“Era meu propósito condensar num livro os vários e diversos lances de um dia de guerra em França.” Assim começa Ramón del Valle-Inclán o seu livro A Meia-Noite - Visão Estelar de um Momento de Guerra recentemente editado em versão portuguesa (Porto Editora / Assírio & Alvim, 2018). Era, pois, intenção do autor relatar a guerra, a partir de diversas latitudes e a um tempo, de forma a haver uma visão de conjunto. Coisa impossível, como se imagina - e como o próprio autor admitiu no mesmo texto prefacial, ao dizer que “todos os relatos estão limitados pela posição geométrica do narrador.”
Valle-Inclán (1866-1936), galego, pertencente a um país que manteve a sua neutralidade aquando da Primeira Grande Guerra, cedo assumiu uma posição a favor dos Aliados, ao subscrever, em 1915, o “Manifiesto de los Intelectuales Españoles”. No ano seguinte, em Abril, por indicação do seu amigo Jacques Chaumié, tradutor, visitaria França, andando, pelos finais de Maio e início de Junho, pela “Frente”, na zona das trincheiras. Passados uns meses, entre Outubro de 1916 e Fevereiro de 1917, o periódico madrileno El Imparcial publicaria as crónicas resultantes dessa viagem, que Valle-Inclán reuniria em livro ainda em 1917, apresentando visões de uma guerra que só viria a acabar em Novembro de 1918.
Ainda na nota introdutória, Valle-Inclán refere já indicações do que viria a ser o sofrimento por causa da guerra, antecipando um quadro que foi real e dramático: “Quando os soldados de França voltarem às suas aldeias, e os cegos caminharem pelas veredas com os seus cães, e os que não têm pernas pedirem esmola à porta das igrejas, e os mancos correrem de um lado para o outro com alegre ofício de recebedores do dízimo; quando no fundo dos lares se nomearem os mortos e se rezar por eles, cada boca terá um relato distinto, e serão centenas de milhares os relatos, expressão de outras tantas visões, que acabarão por resumir-se numa visão, cômputo de todas. Desaparecerá então o pobre olhar do soldado, para criar a visão colectiva.” De facto, todas as marcas que ficaram da guerra, físicas ou psicológicas, assemelharam-se a um estado de ruína humana, povoado pela dor, pelo sofrimento, pelo desgaste e pela descrença. Depois de um século cheio de guerras como foi a época oitocentista, o menos desejado era o ciclo da guerra - mas foi exactamente o que aconteceu.
Nas trincheiras visitadas por Valle-Inclán, fedia “a morto como na jaula das hienas”, não se calando “o estrondo do canhão rolante pelo seu céu”. O desprezo pelo humano era intenso - “os ratos correm vivazes pelos taludes, as ratazanas aguadeiras pelo fundo lamacento, e rajadas de vento trazem frias pestilências de cadáver”. O repórter vai passando e o que vê são marcas dessa ruína que dos edifícios passa para os humanos e para as relações pessoais - se, de um e de outro lado, “as casas mostram os seus esqueletos vermelhos e fumegantes”, noutro ponto, são “cadáveres de alguns soldados alemães” que “flutuam nas águas” apresentando um aspecto de horror, “inflados e tumefactos”, uns sem cabeça, outros com marcas de flagelo nos corpos.
Os cenários descritos são infernais - aldeias a arder, personagens trágicas, bombas que cavam a terra. E, enquanto a tempestade de ferro atroa os ares na sua função destruidora, “os mortos ficam para trás, esmagados sobre a terra, seminus, com as roupas desfeitas pelas explosões” e os feridos “arrastam-se pelas esgaivas, procuram onde esconder-se, e, encontrando um local seguro, levantam os seus clamores pedindo socorro”. Para onde o olhar se dirija, “a névoa está cheia de vozes perdidas, empenhadas de dor”.
Foi Aquilino Ribeiro que, em Alemanha Ensanguentada (1935), registou sobre os bombardeamentos da cidade de Arras que “nesta linha se escreveu uma epopeia de sangue e de bravura que escurece a Ilíada”. Nessa viagem aos campos de batalha que Aquilino fez em 1928, embora assistindo-se já à reconstrução ensaiada pelos franceses, vai havendo sempre margem para registar as “árvores decapitadas”, a paisagem que “trasborda de melancolia” ou o chão em que “os mortos escutam”. Dez anos eram passados sobre o final da Grande Guerra e as marcas da dor e do sofrimento permaneciam, mesmo que sob as luzes da reconstrução. A mesma cidade de Arras foi apresentada, depois de destruída, por Valle-Inclán como “o espectro de uma cidade bombardeada”.
Na sua missão de observador, o cronista vai também contando histórias ouvidas, dramáticas de dor, pungentes no sofrimento que transmitem, como a da rapariga francesa grávida que se volta para o médico e clama: “Doutor, eu não quero ter um filho dos bárbaros!... Não quero carregar com este! Se não me liberta desta cadeia, mato-me!”
Valle-Inclán participou também numa viagem aérea de observação e sentiu como os soldados a tensão do assalto às trincheiras, ora classificado com qualitativos como “magnífico” e “pujante”, ora anulado o heroísmo perante um “cego impulso de vida sobre o fundo de dor e de morte”.
As crónicas são curtas (pouco mais de uma centena de páginas para quarenta capítulos), não ultrapassando o absolutamente necessário quanto a narração ou a descrição, mexendo sobretudo com a forma de sentir. O parágrafo final apresenta uma ideia premonitória do que será o final da guerra, trazida pelo nascer do dia que permite ver o que aconteceu durante a noite: “Nos átrios das velhas cidades estalam as granadas, caem as pedras das catedrais, os pórticos corados de santos tremem nos seus cimentos, rompem-se as rosáceas, e as andorinhas voam assustadas pelas naves desertas. À luz do dia que começa, a terra mutilada pela guerra tem uma expressão dolorosa, reconcentrada e terrível.”
Os textos deste A Meia-Noite - Visão Estelar de um Momento de Guerra encontram unidade no cenário catastrófico que se vai tornando visível, espécie de caos, num mundo povoado de destruição, construído de ruínas. As personagens que entram nas histórias são fugazes, ajudando a compor o sentido da dor, quase tendo necessidade de desaparecerem, não vá a ruína tomar conta delas...
Não sendo esta uma obra dominada pelo cunho autobiográfico de um combatente - que Valle-Inclán não foi -, é preenchida pelo traço autobiográfico do testemunho, questionando a guerra e todos os seus efeitos, confrontando o heroísmo humano com a morte, afinal o que mais hipóteses tem de acontecer numa situação de guerra. Rapidez, leveza e emoção, associadas a uma quase prosa poética, em que o ser humano se confronta com o inimaginável, são aspectos fortes deste livro, que ajuda o leitor a conhecer o cenário que os combatentes usaram, já que são eles, colectivamente, que agem em todas as histórias e que, pensando na vitória, semeiam a tempestade bélica.
Esta obra de Valle-Inclán é uma proposta de leitura para este tempo em que passa o centenário do armistício, uma proposta de leitura para que o mundo seja construtor de paz e não espaço de guerra.
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