Confronto-me com a notícia da
morte de Urbano Tavares Rodrigues e sinto a tristeza de uma despedida ao mesmo
tempo que a felicidade por o ter conhecido. A última vez que falei com ele foi
na edição da Feira do Livro de Lisboa deste ano, numa tarde quente de domingo.
Relembrou episódios das aulas na Faculdade de Letras, recordou os amigos setubalenses
da livraria Culsete Fátima e Manuel Medeiros (para quem enviou um abraço, que
transmiti), falou-me do filho mais novo (que por acaso não estava ali naquele
momento), contou-me que estava a escrever o seu último romance. Perguntei-lhe
se não escreveria memórias. Que não, que em muitas das suas obras havia o cunho
da memória e da autobiografia, que não era isso que o interessava mais. Toda a
conversa foi de paixão, de gentileza, de suavidade e de sensibilidade, tal como
sempre nos habituou. Houve ainda tempo para uma fotografia conjunta que a minha
filha disparou. E fiquei com vontade de nos voltarmos a encontrar… onde quer
que fosse: na Feira do Livro (onde falámos várias vezes), na Culsete, em Lisboa…
ao mesmo tempo que relembrei as aulas de há cerca de três décadas, a
apresentação que fiz do seu livro Violeta
e a noite em Setúbal, o testemunho que sobre ele dei em 2003, em Setúbal,
quando a Culsete quis também assinalar os 50 anos de vida literária de Urbano
Tavares Rodrigues.
É por isso tudo que abaixo reproduzo tal testemunho, datado de 25 de
Janeiro de há dez anos, que continua a conter o essencial do que o professor Urbano
foi para mim, do que o professor Urbano me deu. Para ficar na memória!
Não sei de quando vem o meu contacto com Urbano
Tavares Rodrigues, mas sei que vem de muito longe, desde quando ainda nem
pensava que viria a licenciar-me em Letras, muito menos imaginando que o iria
ter como professor. Também não sei qual foi o primeiro livro que dele li –
talvez A Noite Roxa, que me lembro de me ter sido emprestado por um amigo e
que, mais tarde, adquiri para nele reler uma interessantíssima narrativa como
“Escombros”, quase retrato de uma geração, e para nele fazer uns sublinhados
que me tinham impressionado nessa leitura sobre a vida e a arte... Talvez o
primeiro livro que li de Urbano não tenha sido este, mas tenha sido uma recolha
literária sobre Estremadura, nessa quase indispensável colecção que é a
“Antologia da Terra Portuguesa”, testemunho da indispensabilidade que a
literatura se torna para dizer a terra, para dizer o homem, antologia, aliás,
onde creio que tive um dos primeiros contactos com Sebastião da Gama, que topou
e mostrou a alma arrábida em toda a sua maravilha... Ou talvez a minha primeira
leitura de Urbano Tavares Rodrigues tenha sido outra. Recordo, no entanto,
estas duas como as mais antigas que dele conheço.
Em 1979, entrei para uma
licenciatura na Faculdade de Letras, ingresso já tardio porque me era
necessário trabalhar, mas atempado porque pôde ser no curso que queria e na
Faculdade que me ficava mais à mão, em horário cumprido depois das 17 horas.
Lembro-me de várias pessoas que tive como professores e pelas quais senti uma
admiração grande desde logo, que, em alguns casos, virou amizade, já em tempos
posteriores ao curso (em jeito de aparte ou de excurso, vou apenas referir o
António Vilhena, hoje professor em Setúbal [entretanto aposentado], poço de cultura e de
disponibilidade, que conheci como professor de Latim na Faculdade e cujas aulas
eram autênticos tratados – ainda que sem o peso que os caracteriza – sobre
cultura portuguesa, com especial incidência na literatura, e sobre as marcas
clássicas que a enformam).
