São cerca de quarenta crónicas em que predomina o “vício” do leitor, todas subordinadas a uma epígrafe de Jorge Luis Borges (ele próprio um ávido e “viciado” leitor), que explica, justifica e engrandece o estatuto do “vício”: “Há aqueles que não podem imaginar um mundo sem pássaros; há aqueles que não podem imaginar um mundo sem água; ao que me refere, sou incapaz de imaginar um mundo sem livros.” O primeiro texto puxa para título uma mescla resultante de leituras, associando Shakespeare e o prazer — “Ler ou não ser, eis a questão”, uma defesa intransigente do acto de ler, apesar do trabalho e das condições que a leitura exige. Estamos perante a obra O vício dos livros - II (Companhia das Letras, 2025), de Afonso Cruz (n. 1971), volume aparecido quatro anos depois do primeiro (em que não era anunciada sequência).
As crónicas são intervaladas com reproduções de pintura (devidas a nomes como Magritte, Massys, Rivera, Picasso, Larsson, Renoir ou Spitzweg, entre outros, num conjunto de dezasseis telas) que têm como condição permanente o livro enquanto objecto, sempre aberto, disponível para o leitor que as personagens dos quadros são, persistência que ganha eco numa crónica como “Livro aberto”, onde é dito: “É a leitura que cria o livro e o constrói a partir dos signos de tinta impressos em papel. (...) O livro, sem leitura, não existe. Aliás, com a notação musical ocorre um fenómeno semelhante: a partitura só é música quando é lida e executada.” Esta crónica é, aliás, a oportunidade para Afonso Cruz citar Massimo Recalcati, numa referência cheia de poesia a propósito da razão de ser e da identidade do livro — “um livro fechado é, na verdade, um contra-senso: não é um livro. Como o mar, o livro é uma imagem extraordinária do ‘aberto’. Abre o mundo em vez de o fechar. Um livro é um mar e não um muro.”
Questões como o acto de ler, a criação literária e a escrita, a censura ou as redutoras leituras apenas das parangonas dos títulos, a força imanente de uma biblioteca, a capacidade de descrever e de contar, a pluralidade da interpretação, a força do silêncio, o papel da literatura dita infantil, as marcas de autor, os livros que fazem e marcam um leitor, entre outras, povoam as crónicas aqui apresentadas, sempre num testemunho de paixão pelo livro e pela liberdade de ler, recorrendo à experiência de leitura, muito mais do que à teorização, e convocando nomes como Raul Brandão, Lao Tse, Steiner, Brodsky, Primo Levi, Tchékov, Rilke, Marguerite Duras, Eliot, Saint-Exupéry, Camus, Dostoievski, Joyce, Orwell, Umberto Eco, Lídia Jorge, Santo Agostinho ou Fernando Namora para sustentação das considerações feitas.
Nestas crónicas não faltam as marcas de poesia, sobretudo para provar que a literatura pode dar imagem do real, mas ultrapassa esse real, recriando-o a partir da emoção, da criatividade e do olhar, erigindo-o em arte, como quando se recorre ao exemplo da descrição da casa: “Quando descrevo a minha casa de forma concisa, objectiva e despersonalizada, deixo inevitavelmente de parte algumas das suas dimensões mais essenciais. Estou a descrever uma casa, mas não estou a descrever um lar. As emoções que o lar convoca escapam a uma descrição factual. No entanto, é isso que constitui o lar: não só o espaço, mas a experiência que nele é vivida. Um lar não se reduz a espaço e tempo (como conceitos físicos), é lugar e história. A casa, enquanto entidade física, é perfeitamente apreensível. (...) A casa pode ser medida, esquadrinhada, modelada em software, reduzida a dados e projecções. O lar esquiva-se a essas descrições. Ao despersonalizar a casa, estou a desabitá-la simbolicamente, a desumanizá-la. Torno-a um lugar genérico, qualquer casa. Mas o lar é sempre singular. É feito daquilo que não se vê: os hábitos, os afectos, os silêncios e os ruídos íntimos que ali se repetem. Só as artes são capazes de descrever o lar. (...) A casa importa, mas é o lar que tem significado.”
A todo o momento o leitor sente a presença do princípio deste livro, em que se equaciona a tarefa de ler, mediante três questões: “Como pomos os adultos a ler mais? Como pomos os jovens a ler mais? Como se formam leitores?” A pertinência das interrogações aumenta quando se sabe que a leitura “não tem uma gratificação imediata”, contribui para o nosso isolamento dos outros e do mundo, requer atenção e “obriga ao esforço da descodificação”, em suma, dá trabalho. Mas é a compreensão de tudo isso que leva à descoberta das compensações e ao fascínio do que é ler — assim, poderemos sorrir quando testemunhamos histórias como as que Afonso Cruz evoca: “alguém está a ler num transporte público, quando ouve uma voz dizendo: ‘Não mude de página, que ainda não acabei.’”; ou a que é retirada das Confissões de Santo Agostinho, que “ficava admirado ao ver Santo Ambrósio ler em silêncio, uma prática incomum na época”, porque o “impressionava como os olhos de Ambrósio percorriam o texto, deixando em descanso a voz e a língua”. Encantos com pequenas coisas que só o silêncio do leitor consegue entender!...
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1602, 2025-09-17, pg. 9.
Sem comentários:
Enviar um comentário