terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

Sebastião da Gama, 60 anos depois

Já lá vão 60 anos sobre o 7 de Fevereiro de 1952, data em que, logo pela manhãzinha, a vida abandonava Sebastião da Gama no Hospital de S. Luís, em Lisboa, depois de, na véspera, ter sido transportado desde o seu Estremozinho… A última palavra que terá dito, sabemo-lo pela Joana Luísa, mulher do poeta, foi “poesia”, conforme ainda recentemente recordou na reportagem publicada na revista do jornal Sol. E não deixa de ser curioso, no mínimo, que o percurso poético de Sebastião da Gama se tenha iniciado na infância, com uma quadra engendrada depois de uma visita à Arrábida, para reportar à família uma descoberta – “Fui passear / à serra da Arrábia / e encontrei / uma mulher grávia” –, e se tenha concluído com essa palavra que lhe foi mágica, a “poesia”, já pronunciada com a dificuldade de quem sentia que lhe fugia!...
Sebastião da Gama foi poeta na vida e na escrita. Isto é: Sebastião da Gama foi, sobretudo, poeta e viveu poetando. Em 27 anos que peregrinou, escreveu, escreveu, escreveu. Publicou três livros, de títulos sugestivos, dando a ideia de uma sequência que emergiu de um ponto que lhe foi âncora forte – a Arrábida – para chegar à totalidade de um espaço livre, universo franco à poesia, depois da passagem do cabo. Veja-se essa trilogia: Serra Mãe (1945) – Cabo da boa esperança (1947) – Campo aberto (1951). Que mais completo itinerário se poderia desejar? Bem ele dizia: “meu caminho é por mim fora”…
No dia 8 de Fevereiro de 1952, a Azeitão acorreu um universo de admiradores e amigos, aí se reunindo, não apenas os conterrâneos, mas também os seus colegas (Mourão-Ferreira e Lindley Cintra, por exemplo), os seus professores (Hernâni Cidade, por exemplo), os seus alunos (Nicolau da Claudina, por exemplo, o jovem que não resistiu ao fascínio do mestre e, a pé, fez o caminho entre Palmela e Azeitão para a última despedida devida ao seu professor). A comoção terá sido muita, imagina-se. Os jornais noticiaram. E David Mourão-Ferreira, o amigo que talvez mais tenha escrito sobre Sebastião da Gama – fosse como análise da obra, fosse como testemunho memorialístico –, registou o facto no seu diário, peça ainda inédita, inscrevendo no dia 9: “Lisboa. 3 horas da tarde, Pastelaria Herculano: Ontem, enterro do Sebastião. Estava um dia lindíssimo: atravessei o rio e fui, de camioneta, até Azeitão; apeei-me precisamente no local onde, há cinco anos e meio, ele me esperara, quando da primeira vez que fui à Arrábida. Desta vez, porém, não subimos a serra. Acompanhei-o ao pequeno cemitério da vila, onde agora repousa no ‘campo aberto’ que ele próprio previra. Era o melhor de todos nós, o Sebastião: o menos literato de todos nós.” O registo é curto, mas é comovente.
Nesse 7 de Fevereiro de 1952, passam agora 60 anos, iniciava-se a memória de Sebastião da Gama. Para trás, ficava um percurso feito de alegria e de humor, num desafio permanente à vida; ficava a convicção da aliança com a Natureza, celebrada pela palavra e materializada também na defesa da serra (uma carta sua, de 1947, foi o ponto de partida para a criação da Liga para a Protecção da Natureza, no ano seguinte); ficava uma experiência pedagógica vivida e relatada de forma ímpar, que ainda hoje é uma revelação e uma pista para professor que se preze; ficava uma obra constituída por cerca de novecentos poemas (muitos ainda inéditos), centenas de cartas (a sua epistolografia não foi ainda estudada e só uma pequena parte está publicada), um diário, diversos ensaios; ficava uma vida cimentada de leituras, muitas e variadas, de escritos que lhe foram contemporâneos ou anteriores a si, de latitudes distintas; ficava uma licenciatura e um percurso de professor, a todos os títulos julgado ímpar (pelos alunos, pelos seus orientadores e professores, pelos seus colegas); ficava a passagem de testemunhos para outros (Mourão-Ferreira reconheceu, em diversos momentos, o quanto ficou a dever a Sebastião da Gama nos faróis literários que lhe apontou, mesmo de outras literaturas que não a portuguesa); ficava uma colaboração intensa em jornais e revistas, num percurso por vários pontos do país (desde Braga até Elvas); ficava uma colecção de poemas dispersos por livros de curso, num gesto de dádiva aos amigos... Tudo isto num percurso que não ultrapassou a idade de 27 anos, num trajecto em que as primeiras assinaturas em poemas surgiram em 1939 (um itinerário literário de pouco mais de doze anos), num caminho que foi traçado a par com uma doença de recuperação suspeita e que acabaria por o vitimar – a tuberculose manifestara-se-lhe por 1938.
Uma vida intensa, feita de literatura e de olhares sobre o mundo. De que ficou uma obra que merece ser lida e estudada. Sebastião da Gama sempre quis que os amigos e os leitores dissessem o que pensavam da sua obra. A correspondência e os encontros que teve com Torga, Pascoaes, Régio e muitos outros aconteceram a pretexto da admiração, mas também com o fito de saber o que eles pensavam sobre os seus escritos. Assim, foi extremamente criterioso no que publicou e na forma como o fez. Quando morreu, tinha já ordenado outro livro, que viria a ser dominado pelo verso conhecido “pelo sonho é que vamos”. A publicação da sua obra prosseguiu em edições póstumas, num trabalho que se ficou a dever, sobretudo, a Joana Luísa da Gama, a mulher que teve a sensibilidade suficiente para não deixar que a obra de Sebastião se finasse com esse 7 de Fevereiro… mas que teve também o concurso cuidado de amigos como Lindley Cintra, Mourão-Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Lourdes Belchior, Hernâni Cidade, Luís Amaro, Couto Viana e António Osório. É graças a esta constelação que, hoje, podemos continuar a conviver com a palavra de Sebastião da Gama, um poeta que não se deixou enredar em escolas e que serviu a taça do lirismo a todos os convivas da mesa literária.
Que melhor forma de concluir esta evocação senão com as palavras de Ruy Belo, também poeta? Ele, que foi o primeiro prefaciador de uma obra de Sebastião da Gama que não fez parte do seu círculo de amigos, que nem o conheceu pessoalmente, escreveu na revista Rumo, em 1957: “Um poeta é o que foi. Está aí. É assim. (…) Sebastião da Gama é um poeta integral (…). O que sai da sua pena aparece transmutado, digerido, obtido através de um conhecimento co-natural em que a distinção entre matéria e forma, se existe, equivale à distinção entre obra e não obra (…). A esta luz se pode apreciar a sua autenticidade. Nem nos impõe a sua própria vontade de homem, que fica lá atrás com a vida, com as suas circunstâncias, com a sua biografia, nem a sua voz se faz ouvir devido a razões extra-literárias. (…) Nem romântico, nem social, portanto. Poeta, simplesmente.”
Sebastião da Gama aí está, pois. Sessenta anos volvidos, merece a nossa leitura. É a melhor forma de construirmos a memória e de o homenagearmos.
[Na foto: lápide colocada na casa onde Sebastião da Gama viveu até aos 14 anos, em Azeitão, em homenagem que ali foi prestada em Fevereiro de 1953]

