domingo, 12 de fevereiro de 2012

Mercado do Livramento, em Setúbal - breve historial

Painel de azulejos da parede sul no Mercado do Livramento (O Setubalense, de 27.Junho.2005)

Nos primeiros anos do século XX, o poeta setubalense António Maria Eusébio, mais conhecido por "Calafate", dava a conhecer aos contemporâneos as suas décimas sob o título de "Recordações da Minha Vida", conjunto de memórias de quem viu as modificações sadinas ao longo de quase um século (1819-1911). Referindo-se à época em que apareceu o Mercado do Livramento, lembrava o "Cantador de Setúbal", a testemunhar o movimento dos produtos agrícolas naquele espaço: "Vi a nossa praça antiga / Com quarenta hortelonas / Da cidade e palmelonas / Muita velha e rapariga. / Cada qual na sua giga / Tinha o seu lugar marcado".
Construído na esplanada do baluarte do Livramento, junto à ribeira do mesmo nome, o Mercado do Livramento foi inaugurado em 31 de Julho de 1876, pelas seis horas da tarde, data em que passavam os cinquenta anos sobre o início da vigência da "Carta Constitucional".
Até essa data, o mercado funcionava em dois pontos da cidade: na Ribeira Velha, era vendido o peixe; num recanto da Praça do Sapal (actual Praça de Bocage), procedia-se à venda de produtos hortícolas. A dispersão e a falta de higiene terão sido duas razões que determinaram a construção do Mercado do Livramento.
Poucos dias antes da inauguração, a Câmara sadina publicou edital a avisar que, a partir da inauguração do Mercado, seria proibida a venda de "peixe, frutas, hortaliças, etc., nas praças onde até ao presente se expõem à venda aqueles géneros, devendo os vendedores, quer de peixe, quer de frutas e hortaliças, tomar os lugares que pretenderem no referido mercado pela ordem que lhes for indicada pelo fiscal". Por outro lado, a vigilância e controlo sobre as condições higiénicas dos alimentos em venda constituíam outra área de intervenção, tal como se pode verificar pelo noticiado no semanário Gazeta Setubalense, de 6 de Agosto de 1876: "O sr. Santana, fiscal do novo mercado público, fez enterrar duas porções de peixe arruinado que se estava vendendo ao público". Logo a seguir, o jornal lembrava: "Tem havido grandes abusos com a venda de peixe naquele estado e bom é que se não repitam".

o corte da fita
A inauguração do Mercado do Livramento ocorreu também em período da Feira de Santiago, tendo a Gazeta Setubalense informado que, no domingo que antecedeu a inauguração, cerca de mil e quinhentas pessoas tinham vindo a Setúbal de comboio, data em que a Filarmónica do Lavradio actuou no Passeio da Praia.
Se, presentemente, o Mercado encerra à segunda-feira, certo foi que a sua inauguração teve lugar nesse dia da semana, em cerimónia que reuniu a vereação actual e a anterior, tendo o Presidente da Câmara, António Rodrigues Manito, discursado sobre "a utilidade do novo mercado, considerado como meio higiénico e pela comodidade pública que dele resultará", como relatava a Gazeta Setubalense. O povo acorreu à festa de tal forma que a imprensa referiu que "quase todos os operários deixaram de trabalhar, associando-se assim na manifestação de júbilo que sempre deve suscitar um melhoramento tão importante". À noite, o Mercado "foi iluminado a gaz e por meio de balões de cores", com actuação da filarmónica da Capricho.
O edifício, com planta desenhada pelo apontador de obras públicas Marcelino Alemão de Mendonça Cisneiros de Faria, fora já apresentado pelo mesmo jornal, no dia anterior à inauguração: "o mercado forma um quadrilongo de 80 metros de comprido por 52 de largo; a sua fachada voltada para a Rua da Praia está encimada com as armas do município abertas em mármore; tem 33 casas bem construídas, duas das quais servem para estação fiscal do município e alfândega e as outras para venda de géneros; em 7 rectângulos, simetricamente dispostos e separados por espaçosas ruas para trânsito público, há 44 mesas, 24 de pedra para venda de peixe e 20 de madeira para venda de hortaliça". A questão da limpeza do espaço e das bancas não fora esquecida: "dentro do mercado, há um poço, cuja água se extrai por meio de bomba e é conduzida por canalização às casas de salga e preparo das pescarias, onde existem os competentes canos parciais para despejo que comunicam com o cano geral".
As inovações eram de tal forma que, logo no ano seguinte, Alberto Pimentel registava na sua obra Memória sobre a História e Administração do Município de Setúbal que "Lisboa não possuía ainda um mercado relativamente tão bom como este" e enaltecia as condições do Mercado e a sua localização, "pois que fica a igual distância dos dois bairros extremos da cidade, o de Tróino, a oeste, o de Palhais, a leste". Poucos anos depois, Pinho Leal anotava, no nono volume de Portugal Antigo e Moderno, que o edifício era "incontestavelmente" um dos mais sumptuosos "deste género, que actualmente existem em Portugal".
Relativamente aos custos, Pinho Leal registou que a construção do Mercado custara 28 contos, verba obtida pela Câmara através de empréstimos. As previsões apontavam para um rendimento anual de três contos a favor da Câmara, importância que, rapidamente, reporia as verbas gastas. No início de 1877, com seis meses de funcionamento de Mercado, o fiscal Santana divulgava as contas, apontando receita líquida no valor de um conto e 679 mil réis. As quantias cobradas eram, no entanto, elevadas e motivavam queixas, como o deixou cantado o poeta Calafate: "Temos novo mercado / Para recreio da cidade. / Quem o paga somos nós, / Isto é a pura da verdade".

