O livro Arrábida - Entre a Cor e o Verso, de Alexandrina Pereira, com ilustrações de Nuno David, recentemente publicado (com trabalho gráfico de Raul Reis), surge numa aliança de palavra e imagem, ambas criadas para servir a possível descrição dos sentimentos e emoções que a Serra consegue incutir-nos. Comecemos pelos dois primeiros textos, ambos premonitórios quanto ao que vamos encontrar — o de Alexandrina Pereira, que logo confessa resultarem os seus poemas de um “profundo amor pelos cantos e recantos de um lugar mágico e sagrado”, e o de Nuno David, que, num discurso anafórico, demanda, em oito perguntas, se “haverá outra serra” tão importante como a Arrábida pela sua localização e inspiração e como espaço de poetas e de santos, concluindo, de forma absolutamente decisiva: “Haverá? Não, não há!” Com certeza, os dois autores subscreveriam os três primeiros versos do longo poema à Arrábida assinado por Alexandre Herculano, essa referência da cultura portuguesa que bem viveu esta Serra, de dia ou de noite, a partir do Calhariz que o acolheu — “Salvé, ó vale do sul, saudoso e belo! / Salvé, ó pátria da paz, deserto santo, / Onde não ruge a grande voz das turbas!”
Aos referidos textos de abertura, seguem-se 30 poemas, que são outros tantos louvores da Arrábida, ora personificada, ora indescritível, ora magnífica na sua grandiosidade, sempre sugerindo e suscitando poesia, em viagem por caminhos, íngremes umas vezes, apaziguadores noutras, ao encontro da meditação, num trajecto em busca da palavra essencial, do sentido maior, da experimentação do que será uma via da transcendência, da oração, da fé.
Saltitam os versos por atalhos onde crescem o alecrim, a alfazema, o cardo, a esteva, o folhado, a giesta, a madressilva, o medronheiro, a rosa, o rosmaninho, a salva, o trevo ou a urze. Brotam as palavras por entre o respirar do arvoredo, olhando as aves, contemplando a vastidão, ouvindo o silêncio, com um fundo musical de vento e de cor, venha ela do rio ou da Serra, numa oscilação entre o azul e o verde. O discurso do espaço arrábido constrói-se sobre uma sinfonia de vozes rumorejantes — do mar, ali aos pés; do canto das aves, em escalas diversas; do sibilar da folhagem; do esgar sugerido pelo sorriso das flores; da fragrância mesclada no ar; dos esvoaçares que surpreendem ou levam o nosso olhar; das tonalidades de verde entre o azul da água e o azul do céu; dos passos que procuram, restolhando ou enxergando os degraus que conduzem ao céu...
A Serra afigura-se como um cenário grandioso (de dia ou a horas crepusculares, à luz do sol ou em diálogo com as estrelas), onde o poeta constrói o seu altar para a celebração da poesia, um pouco na esteira dos seus muitos antecessores, com os nomes de Agostinho da Cruz e de Sebastião da Gama invocados diversas vezes, num acto de reconhecimento dos percursores que foram nesta celebração da Arrábida como templo de contemplação.
Os seis desenhos que Nuno David apresenta nesta obra abrem espaço para este hino à Arrábida, seja pelas imagens captadas dos caminhos e da amplidão da Serra, seja por aquelas que nos remetem para os recantos onde se exprimem manifestações do sagrado. As tonalidades discretas escolhidas deixam margem para a diversidade de tons que a paisagem apresenta, ao mesmo tempo que o traço adensa a dose de mistério e de descoberta. O olhar é convidado a ir ao encontro do que é mais importante, deixando que o linear escuro tanto sustente a natureza, o chão ou as formas construídas, num jogo entre a perfeição advinda do pormenor e a vastidão a descobrir. Estamos perante um olhar que se deixa impressionar por matizes essenciais e primordiais para o retrato da Arrábida, espaço dominado pela luz e por variações de verde e de azul.
Temos assim o verso e a cor em deambulação por esta Arrábida interiorizada, em poemas curtos de Alexandrina Pereira e em telas fecundas do que é essencial devidas a Nuno David, todas as composições vibrantes entre a grandiosidade dos momentos que o olhar permite e os instantes que prefiguram a reflexão e a oração.
Num texto datado de 1949, publicado na revista Flama, Sebastião da Gama escrevia sobre a serra com quem o Sado se encontra: “O mais difícil não é ir à Arrábida (...). Difícil, difícil, é entendê-la (...).” E, depois, justificava esta dificuldade com a necessidade de cada um demandar, sozinho, “a religiosidade que dá à Serra da Arrábida elevação e sentido”, o espaço onde “é fácil estar a sós com Deus”, descobertas possíveis pela persistência e pelo silêncio que têm permitido à Serra o seu estado de “meditação que já dura há séculos”. E não deixa de ser oportuno mencionar o aparecimento desta obra de Alexandrina Pereira e de Nuno David quando passam os 80 anos da publicação dessa outra que, por empréstimo, deu nome literário à Arrábida — Serra-Mãe, de Sebastião da Gama, surgida em Dezembro de 1945, primeiro livro do poeta azeitonense, que já invocava Agostinho da Cruz para patrono...
Os autores de Arrábida — Entre a Cor e o Verso, ambos experimentados em escrever e pintar o panorama e o coração da Serra, conseguem levar-nos até essa via do conhecimento que nos exige, a cada dia, “entender” a Arrábida.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1607, 2025-09-24, pg. 2.
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