quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Alexandrina Pereira e Nuno David dão voz e cor à Arrábida



O livro Arrábida - Entre a Cor e o Verso, de Alexandrina Pereira, com ilustrações de Nuno David, recentemente publicado (com trabalho gráfico de Raul Reis), surge numa aliança de palavra e imagem, ambas criadas para servir a possível descrição dos sentimentos e emoções que a Serra consegue incutir-nos. Comecemos pelos dois primeiros textos, ambos premonitórios quanto ao que vamos encontrar — o de Alexandrina Pereira, que logo confessa resultarem os seus poemas de um “profundo amor pelos cantos e recantos de um lugar mágico e sagrado”, e o de Nuno David, que, num discurso anafórico, demanda, em oito perguntas, se “haverá outra serra” tão importante como a Arrábida pela sua localização e inspiração e como espaço de poetas e de santos, concluindo, de forma absolutamente decisiva: “Haverá? Não, não há!” Com certeza, os dois autores subscreveriam os três primeiros versos do longo poema à Arrábida assinado por Alexandre Herculano, essa referência da cultura portuguesa que bem viveu esta Serra, de dia ou de noite, a partir do Calhariz que o acolheu — “Salvé, ó vale do sul, saudoso e belo! / Salvé, ó pátria da paz, deserto santo, / Onde não ruge a grande voz das turbas!”

Aos referidos textos de abertura, seguem-se 30 poemas, que são outros tantos louvores da Arrábida, ora personificada, ora indescritível, ora magnífica na sua grandiosidade, sempre sugerindo e suscitando poesia, em viagem por caminhos, íngremes umas vezes, apaziguadores noutras, ao encontro da meditação, num trajecto em busca da palavra essencial, do sentido maior, da experimentação do que será uma via da transcendência, da oração, da fé.

Saltitam os versos por atalhos onde crescem o alecrim, a alfazema, o cardo, a esteva, o folhado, a giesta, a madressilva, o medronheiro, a rosa, o rosmaninho, a salva, o trevo ou a urze. Brotam as palavras por entre o respirar do arvoredo, olhando as aves, contemplando a vastidão, ouvindo o silêncio, com um fundo musical de vento e de cor, venha ela do rio ou da Serra, numa oscilação entre o azul e o verde. O discurso do espaço arrábido constrói-se sobre uma sinfonia de vozes rumorejantes — do mar, ali aos pés; do canto das aves, em escalas diversas; do sibilar da folhagem; do esgar sugerido pelo sorriso das flores; da fragrância mesclada no ar; dos esvoaçares que surpreendem ou levam o nosso olhar; das tonalidades de verde entre o azul da água e o azul do céu; dos passos que procuram, restolhando ou enxergando os degraus que conduzem ao céu...

A Serra afigura-se como um cenário grandioso (de dia ou a horas crepusculares, à luz do sol ou em diálogo com as estrelas), onde o poeta constrói o seu altar para a celebração da poesia, um pouco na esteira dos seus muitos antecessores, com os nomes de Agostinho da Cruz e de Sebastião da Gama invocados diversas vezes, num acto de reconhecimento dos percursores que foram nesta celebração da Arrábida como templo de contemplação.

Os seis desenhos que Nuno David apresenta nesta obra abrem espaço para este hino à Arrábida, seja pelas imagens captadas dos caminhos e da amplidão da Serra, seja por aquelas que nos remetem para os recantos onde se exprimem manifestações do sagrado. As tonalidades discretas escolhidas deixam margem para a diversidade de tons que a paisagem apresenta, ao mesmo tempo que o traço adensa a dose de mistério e de descoberta. O olhar é convidado a ir ao encontro do que é mais importante, deixando que o linear escuro tanto sustente a natureza, o chão ou as formas construídas, num jogo entre a perfeição advinda do pormenor e a vastidão a descobrir. Estamos perante um olhar que se deixa impressionar por matizes essenciais e primordiais para o retrato da Arrábida, espaço dominado pela luz e por variações de verde e de azul.

Temos assim o verso e a cor em deambulação por esta Arrábida interiorizada, em poemas curtos de Alexandrina Pereira e em telas fecundas do que é essencial devidas a Nuno David, todas as composições vibrantes entre a grandiosidade dos momentos que o olhar permite e os instantes que prefiguram a reflexão e a oração.

Num texto datado de 1949, publicado na revista Flama, Sebastião da Gama escrevia sobre a serra com quem o Sado se encontra: “O mais difícil não é ir à Arrábida (...). Difícil, difícil, é entendê-la (...).” E, depois, justificava esta dificuldade com a necessidade de cada um demandar, sozinho, “a religiosidade que dá à Serra da Arrábida elevação e sentido”, o espaço onde “é fácil estar a sós com Deus”, descobertas possíveis pela persistência e pelo silêncio que têm permitido à Serra o seu estado de “meditação que já dura há séculos”. E não deixa de ser oportuno mencionar o aparecimento desta obra de Alexandrina Pereira e de Nuno David quando passam os 80 anos da publicação dessa outra que, por empréstimo, deu nome literário à Arrábida — Serra-Mãe, de Sebastião da Gama, surgida em Dezembro de 1945, primeiro livro do poeta azeitonense, que já invocava Agostinho da Cruz para patrono...