5 comentários:

argumentonio disse...

belíssima evocação e homenagem, ao poeta, simplesmente, mas também ao ser tão extraordinário que foi Sebastião da Gama, cujo fascínio perdura intacto e indicia caminhos de futuro ;_)))

aureliano carvalho disse...

Este artigo, escrito por quem conhece profundamente a Obra de Sebastiao da Gama, permite que nós conheçamos melhor o grande Homem.
Foi há 60 anos que fisicamente nos deixou, mas, a Obra legada, extremamente bem tratada pelo Joao, reforça a afirmaçao de que há Homens que nunca morrem, apenas deixam de estar presentes fisicamente.
Obrigado Joao, por mais uma vez nos permitir um melhor conhecimento da Grande obra do "imortal" Sebastiao da Gama.
um abraço. Aureliano

Eduarda Gonçalves disse...

Sebastião bem merece...
O íntimo testemunho de D. Joana recentemente publicado.
Este completíssimo texto de J. Reis Ribeiro que nos faz sentir tão agradavelmente perto do Poeta. Que não partiu porque, na verdade, "o Poeta fica".
Tanto mais, quanto mais o lemos e o dizemos.
Obrigada!

Anónimo disse...

Lendo Sebastião ficamos mais puros.
Obrigada ao poeta e àquele que mo dá a conhecer cada vez melhor.
MCT

Ana Maria Paiva disse...

Sou profunda admiradora do grande poeta Sebastião da Gama. As suas palavras são muito belas e puras. Como professora, penso que todos os professores deveriam ler o seu " Diário". Ficará para sempre na memória daqueles que conhecem a sua obra e para as gerações vindouros. Homem de uma grande integridade e sensibilidade. Obrigada Sebastião da Gama!