Adjectivar a Primeira Guerra Mundial com o
qualificativo “terrível” será talvez pouco. Mas, ao tê-lo feito dessa maneira,
quando escreveu A terrível Primeira
Guerra (Mundial), em 1998 (com tradução portuguesa em 2001, nas Publicações
Europa-América), Terry Deary (n. 1946) terá pretendido justificar a entrada do
tema e do título na série “História Horrível”, de que é autor, anunciada como
“a História que não esconde as piores partes”. A colecção visa um público de
jovens leitores e é recheada com ilustrações, que, no caso deste título, são
devidas a Martin Brown (n. 1959).
O excerto que Deary escolhe para iniciar a obra é o
testemunho de um soldado que esteve nas trincheiras, ali mesmo junto da
designada “terra de ninguém”: “Corpos e pedaços de corpos, e coágulos de
sangue, e um lodo verde metálico viscoso formado pelos gases explosivos
flutuavam à superfície da água. Os nossos homens viviam e morriam ali, a poucos
metros do inimigo. Agachavam-se por debaixo dos sacos de areia e escavavam
abrigos nas paredes das trincheiras. Estavam infestados de piolhos. Se cavassem
mais fundo para se protegerem melhor, as suas pás encontravam os corpos macios
daqueles que tinham sido os seus amigos. Pedaços de carne, pernas com botas,
mãos enegrecidas, cabeças sem olhos, caíam sobre eles quando o inimigo
disparava contra a sua posição.” Ainda que não sendo revelada a identidade do
autor desta descrição, ela não surpreende, pois traça um quadro que vários
outros combatentes descreveram, designadamente alguns portugueses.
A abordagem da Primeira Grande Guerra nesta obra surge
em capítulos alinhados ao ritmo dos anos em que ela decorreu, com títulos que
são, eles próprios, uma leitura dos acontecimentos: “1914 – O ano do primeiro
tiro”, “1915 – O ano da guerra total”, “1916 – O ano do Somme”, “1917 – O ano
da lama”, “1918 – O ano da exaustão”. Cada uma das partes inicia-se com breve
cronologia e o restante capítulo é ocupado com o relato de curiosidades e de
pormenores sobre o conflito, sobretudo abordando as formas de viver, não só dos
combatentes, mas também dos familiares e das populações, numa quase entrada
pelo quotidiano de uns e de outros.
Ao longo da obra, o jovem leitor vai tomando contacto
com a situação política europeia da época e com a divisão dos Estados
participantes na guerra, com a vida militar, com os marcos dessa fase histórica
e com muitas curiosidades sobre que se foi construindo o quotidiano. Mas o que
predomina no livro, eivado de humor, é o que aflige o homem que combate na
Frente (o soldado comum e não as chefias), independentemente do lado por que
lute – são os medos, os hábitos, as crenças, os truques para a sobrevivência, com
evidência para a necessidade de aprender a viver uma outra vida, assente em
condições precárias, de improvisação e de perigo, frequentemente acompanhado
pelas ratazanas e pelos piolhos. Simultaneamente, vão aparecendo referências
quanto às formas de vida das famílias, quanto ao papel da mulher nesta guerra e
quanto à maneira como a sociedade se foi fazendo sobre ausências ao longo de
uma guerra que, em vez de ter sido resolvida em três meses (como era esperado
no início), se prolongou por quatro difíceis anos.
Alguns testemunhos vão sendo invocados para este rol
de informações e de pequenas histórias, intervalando com apontamentos sobre
factos ou pormenores das vivências. Mas o mais importante testemunho é uma
aprendizagem ou um alerta que surge no epílogo e relembra a história de um
jovem soldado alemão que teve a sorte de não ter morrido quando um obus atingiu
a trincheira onde ele e os seus camaradas se encontravam, aquando da batalha do
Somme. Sobrevivente que foi, com muitos a caírem mortos ao seu lado, esse
soldado ficou com leves arranhões na face e viria a marcar – e de que maneira!
– a rota do século XX: era Adolfo Hitler. E, quase a concluir, refere Deary:
“Houve muitas tragédias na Primeira Guerra Mundial. Quase todas as famílias em
Inglaterra, em França, na Alemanha e na Rússia perderam alguém. Em qualquer
cidade ou aldeia poderás ver os nomes dos mortos em monumentos de pedra. Muitos
dos homens que se alistaram morreram juntos e deixaram as suas cidades natais desoladas.
Mas a verdadeira tragédia não foi essa. A coisa mais cruel de todas foi que a
Primeira Guerra Mundial não resolveu quaisquer problemas e não trouxe a paz.
Conduziu à Segunda Guerra Mundial e a muito, muito mais miséria, morte e
destruição.” Na origem deste segundo conflito do século XX esteve o tal soldado
que escapou quase ileso da trincheira do Somme…
Esta conclusão do autor é o pretexto para a
recomendação pedagógica com que o livro encerra: “A história pode ser horrível.
Mas cada um de nós deve descobrir o monumento aos mortos da guerra mais próximo
de onde vive, ir lá e ler os nomes. Depois deve dizer ‘Nunca mais’. Se toda a
gente disser isso, com sinceridade, então as mortes não terão sido em vão.” Dois
apelos, pois: o de respeitar a memória e a obrigação que todos temos de evitar
que a paz seja apenas uma utopia.