“Os finais do século XIX e o primeiro quartel do século XX são marcados em Setúbal, como em todo o país ‘urbano’, pela presença e coexistência, por vezes difícil, do movimento republicano e do movimento operário e sindical, predominantemente anarco-sindicalista.” Assim começa o último livro do historiador setubalense Álvaro Arranja,
Anarco-sindicalistas e Republicanos – Setúbal na I República (Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2009), apresentado publicamente no fim-de-semana passado.
Ao longo das duas centenas de páginas, o autor vai provar essa dificuldade de coligação, que culminará em divórcio, dividindo o seu trabalho em duas partes: uma, de narração e interpretação histórica, a mais longa, partindo de fontes como a imprensa local, sobretudo a imprensa comprometida com o movimento operário; a outra, preenchida por uma dúzia de textos (documentais e uma cronologia), que consolidam o trabalho de Álvaro Arranja.
A história do associativismo e do movimento operário sadino recua a meados do século XIX, com o autor a fazer uma incursão no papel desempenhado pelo jornal
O Setubalense, fundado por Almeida Carvalho em 1855 (o que faz deste título, ainda hoje em publicação, um dos mais antigos da imprensa portuguesa, se bem que não o jornal mais antigo, uma vez que houve várias interrupções na sua história), fortemente associado ao aparecimento da Associação Setubalense das Classes Laboriosas, em cuja criação Almeida Carvalho igualmente participou. Há também incidência sobre a primeira década do século XX setubalense no que respeita ao movimento operário, fortemente influenciada pela ocorrência de greves (dos pescadores, dos soldadores, dos conserveiros, dos marítimos, dos carregadores de sal, dos tipógrafos, dos condutores de sal, dos corticeiros, de mulheres operárias) e pelo aparecimento de jornais ligados ao operariado (
O Produtor, “dos soldadores e do povo operário”, em 1900;
O Trabalho, “da classe operária”, em 1900;
O Libertador, “dos praticantes farmacêuticos”, em 1901;
O Germinal, “defensor dos oprimidos”, em 1903).
Com estes elementos, fácil se torna perceber que o congresso do Partido Republicano, realizado em Abril de 1909, onde foi decidido o derrube do sistema monárquico pela via da revolução, tenha ocorrido em Setúbal, justificando Álvaro Arranja que, “em Setúbal, os republicanos sentiam-se em casa”, porque se tratava “de um dos centros urbanos mais influenciado pelo republicanismo, pela adesão aos princípios igualitários proclamados desde a Revolução Francesa”.
Tais ingredientes conduzem a uma esperança acentuada nos efeitos que poderiam advir da implantação da República (desejo que o historiador acentua com a descrição do que era o quotidiano operário nessa primeira década do século XX em Setúbal) e não é por acaso que a noite de 4 de Outubro de 1910 vê o edifício da Câmara Municipal a ser destruído por um incêndio, num acto que foi consequência da contenda entre os populares e a polícia.
De igual forma, as exigências à República se notam na região do Sado, tal como o prova a realização da primeira greve geral ocorrida em Fevereiro de 1911, que os trabalhadores das fábricas das conservas prolongaram até 12 de Março. A tensão agudiza-se com a morte de dois grevistas numa manifestação na Avenida Luísa Todi em 13 de Março (Mariana Torres e António Verruga), ocorrida quando a Guarda Republicana tentava conter grevistas (acto que, segundo o periódico
O Trabalho, “foi o baptismo de sangue da jovem Guarda Republicana”, e que, de acordo com o jornal lisbonense
Terra Livre, assinalou a data “que marca o divórcio da República com o operariado”).
As manifestações do movimento operário são acompanhadas por Álvaro Arranja até Janeiro de 1934, aquando da greve geral convocada pela CGT para o dia 18, contestando o salazarista Estatuto Nacional do Trabalho, que deu origem a prisões e a um recrudescimento da repressão, assim considerando o autor que esta foi a data da “última grande acção do movimento sindicalista que tinha enquadrado os trabalhadores portugueses na I República”.
Pelo livro de Álvaro Arranja vão passando figuras que obtêm para o operariado o estatuto de heróis, como Mariana Torres ou António Verruga ou como Jaime Rebelo (ligado à greve dos marítimos de 1931); vão passando cruzamentos com a expressão literária, com referências a criadores como Alves Redol (que, em
Os Reinegros, evoca os trabalhadores mortos na manifestação de 1911), Jaime Cortesão (a propósito de um seu poema, “Romance do homem da boca fechada”, sobre Jaime Rebelo) ou Émile Zola (sobre o significado do seu romance
Germinal e o simbolismo associado ao jornal de título homónimo que se publicou em Setúbal entre 1903 e 1913); vai passando a história da imprensa operária e sindical praticada em Setúbal, considerada a fonte de informação essencial para este trabalho (com destaque para os títulos
O Trabalho,
Germinal e
A Voz Sindical, com capítulos específicos, bem como para a acção que opôs o poder político ao jornal
O Setubalense em 1927); vai passando o pulsar da vida agitada e lutadora da Setúbal dessas três décadas, em parte ritmada pelas descrições e narrações jornalísticas, quase levando o leitor a presenciar os acontecimentos. Todos estes factores se conjugam para que este estudo constitua um bom elemento de informação e de explicação sobre alguns sucessos e insucessos das políticas da época, bem como um interessante documento sobre algumas marcas da identidade setubalense.