Aníbal
Augusto Milhais, o conhecido “Milhões”, nasceu em 9 de Julho de 1895 e faleceu
em 3 de Junho de 1970. Ainda não tinha 22 anos na data em que embarcou para a Flandres,
incorporando o Corpo Expedicionário Português (CEP), no final de Maio de 1917,
como militar do Regimento de Infantaria 19.
Vindo
de Valongo (a que mais tarde se juntou “de Milhais” em sua honra), no concelho
de Murça, Aníbal Augusto fazia parte do grande grupo de incorporados que nunca
saíra do seu torrão. Muito saberia da vida, mas não conseguia adivinhar que,
com o passar dos tempos, o seu nome viraria lenda, o seu rosto de herói
desafiaria a memória numa praça da sua sede de concelho e a sua vida seria
resguardada numa biografia publicada no primeiro ano do centenário da Grande Guerra,
aquela em que ele se expôs diariamente à fortuna e de onde conseguiu regressar,
contrariamente ao que foi o fado de camaradas de armas e de amigos e vizinhos.
Francisco
Galope, jornalista, encontrou-se com a narrativa do soldado “Milhões” em 2008,
quando preparava uma reportagem com informação de carácter histórico para a
revista Visão – História, para um número
que assinalaria os 90 anos do fim da Grande Guerra e da assinatura do Tratado
de Versalhes. Mas a descoberta pedia mais do que uma reportagem e, cinco anos
depois dessa publicação, Francisco Galope apresenta a biografia de Aníbal
Augusto Milhais, o “Milhões” da lenda, sob o título O herói português da I Guerra Mundial (Lisboa: Matéria-Prima
Edições, 2014).
Curiosamente,
a forma de Aníbal Augusto ter ascendido ao lugar de herói ficou a dever-se a um
jornal, o Diário de Lisboa, quando
corria o mês de Abril de 1924, que desencantou o combatente transmontano e o fez
andar num périplo que teve vários pontos altos de reconhecimento e de vivência,
como foi, por exemplo, o da presença na Batalha, quando no dia 9 desse mês ali
se procedeu à inauguração do lampadário junto do túmulo do “soldado
desconhecido” (criado em 1921), homenagem aos caídos na Grande Guerra, em data
cara para Milhais: fora na sequência da sua acção, em 9 de Abril de 1918, ao
defender-se e ao defender muitos dos seus camaradas perante o inimigo alemão,
que ele se tornou numa imagem do heroísmo no campo de batalha. Posteriormente,
o desabafo de um dos seus comandantes, João Maria Ferreira do Amaral, ao dizer-lhe,
num jogo de palavras, que ele ”era Milhais, mas valia Milhões”, abria-lhe a
porta para a memória, de tal maneira que, no pedestal de Murça, a frase do
comandante surge lavrada em lápide.
Se,
em 1921, Menezes Ferreira contou a história heróica dos soldados portugueses,
construindo uma personagem que seria resultado das vivências de todos eles, na
obra João Ninguém – Soldado da Grande
Guerra (contendo tanto de épico como de humorístico como de crítico), se
designações como “serrano”, “gambúzio” ou “folgadinho” assentavam na
tipificação do soldado herói português que combateu na Grande Guerra, o
conhecimento de “Milhões” deu um rosto, um corpo e um sentir a esse herói, várias
vezes aclamado, em diversas oportunidades alcandorado a representante da
valentia dos homens do CEP.
Francisco
Galope marcou encontros vários com a memória de “Milhões”, fosse através da
leitura do que disseram os jornais, da consulta ao arquivo da RTP (onde surge
registo de entrevista com o herói de Valongo de Milhais) e nos arquivos
militares, fosse por via de fontes orais de familiares do “Milhões”, fosse
ainda pelo recurso à literatura memorialística portuguesa deste período (cujos
títulos vão sendo referidos ao longo da obra). Todo este viajar pela pesquisa
no sentido de ser reconstituída uma biografia permitiu ao autor a elaboração de
uma tela completa do que pode ter sido a vida de Aníbal Milhais, sobretudo na
experiência na trincheira da Flandres. Afinal, aquilo por que Milhais passou não
terá sido diferente do que foi vivido pelos outros companheiros conforme
registado pelo memorialismo. Assim, Francisco Galope preenche lacunas, dando a
imagem possível do herói e do seu feito.
O
desenvolvimento da narrativa vai sendo sujeito a reflexão do próprio narrador,
que, frequentemente, se cola ao seu protagonista no sentido de o entender ou de
justificar as suas atitudes, sempre com o objectivo de tornar a narrativa mais
viva, quase como se uma memória se reproduzisse, não esquecendo pormenores como
o da maneira de falar ou o da linguagem utilizada, sobretudo no que diz
respeito a gíria militar, ou mesmo o que advém da possibilidade de adivinhar o
que correria no pensamento do soldado e na sua maneira de ver o mundo.
Aníbal
Milhais não sai endeusado, antes nos é apresentado um cidadão, que, perante uma
experiência rara e intensa, em que havia a vida para defender, hesita, ganha, perde
e luta, não visando ser herói, mas procurando a sobrevivência, agindo com a
naturalidade que a vida lhe ensinou. Francisco Galope, apesar do título dado ao
livro, é cauteloso no apuramento da verdade em torno do gesto que fez Milhais
subir ao estatuto de “herói” (o que se terá passado em Huit Maisons em 9 de
Abril e nos dias subsequentes), apresentando, no final, documentos de Ferreira
do Amaral e de David Magno, um justificando o reconhecimento e a atribuição de
galardão a Milhais e o outro assumindo que o feito do soldado transmontano não
foi mais glorioso que o de muitos outros dos seus homens, ainda que
reconhecendo Magno que a imagem do “Milhões” se transformou em “símbolo dos
nossos humildes soldados”.
Uma
biografia a ler. Porque dá uma imagem do que foi a vida dos portuguese nas
trincheiras, porque recria com base em fontes importantes um aspecto da
participação portuguesa na Flandres, porque, ainda que falando de um “herói”, o
humaniza. E porque, tal como nas histórias que conhecemos, não ficamos a saber
tudo sobre os heróis, apenas o essencial.
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