marco da cidade
Em função do desenvolvimento sentido em Setúbal, por decisão camarária da equipa presidida por Carlos Botelho Moniz, o Mercado viria a ser demolido para, no seu lugar, ser construído outro, com obra iniciada em 1927 e concluída três anos depois. Durante este período, a venda dos produtos passou a ser feita em barracões construídos na Praça Almirante Reis (actual Largo dos Combatentes).
Mais uma vez, o mês de Julho foi o escolhido para a inauguração das obras. Em 10 de Julho de 1930, era retomada a actividade de venda no Mercado do Livramento. O jornal O Setubalense desse mesmo dia registava: "no amplíssimo Mercado pairaram a alegria e a satisfação de todos os setubalenses; foi dia de festa para os que de há muito almejavam este benefício; dia de regozijo para os que edificaram, duma vez para sempre, uma obra digna, que bem serve a nossa cidade".
O novo Mercado, com exterior ao gosto "Art Déco" da época e colunas em ferro fundido, inseriu, na parede interior sul, vários painéis de azulejo, legendados, de teor folclórico, assinados por Pedro Jorge Pinto (1900-1983) e executados por Lena, datados de 1929 ("Descarga das Redes", "Transporte do Sal", "Reparação das Redes", "Recolha do Sal", "Descarga da Sardinha", "Salga do Peixe", "Setúbal - Vista Geral" e "Colheita da Azeitona") e de 1930 ("A Vindima", "O Antigo Mercado" e "Rega do Pomar"). Um outro painel inserido no mesmo conjunto e datado da mesma época, "Lavra e Sementeira", foi restaurado em 1991 por Andreas Stocklein.
Posteriormente, as duas entradas do lado norte, a partir da Avenida Luísa Todi, foram também decoradas com painéis de azulejo, contendo quadros da cidade, do Sado e do campo, não legendados, datados de 1944, pintados por Rosa Rodrigues e feitos na Fábrica Battistini.
Constituindo uma atracção, estes painéis, fazendo recuar a história até ao antigo mercado na Ribeira e enaltecendo marcas da identidade que fez Setúbal, associados ao valor arquitectónico do edifício, colocaram o Mercado do Livramento na rota cultural da cidade.
No entanto, os painéis azulejares da parede sul tiveram, a partir de Maio de 2010, de ser sujeitos a protecção, porquanto caíram várias das peças decorativas, tendo sido aventada a hipótese de reconstituição num regime de parceria. Entretanto, as condições do Mercado tiveram de ser sujeitas a melhoramentos e, no início de Outubro de 2010, o edifício foi encerrado e submetido a obras de reconversão e reorganização de espaços, tendo os serviços de fornecimento e venda continuado a funcionar em terrenos adjacentes de uma antiga conserveira e em instalações improvisadas nas ruas Ocidental e Oriental do Mercado. As obras duraram cerca de um ano, acontecendo a reabertura em 11 de Outubro de 2011, com uma remodelação que, de uma forma geral, agradou, ainda que sem o funcionamento dos espaços comerciais da galeria do primeiro andar, cujas obras se mantiveram em curso.
Os painéis azulejares da parede sul permaneceram protegidos e foram introduzidas novas obras de arte da autoria de Augusto Cid – as esculturas de figuras típicas do Mercado, representado o descarregador de peixe, a vendedeira de galinhas e de ovos, o homem do talho e a vendedeira de flores, peças oferecidas pela Fundação Buehler-Brockhaus.
Na tarde de 7 de Fevereiro, o país foi surpreendido com a derrocada total da parede sul do Mercado do Livramento, que provocou cinco mortes a trabalhadores que executavam obras de ampliação do espaço destinado ao Mercado. O saldo foi trágico nesse acidente ocorrido pelas 17 horas ao não terem sido poupadas vidas humanas. Com o desabamento, desapareciam também os octogenários painéis de azulejos. O Mercado esteve encerrado até averiguação das condições de segurança e reabriu quatro dias depois, em 11 de Fevereiro. Entretanto, a Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão (LASA), ao mesmo tempo que tornou público o lamento pelas vidas perdidas, defendeu a reconstituição dos painéis de azulejo.


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