sexta-feira, 25 de julho de 2014

Joana e Sebastião: uma história feita de livros e de poemas



As histórias de amor na literatura trazem frequentemente como título apenas os nomes das suas personagens – todos nos lembramos de narrativas como as que protagonizaram Romeu e Julieta, Paulo e Virgínia, Tristão e Isolda ou, como no caso português, Pedro e Inês.
A história de Joana e Sebastião é portuguesa, é real, é de amor e caminha sobre literatura e riqueza humana, confortada pela paz da Arrábida, pela espiritualidade da paisagem e pelo misticismo que brota desde Frei Agostinho da Cruz.
Refiro-me à vida de Sebastião da Gama e de Joana Luísa, dois seres que entrelaçaram os seus trajectos com o tempo, numa história completa e perfeita: ele nasceu em Abril e faleceu em Fevereiro, ela nasceu em Fevereiro e faleceu em Abril. Entre a partida dos dois passaram 62 anos: ele não chegou aos 28 anos, corria 1952; ela deixou-nos aos 91, quando despontava a Primavera de 2014.
A história de Joana Luísa e de Sebastião da Gama é fascinante a vários títulos e, por isso, tem de fazer parte da memória, temos de a receber com o espírito aberto para todas as aprendizagens. Poeta, escritor, professor, ele, que associou, pelo que lemos e pelo que ouvimos de quem com ele privou, uma formação humana espantosa, um encanto e deslumbramento perante a vida e a Natureza, um roteiro de simplicidade, humildade e boa disposição com os outros, com a vida, ela mesma. Mulher sensível, determinada, leitora, memorialista de horas vagas, zeladora, voluntária, ela. Abraçou a memória e a obra do marido depois de um casamento mais curto do que o namoro, pois durou apenas nove meses, tempo de gestação de uma memória feliz.
Sebastião da Gama publicou três livros. E todos correríamos o risco de conhecer pouco mais do que isso sobre ele e de e de saber que tinha sido um professor. Todo o acervo bibliográfico  que lhe é conhecido, abrangendo, para já, onze títulos, é maioritariamente póstumo. E, nesse grupo da obra póstuma, há pérolas como são o “Diário”, bastantes poemas e alguns dos textos que povoam o livro “O segredo é amar”, toda uma obra atravessada por um olhar o mundo, o saber e a cultura de forma peculiar, fotogénica, ecológica.
Mas que saberíamos nós, que conheceríamos nós, desta obra póstuma de Sebastião da Gama se não fosse a persistência, a dedicação, o critério, o afecto à memória e à literatura que Joana Luísa cultivou? Ao longo dos quase 62 anos que sobreviveu ao marido, Joana Luísa da Gama alimentou a obra dele, dando a conhecer inéditos, salvando o “Diário”, com a ajuda de muitos amigos dos dois – Hernâni Cidade, David Mourão-Ferreira, Luís Filipe Lindley Cintra, Luís Amaro, Matilde Rosa Araújo, Maria de Lurdes Belchior, António Manuel Couto Viana. Preservou-a e facilitou a sua divulgação, não deixou que ela fosse esquecida, pedindo a vários editores que a obra não fosse cara, que os livros ficassem a preços acessíveis para as pessoas os poderem obter. Pessoas e instituições ajudaram-na nessa missão de divulgação, como o livreiro setubalense Manuel Medeiros e Fátima Medeiros, sua mulher (que iniciaram, pela década de 1980, a celebração do 10 de Abril, data do nascimento do poeta, com carácter regular), os que foram seus alunos e seus colegas (em Setúbal, Lisboa e Estremoz), ou a Câmara Municipal de Setúbal (que levou a cabo a construção do Museu Sebastião da Gama) ou as Juntas de Freguesia de Azeitão (que criaram o Prémio Nacional de Poesia com o nome do poeta). Uma vida de literatura na retaguarda, uma vida de memória e de trabalho para a memória. Uma vida de amor, disponibilizando a obra e o seu saber sobre o marido, uma vida feliz.
Tive o privilégio de conhecer e conviver com Joana Luísa. Mais: tive o gosto de ser por si considerado seu amigo e amigo de Sebastião, porque “quem é meu amigo também o é do Sebastião”, disse-me um dia. Mais ainda: tive a sorte de aprender muito com Joana Luísa, de poder peregrinar pelo que foi a geração do seu Sebastião, que foi, afinal, a sua geração também.
É por tudo isto que me parece que o nome de Joana Luísa deve ser lembrado sempre que seja mencionado o de Sebastião da Gama. Um e outro, de resto, ficarão felizes se lembrarmos os dois. Afinal, temos aqui uma história de amor, com literatura de permeio, abençoada pelo testemunho e pela poesia.
Em nome do património, é importante que as várias associações a que Joana Luísa esteve ligada (Liga dos Amigos do Hospital do Outão, Centro de Estudos Bocageanos, Associação Cultural Sebastião da Gama e Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, que eu saiba), bem como os amigos, a família e outras estruturas locais (aí incluindo as autarquias e as escolas que ela visitou) promovam uma homenagem a Joana Luísa, evidenciando a sua participação cívica e, sobretudo, o seu papel insubstituível na construção do que é a obra de Sebastião da Gama.

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