Uma dezena e meia de escritores surgem reunidos, trazidos pela persistência e curiosidade de Luís Souta, na obra Vozes da Escrita - 15 Entrevistas a Escritores Portugueses (Edições Ex-Libris, 2024), sob o pretexto inicial de descoberta do “olhar que emergia do campo literário sobre o processo educativo”.
As entrevistas, maioritariamente realizadas entre 2001 e 2002 (distância que leva a que já só cinco dos entrevistados estejam entre nós), trazem-nos nomes bem conhecidos como: Matilde Rosa Araújo e Natália Nunes (nascidas em 1921), Fernando Miguel Bernardes (n. 1929), Maria Rosa Colaço (n. 1935), Júlio Conrado e Mário Ventura (n. 1936), Altino do Tojal (n. 1939), Cristóvão de Aguiar (n. 1940), António Damião (que usou o pseudónimo de Henrique Nicolau para as obras policiais, n. 1941), Fernando Venâncio e Mário de Carvalho (n. 1944), Fernando Dacosta (n. 1945) e Alice Vieira, Eduarda Dionísio e Ricardo França Jardim (n. 1946).
A anteceder as entrevistas, Luís Souta explica os critérios de escolha, de que se destacam: as referências mais ou menos autobiográficas nos retratos e episódios que as respectivas obras mostram sobre a escola; a perspectiva da vida escolar a partir dos pontos de vista do aluno ou do professor (uma vez que vários dos entrevistados tiveram o ensino como profissão e muitos dos relatos literários assentam no olhar e nas marcas que ficaram do tempo de alunos) e do romancista ou do pedagogo; a acção dialogante entre os escritores e a escola.
No entanto, não são apenas essas as pistas deixadas nas conversas — os escritores acabaram também por falar do mundo que tem entrado nas suas obras e das próprias condições de edição e do universo da leitura, em segmentos tão diversos como a crítica literária, os movimentos culturais e artísticos, o papel do professor, o valor da memória para a criação escrita, entre outros, chegando, muitas vezes, a conversa a revelar aspectos menos conhecidos do viver de cada um, fornecendo apontamentos de enriquecimento das respectivas biografias.
Pelo caminho, ficam-nos retratos de muita humanidade, coloridos com a experiência da vida e com o gosto de (re)construir ambientes e personagens. É assim que nos tocam observações sobre o que é ser professor, como a de Cristóvão de Aguiar (que também foi professor), ao dizer: “Não acredito que um professor, para ser bom, tenha de estudar muita pedagogia. Ela ajuda quem já possui vocação. Ser professor é uma arte, como a de actor. Não se aprende, nasce connosco, pode apenas aperfeiçoar-se. A pedagogia não constrói um professor. Aperfeiçoa-lhe o talento.” Ou ainda a de Maria Rosa Colaço (a escritora alcacerense, autora desse ainda hoje inovador livro que foi A Criança e a Vida): “Cabe ao professor (...) a semente destes valores essenciais à Paz, à Fraternidade, ao Entendimento dos Povos que devia ser preocupação primordial de todos os agentes de ensino.” É assim que nos entusiasmam reflexões tão pertinentes quanto as de Eduarda Dionísio (professora e filha de professores) sobre a distância que vai entre a certeza e a dúvida: “O meu itinerário foi sempre o da dúvida, ao contrário da geração do meu pai que precisava de certezas e por isso era um grande drama quando a certeza desaparecia... (...) O drama vem quando deixa de haver um número significativo de pessoas (...) que não acha que a dúvida faz avançar o mundo.” É assim que também a postura cívica do leitor fica preparada para falhas da sociedade, como no momento em que Júlio Conrado (que enaltece o papel exercido na sua formação por professores como Virgílio Couto e Xavier Roberto, mestres que também o foram de Sebastião da Gama e de Matilde Rosa Araújo), falando de um dos seus romances, revela: “A corrupção é um fenómeno permanente na vida das sociedades que não é propriedade exclusiva deste ou daquele grupo social. A arte de furtar é de sempre e as suas denúncia e crítica também.” É assim que uma verdade essencial sobre a função da literatura nos impressiona, trazida pela voz de Mário Ventura (escritor que viveu em Setúbal e que, na conversa, relembra também a origem do Festival de Cinema de Tróia por si proposto): “Sem uma literatura não há um povo culto. (...) Hoje em dia, é a literatura, e não só a portuguesa, que discute o Mundo, que o analisa e teoriza sobre ele. Os políticos são incompetentes, impróprios para consumo intelectual. Os filósofos também não são de consumo fácil. Por isso, penso que a literatura é o melhor (senão o único) veículo para compreender o Mundo.” É assim que nos deixamos enternecer por uma entrevistada como Matilde Rosa Araújo, que faz das suas respostas um prolongamento dos seus poemas e das suas histórias.
Luís Souta soube ser a possibilidade equilibrada de fazer chegar estas vozes, sem condicionamentos, sem imposição do seu intuito, mostrando que a vida não prescinde do pensamento e que há verdades que passam além do tempo em que são proferidas. Só assim se compreende como entrevistas com mais de vinte anos mantêm a sua pertinência na actualidade...
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1352, 2024-07-30, pg. 10.
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