As
histórias de amor na literatura trazem frequentemente como título apenas os
nomes das suas personagens – todos nos lembramos de narrativas como as que
protagonizaram Romeu e Julieta, Paulo e Virgínia, Tristão e Isolda ou, como no
caso português, Pedro e Inês.
A história de Joana e Sebastião é
portuguesa, é real, é de amor e caminha sobre literatura e riqueza humana,
confortada pela paz da Arrábida, pela espiritualidade da paisagem e pelo
misticismo que brota desde Frei Agostinho da Cruz.
Refiro-me à vida de Sebastião da
Gama e de Joana Luísa, dois seres que entrelaçaram os seus trajectos com o
tempo, numa história completa e perfeita: ele nasceu em Abril e faleceu em
Fevereiro, ela nasceu em Fevereiro e faleceu em Abril. Entre a partida dos dois
passaram 62 anos: ele não chegou aos 28 anos, corria 1952; ela deixou-nos aos
91, quando despontava a Primavera de 2014.
A história de Joana Luísa e de
Sebastião da Gama é fascinante a vários títulos e, por isso, tem de fazer parte
da memória, temos de a receber com o espírito aberto para todas as
aprendizagens. Poeta, escritor, professor, ele, que associou, pelo que lemos e
pelo que ouvimos de quem com ele privou, uma formação humana espantosa, um
encanto e deslumbramento perante a vida e a Natureza, um roteiro de
simplicidade, humildade e boa disposição com os outros, com a vida, ela mesma.
Mulher sensível, determinada, leitora, memorialista de horas vagas, zeladora,
voluntária, ela. Abraçou a memória e a obra do marido depois de um casamento
mais curto do que o namoro, pois durou apenas nove meses, tempo de gestação de
uma memória feliz.
Sebastião da Gama publicou três
livros. E todos correríamos o risco de conhecer pouco mais do que isso sobre
ele e de e de saber que tinha sido um professor. Todo o acervo
bibliográfico que lhe é conhecido,
abrangendo, para já, onze títulos, é maioritariamente póstumo. E, nesse grupo
da obra póstuma, há pérolas como são o “Diário”, bastantes poemas e alguns dos
textos que povoam o livro “O segredo é amar”, toda uma obra atravessada por um
olhar o mundo, o saber e a cultura de forma peculiar, fotogénica, ecológica.
Mas que saberíamos nós, que
conheceríamos nós, desta obra póstuma de Sebastião da Gama se não fosse a
persistência, a dedicação, o critério, o afecto à memória e à literatura que
Joana Luísa cultivou? Ao longo dos quase 62 anos que sobreviveu ao marido,
Joana Luísa da Gama alimentou a obra dele, dando a conhecer inéditos, salvando
o “Diário”, com a ajuda de muitos amigos dos dois – Hernâni Cidade, David
Mourão-Ferreira, Luís Filipe Lindley Cintra, Luís Amaro, Matilde Rosa Araújo,
Maria de Lurdes Belchior, António Manuel Couto Viana. Preservou-a e facilitou a
sua divulgação, não deixou que ela fosse esquecida, pedindo a vários editores
que a obra não fosse cara, que os livros ficassem a preços acessíveis para as
pessoas os poderem obter. Pessoas e instituições ajudaram-na nessa missão de
divulgação, como o livreiro setubalense Manuel Medeiros e Fátima Medeiros, sua
mulher (que iniciaram, pela década de 1980, a celebração do 10 de Abril, data
do nascimento do poeta, com carácter regular), os que foram seus alunos e seus
colegas (em Setúbal, Lisboa e Estremoz), ou a Câmara Municipal de Setúbal (que
levou a cabo a construção do Museu Sebastião da Gama) ou as Juntas de Freguesia
de Azeitão (que criaram o Prémio Nacional de Poesia com o nome do poeta). Uma
vida de literatura na retaguarda, uma vida de memória e de trabalho para a
memória. Uma vida de amor, disponibilizando a obra e o seu saber sobre o
marido, uma vida feliz.
Tive o privilégio de conhecer e
conviver com Joana Luísa. Mais: tive o gosto de ser por si considerado seu
amigo e amigo de Sebastião, porque “quem é meu amigo também o é do Sebastião”,
disse-me um dia. Mais ainda: tive a sorte de aprender muito com Joana Luísa, de
poder peregrinar pelo que foi a geração do seu Sebastião, que foi, afinal, a
sua geração também.
É por tudo isto que me parece que o
nome de Joana Luísa deve ser lembrado sempre que seja mencionado o de Sebastião
da Gama. Um e outro, de resto, ficarão felizes se lembrarmos os dois. Afinal,
temos aqui uma história de amor, com literatura de permeio, abençoada pelo
testemunho e pela poesia.
Em nome do património, é importante
que as várias associações a que Joana Luísa esteve ligada (Liga dos Amigos do
Hospital do Outão, Centro de Estudos Bocageanos, Associação Cultural Sebastião
da Gama e Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, que eu saiba), bem como os
amigos, a família e outras estruturas locais (aí incluindo as autarquias e as
escolas que ela visitou) promovam uma homenagem a Joana Luísa, evidenciando a
sua participação cívica e, sobretudo, o seu papel insubstituível na construção
do que é a obra de Sebastião da Gama.
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