Mas voltemos a Urbano Tavares
Rodrigues, que tive como professor de Literatura Francesa. Uma das coisas que
me fascinou na minha licenciatura foi o facto de ter conhecido escritores
enquanto professores, podendo assim usufruir da sua experiência enquanto
artistas e criadores e do seu estatuto enquanto professores, intelectuais e
cidadãos intervenientes, que eram vários. O professor Urbano Tavares Rodrigues
não fugiu a este quadro. E, se foi apaixonante a forma como nos fez ouvir a
solidariedade e o social presentes em Germinal, se foi suave a maneira
como nos fez entrar nos domínios do erotismo de La Motocyclette, se foi
a tocar o fascínio que nos falou de uma obra como Le Ravissement de Lol V.
Stein, certo é que todos estes predicados se construíram como metáforas
dele próprio, isto é, a delicadeza do discurso, a singeleza das práticas, a
simpatia da disponibilidade, o aprofundar permanente no cruzamento da
literatura estudada com as múltiplas e incansáveis referências advindas da sua
experiência de escritor, o sorriso disponível numa atitude de quem parecia tudo
oferecer fazendo passar o universo literário numa relação constante de
tu-cá-tu-lá para um degrau de contínua admiração pela arte... enfim, tudo isto
nos foi transmitindo, tudo isto foi partilhando, porque o todo das suas aulas
se nos afigurava também como uma partilha de reflexões e de angústias da
estética e do sentir.
A permanente abertura do
professor Urbano Tavares Rodrigues nunca lhe deixou escorregar um “não”.
Recordo que, mesmo perante trabalhos ou observações de qualidade menos
desejada, a sua atitude era de tentar dar a volta de forma subtil, não negando
a pouca pertinência do resultado (ou, muitas vezes, a sua impertinência) e
incluindo no seu comentário as pistas de orientação que o estudante deveria
aproveitar ou explorar.
Habituei-me, assim, a olhar
o professor Urbano Tavares Rodrigues como uma personagem dedicada, disponível e
atenta (mesmo quando parecia que dormitava perante algumas apresentações de
trabalhos, fazendo, no final, o seu comentário acertado e límpido), como uma
personagem participante (frequentemente trocando opinião connosco sobre
posições públicas a propósito de questões culturais e de ensino), como alguém
sempre pronto a incentivar os voos de quem quisesse ir mais longe ou de quem
precisasse da sua ajuda. Recordo que, no último ano da licenciatura, estudei a
autobiografia em José Gomes Ferreira, a propósito do seu livro A Memória das
Palavras, para a cadeira de Teoria da Literatura, leccionada por Lucília
Gonçalves Pires. Ser-me-ia útil falar com Gomes Ferreira, mas ele estava a
passar um mau momento de saúde, pela sua debilidade de 80 anos. Foi, aliás, o
professor Urbano que me pôs ao corrente do estado de saúde de Gomes Ferreira,
mas, logo que soube das suas melhoras temporárias, falou-lhe e pôs-nos em
contacto, assim me tendo sido proporcionado um encontro de cerca de três horas
com esse “poeta militante”, na sua casa da rua Rio de Janeiro, em que quase me
limitei a ouvi-lo e em que grande parte da sua conversa não foi sobre poesia,
mas foi poesia. Passadas cerca de duas semanas, o professor Urbano encontrou-me
na Faculdade, perguntou-me pelo andamento do trabalho, tendo-lhe eu dito que o
mesmo já tinha sido apresentado e avaliado. Quis vê-lo, porque, argumentou,
“acho que tenho alguma responsabilidade nesse trabalho”. Dei-lhe uma cópia e,
volvidos uns dias, propôs-me que o texto fosse publicado no “Suplemento
Cultural” do Diário. Respondi que sim, meio sem jeito. Soube depois que
era sua prática corrente incentivar os alunos à publicação de trabalhos e mesmo
à edição.
