o atentado, mandando grudar pelas paredes um
cartaz de reprovação. Igualmente Poincaré. A estas horas o grande orador jaz de
queixos atados entre as quatro tábuas do ataúde e ninguém eleva a voz. A Humanité tem um pobre ar de viúva
estúpida, embebedada com pêsames e lágrimas. Nas páginas do número de hoje
fala-se com mesura e baixinho. Hervé, na corneta do diabo, papel cor-de-rosa
mas a cheirar mal, prega em largas parangonas: ‘Défense nationale d’abord! Ils
ont assassiné Jaurès. Nous n’assassinerons pas la France’.»
Uma
década depois, em 1924, Jaurès foi para o Panteão. Quanto ao seu assassino,
Villain, foi julgado e libertado em 1919, exilou-se em Espanha e aí viria a ser
fuzilado pelos republicanos em 1936.
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