A
obra Palmela chão que dá uvas – A terra e
o trabalho das gentes (1945 a 1958), de Cristina Prata (Lisboa: Edições
Colibri, 2013), um dos mais recentes títulos publicados sobre história local de
Palmela, para lá do seu carácter ensaístico (mesmo porque se trata de uma tese
de mestrado), tem a vantagem de ter sido escrito por alguém que cresceu,
habitou e se entranhou no próprio meio que decidiu estudar e conviveu com as
pessoas que têm sido as responsáveis por esse “dar uvas” que a terra de Palmela
tem como característica.
Com
efeito, Cristina Prata começa justamente por assinalar essa ligação ao meio,
afirmando a sua identidade, valendo a pena reparar nessa ligação profundamente
afetuosa e sensível, mesmo que num excerto um bocadinho longo: “A escolha de
estudar a agricultura terá origem nas minhas próprias raízes. Nascida em
Cabanas, na freguesia de Quinta do Anjo, filha e neta de gente que trabalhou a
terra, guardo nos cinco sentidos das minhas memórias de menina os sinais do
movimento de cada uma das estações do ano. A Primavera, com o azul das caldas
que pintava os pios, durante o tratamento das vinhas, e a chegada das flores e
dos bandos de pássaros aos pomares. O Verão, na abundância da cor e do sabor
dos pêssegos, das ameixas e dos figos e também do intenso calor, amenizado pela
frescura da água das regas, cujos tanques tantas vezes substituíram a praia. O
Outono, com a acidez das tângeras, a chuva e o cheiro da terra molhada, pronúncias
de mais um ciclo de trabalhos na terra, mas também na escola. E finalmente o
Inverno, sempre demasiado longo, da escuridão dos dias, da nudez das árvores e
da lama da terra lavrada. Tudo isto, que é o princípio, agradeço à minha
família.”
Ao
longo de duas centenas de páginas, o leitor passeia pela história e pela
região, lendo notícias e opiniões colhidas na imprensa local, conhecendo dados
estatísticos, seguindo o estudo e análise aturados da autora, encontrando
personagens e acontecimentos que fizeram a narrativa de Palmela, desfazendo
mitos e descobrindo saberes, vasculhando arquivos, caminhando por terrenos como
Rio Frio ou a Quinta da Torre, assistindo à criação da Adega Cooperativa e,
sobretudo, ouvindo e convivendo com as pessoas que regaram a terra com o
esforço e o suor, porque, afinal, “são as gentes o objecto primordial da análise”.
Mas
este contar é também o relato de uma das facetas da história da agricultura,
sobretudo naquela vertente da inegabilidade do princípio de que “a terra molda
a vida de quem a habita”, num casamento perene com o trabalho braçal, com o
esforço dado pelo saber e pelo entendimento “da” e “com” a Natureza ou no jogo
de relações entre o campo e os organismos estatais como os Grémios da Lavoura
ou a Junta Nacional do Vinho.
A
escolha do título e do subtítulo da obra de Cristina Prata prova que as
expressões populares escondem muito mais do que aquilo que são os significados
das palavras. Se o título é feliz, não é apenas por afirmar uma condição do
presente, antes é por mostrar que, sob o manto das frases feitas, está o labor
humano, partilhado, tornando-se mesmo interessante a abordagem sociológica que
a investigação vai exigindo – é que, mesmo nos trabalhos do vinho, a questão do
género impunha regras: “aos homens cabem tanto as tarefas fisicamente mais
duras, as lavras que revolvem as terras preparando-as para o plantio, como as
mais minuciosas, traduzidas pelas podas e enxertias, cuja execução não só
interfere na fertilidade da planta, como também lhe molda o desenvolvimento. (…)
À mulher cabe apenas a colheita da uva e outras tarefas, cuja execução traduz
quase um prolongar das competências da sua vida doméstica: limpar as vinhas dos
sarmentos (…) e alimentar de água os pulverizadores com os quais os homens
protegem as plantas.”
A
abordagem sociológica passa ainda pelas marcas de sazonalidade ou pelo ambiente
migratório que o trabalho das vinhas e do vinho exige (aspetos determinantes
para o crescimento populacional do concelho), bem como por essa junção mágica
responsável pela associação do trabalho e da festa, pelas identidades de “caramelos”
e de “malteses” ou ainda pelas raízes e laços que se criam em função do
sentimento de posse da terra.
Cristina
Prata não conta apenas a história, antes a problematiza para que o leitor não
seja levado a incorrer em ilusões sobre a ruralidade, sobretudo num tempo marcado
pelas vertentes de lógicas nem sempre compatíveis como são a ruralidade e a
industrialização. E, a terminar, a pergunta fica, repleta na sua inquietação,
convidativa pela interpelação que faz a todos e a cada um dos leitores: “Hoje
promovemos e perpetuamos a memória do rural mítico e bucólico, que o Estado
Novo sempre encenou, ou o rural de quem realmente lá viveu, trabalhou e do qual
tantos fugiram logo que o puderam fazer?”
Podemos
procurar neste livro a história da região vitivinícola, os dados que
transformaram esta terra num dos expoentes da produção de vinhos de qualidade
elevada, a própria forma como o concelho foi evoluindo ao sabor das políticas
de investimento ou de fomento. Mas mais importante parece ser o contacto com as
gentes, o registo dos dizeres e dos saberes daqueles que amanham a terra e
educam a vide, o saber estar e ouvir a experiência em primeira mão e o
transformar esses dizeres e aprenderes em matéria de investigação, de estudo e
de exemplo. É isso que Cristina Prata nos proporciona, com sensibilidade, bom
gosto e ternura e em linguagem acessível.
Muitas
razões para que este livro seja lido!
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