Concluída a licenciatura,
abandonei também o trabalho que tinha e passei para o ensino. Em 1985, estando
em Beja – onde confesso que aprendi a gostar do Alentejo –, ao rebuscar numas
prateleiras já esquecidas e poeirentas de uma livraria da cidade, encontrei um
livro sobre Urbano Tavares Rodrigues, intitulado Escritor da Fraternidade,
da autoria de Pires Campaniço. Já não contactava o professor havia cerca de
dois anos, depois que saíra da Faculdade. Comprei o exemplar por uma bagatela e
li as suas 130 páginas – fortemente ideologizadas – nesse mesmo dia, mais no
sentido de ter um ponto de contacto com alguém que me impressionara fortemente.
O livro lembrou-me o professor, sobretudo, e pareceu-me que o título escolhido,
ao eleger a fraternidade para caracterizar o escritor, tinha acertado no ponto.
Fraternidade, como quem diz solidariedade, como quem afirma disponibilidade...
são lógicas de atributos que resultam bem se aplicados a Urbano Tavares
Rodrigues.
Fui, entretanto, descobrindo
também a sua faceta de ensaísta na área da literatura e de escritor de viagens,
sempre encostando as obras abordadas a referentes culturais importantes ou as
viagens a itinerários não menos sentidos (talvez sentimentais), como descobri
num relato seu sobre Santiago de Compostela, publicado em 1949, verdadeira
peregrinação no espaço e no eu, na busca de outras artes e do conhecimento do
mundo.
Encontrámo-nos depois em
diversas situações mais ligadas à literatura (por exemplo, na sua defesa da
tese de doutoramento sobre Teixeira-Gomes, ou na apresentação de Violeta e a
Noite aqui neste mesmo espaço da Culsete), sempre relembrando tempos da
minha vida de estudante. Mas quando andei ocupado com um mestrado sobre a
revista portuguesa dos anos 50, Távola Redonda, em que Urbano Tavares
Rodrigues colaborou com uma tradução a partir do italiano – coisa que não é
novidade, depois de se ter visto a tradução por si feita do Decameron,
de Bocaccio, que também terá sido um dos meus contactos antigos com ele –,
voltei a poder certificar a disponibilidade, a atenção, o saber, o testemunho,
a delicadeza... Na noite de um dia 22 de Abril, passantes que eram já as dez da
noite, Urbano Tavares Rodrigues recebeu-me em casa, ali na Tomás Ribeiro, para
uma conversa sobre a revista, que acabou por ser também sobre a literatura
portuguesa dos anos 50, que acabou por ser também sobre a sua obra, que acabou
por ser o prolongamento de um fio de disponibilidade sempre demonstrada.
A mais recente vez em que
nos encontrámos foi há bem pouco tempo, no mês passado, na apresentação do
último livro de poesia de Teresa Rita Lopes. E o que nos uniu? Para lá de tudo,
o professor Urbano Tavares Rodrigues falou-me, de imediato, do tempo da
Faculdade e da lembrança das suas aulas. Ao fim e ao cabo, um tempo marcante,
de aprendizagem e também de conhecimento, lados ambos de uma mesma estrada.
Mantenho o gosto por Urbano Tavares Rodrigues enquanto escritor múltiplo e
multifacetado, mas quero preservar também esta recordação feliz de um Urbano
Tavares Rodrigues professor e mestre, dedicado, sabedor, atento, delicado e
prestável, fazendo da literatura uma forma de criação e do ensino uma via de
reflexão... ou talvez, e sobretudo, conjugando os dois percursos no rumo da
disponibilidade para uma vivência de transformar a arte em cidadania. Não
resisto sem ler quatro linhas de um seu escrito de cunho autobiográfico,
publicado sob o título de “Apontamentos e Confissões”, no livro de ensaios
sobre O Tema da Morte: “Já na minha adolescência desejava ser escritor,
embora outras profissões me seduzissem, tais a de médico e a de professor: no
fundo, aquelas que me permitissem ancorar e sentir-me útil.” É uma justificação
simples, claro. Mas testemunho que, na sua simplicidade, a senti. E vivo bem
com essa lembrança e exemplo.
Sem comentários:
Enviar um comentário