“A guerra não dizima apenas os combatentes e os feridos, ou os doentes, a quem a paz pôs fim rapidamente. Também têm de constar nos boletins informativos de perdas os pais e as mães que respiraram esses gases asfixiantes, a angústia e a saudade, e que morreram obscuramente.” A citação surge a poucas páginas do final do romance Uma Andorinha no Telhado, de Lucien Descaves (E-Primatur, 2024), uma narrativa que ocorre num tempo entre Dezembro de 1914 e Julho de 1919, algures no Norte de França, numa vila designada pelos topónimos fictícios de Bourg-en-Thimerais ou Bourg-en-Forêt, que ganha protagonismo por acolher refugiados vindos da região francesa do Aisne durante a Primeira Grande Guerra.
Descaves (1861-1949) teve uma vida que lhe permitiu assistir a três grandes conflitos bélicos — a guerra franco-alemã de 1879, a Primeira Grande Guerra (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) —, experiências que o tornaram crítico da vida militar e da actividade política. Tendo publicado desde cedo, a sua última obra, de cunho autobiográfico, data de 1946, mas o derradeiro romance que publicou, Uma Andorinha no Telhado, é de 1924 (a edição portuguesa ocorreu no centenário da obra), originariamente divulgado em 41 folhetins diários no periódico Le Journal, entre 11 de Junho e 21 de Julho de 1923. Logo que a narrativa saiu em livro, o crítico Georges Le Cardonnel escrevia no mesmo jornal (28.Abr.1924) que se estava perante uma obra importante no domínio do romance histórico, pois seria possível, numa leitura mais tardia, “encontrar a atmosfera e a cor de uma pequena cidade durante a Grande Guerra”, considerando-a, sobretudo, “um romance de costumes” em torno de figuras, “com os seus defeitos, qualidades, virtudes e baixezas”, que caracterizam “o formigueiro humano”.
A história revela-nos características da sociedade de província, espaço em que todos se conhecem (nas coisas boas e menos boas), em que as divergências políticas acentuam os julgamentos sobre as atitudes de uns e de outros, em que a maledicência entre adversários ou produzida pela coscuvilhice se alimenta da perfídia (que “adora o mistério e as subtilezas”), em que se adoptam rivalidades silenciadoras do contacto e do bom relacionamento, em que se jogam opiniões fabricadas para desmerecer o outro. Simultaneamente, o leitor acompanha o percurso de uma personalidade romântica que morre por amor (amava e julgava-se amada, optando pelo suicídio quando soube que o homem por quem se apaixonara tinha morrido na frente de batalha), assim como entra na vida de outra personagem que, à boa maneira naturalista, gira em torno dos cogumelos, procurando-os e explicando tudo o que a ciência sobre eles sabe, bem como se confronta, ao modo realista, com uma sociedade alicerçada sobre problemas resultantes da chegada de outros (migração interna de mulheres e de crianças, motivada pela fuga dos locais em que a guerra mais atingia os mais frágeis, ou espaço de refúgio para feridos em recuperação).
O título deste romance assenta na simbologia associada à andorinha, mensageira da Primavera ou boa companhia temporária, metáfora da esperança, personificada na presença de duas crianças refugiadas, oriundas da mesma região, uma em cada família de acolhimento, que vão sendo o garante da crença que essas famílias têm de que os seus filhos (um de cada) regressem da frente de guerra sãos e salvos — as crianças funcionam assim como substitutos de outros jovens (ainda que mais velhos) que regressarão às suas origens quando estes chegarem do campo de batalha (se o ciclo não se quebrar), processo não alheio ao fenómeno da superstição, que o próprio narrador teoriza: “Uma crença não é imune a superstições, pelo contrário. As superstições são as plantas parasitas do jardim religioso. Não as arrancamos; deixamo-las invadir as áleas que não embelezam, mas consideramo-las medicinais, e é isso que as salva.”
Constituído por 22 capítulos, o ritmo deste romance não é alheio àquilo que se exige da publicação em folhetim, um constante apelo à atenção do leitor para o cativar. As descrições não são longas, o diálogo e a acção são intensos, os comentários críticos (muitas vezes, irónicos) aos contextos são expressivos pelo que retratam ou pelo que fazem pensar, o desfecho de algumas situações surpreende o leitor. Não sendo um romance sobre a frente de combate (tema em que a literatura francesa sobre a Grande Guerra é rica, seja no domínio do autobiográfico, seja no da ficção), é, sem dúvida, como dizia o crítico já mencionado, Georges Le Cardonnel, “um pequeno estudo sobre a humanidade e sobre a sociedade, num terrível período em que o país se teve de reorganizar na guerra”.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1592, 2025-09-03, pg. 10