Os autores de Arrábida — Entre a Cor e o Verso, ambos experimentados em escrever e pintar o panorama e o coração da Serra, conseguem levar-nos até essa via do conhecimento que nos exige, a cada dia, “entender” a Arrábida.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1607, 2025-09-24, pg. 2.


sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Afonso Cruz e os vícios da leitura e da escrita

 


São cerca de quarenta crónicas em que predomina o “vício” do leitor, todas subordinadas a uma epígrafe de Jorge Luis Borges (ele próprio um ávido e “viciado” leitor), que explica, justifica e engrandece o estatuto do “vício”: “Há aqueles que não podem imaginar um mundo sem pássaros; há aqueles que não podem imaginar um mundo sem água; ao que me refere, sou incapaz de imaginar um mundo sem livros.” O primeiro texto puxa para título uma mescla resultante de leituras, associando Shakespeare e o prazer — “Ler ou não ser, eis a questão”, uma defesa intransigente do acto de ler, apesar do trabalho e das condições que a leitura exige. Estamos perante a obra O vício dos livros - II (Companhia das Letras, 2025), de Afonso Cruz (n. 1971), volume aparecido quatro anos depois do primeiro (em que não era anunciada sequência).

As crónicas são intervaladas com reproduções de pintura (devidas a nomes como Magritte, Massys, Rivera, Picasso, Larsson, Renoir ou Spitzweg, entre outros, num conjunto de dezasseis telas) que têm como condição permanente o livro enquanto objecto, sempre aberto, disponível para o leitor que as personagens dos quadros são, persistência que ganha eco numa crónica como “Livro aberto”, onde é dito: “É a leitura que cria o livro e o constrói a partir dos signos de tinta impressos em papel. (...) O livro, sem leitura, não existe. Aliás, com a notação musical ocorre um fenómeno semelhante: a partitura só é música quando é lida e executada.” Esta crónica é, aliás, a oportunidade para Afonso Cruz citar Massimo Recalcati, numa referência cheia de poesia a propósito da razão de ser e da identidade do livro — “um livro fechado é, na verdade, um contra-senso: não é um livro. Como o mar, o livro é uma imagem extraordinária do ‘aberto’. Abre o mundo em vez de o fechar. Um livro é um mar e não um muro.”

Questões como o acto de ler, a criação literária e a escrita, a censura ou as redutoras leituras apenas das parangonas dos títulos, a força imanente de uma biblioteca, a capacidade de descrever e de contar, a pluralidade da interpretação, a força do silêncio, o papel da literatura dita infantil, as marcas de autor, os livros que fazem e marcam um leitor, entre outras, povoam as crónicas aqui apresentadas, sempre num testemunho de paixão pelo livro e pela liberdade de ler, recorrendo à experiência de leitura, muito mais do que à teorização, e convocando nomes como Raul Brandão, Lao Tse, Steiner, Brodsky, Primo Levi, Tchékov, Rilke, Marguerite Duras, Eliot, Saint-Exupéry, Camus, Dostoievski, Joyce, Orwell, Umberto Eco, Lídia Jorge, Santo Agostinho ou Fernando Namora para sustentação das considerações feitas.

Nestas crónicas não faltam as marcas de poesia, sobretudo para provar que a literatura pode dar imagem do real, mas ultrapassa esse real, recriando-o a partir da emoção, da criatividade e do olhar, erigindo-o em arte, como quando se recorre ao exemplo da descrição da casa: “Quando descrevo a minha casa de forma concisa, objectiva e despersonalizada, deixo inevitavelmente de parte algumas das suas dimensões mais essenciais. Estou a descrever uma casa, mas não estou a descrever um lar. As emoções que o lar convoca escapam a uma descrição factual. No entanto, é isso que constitui o lar: não só o espaço, mas a experiência que nele é vivida. Um lar não se reduz a espaço e tempo (como conceitos físicos), é lugar e história. A casa, enquanto entidade física, é perfeitamente apreensível. (...) A casa pode ser medida, esquadrinhada, modelada em software, reduzida a dados e projecções. O lar esquiva-se a essas descrições. Ao despersonalizar a casa, estou a desabitá-la simbolicamente, a desumanizá-la. Torno-a um lugar genérico, qualquer casa. Mas o lar é sempre singular. É feito daquilo que não se vê: os hábitos, os afectos, os silêncios e os ruídos íntimos que ali se repetem. Só as artes são capazes de descrever o lar. (...) A casa importa, mas é o lar que tem significado.”

A todo o momento o leitor sente a presença do princípio deste livro, em que se equaciona a tarefa de ler, mediante três questões: “Como pomos os adultos a ler mais? Como pomos os jovens a ler mais? Como se formam leitores?” A pertinência das interrogações aumenta quando se sabe que a leitura “não tem uma gratificação imediata”, contribui para o nosso isolamento dos outros e do mundo, requer atenção e “obriga ao esforço da descodificação”, em suma, dá trabalho. Mas é a compreensão de tudo isso que leva à descoberta das compensações e ao fascínio do que é ler — assim, poderemos sorrir quando testemunhamos histórias como as que Afonso Cruz evoca: “alguém está a ler num transporte público, quando ouve uma voz dizendo: ‘Não mude de página, que ainda não acabei.’”; ou a que é retirada das Confissões de Santo Agostinho, que “ficava admirado ao ver Santo Ambrósio ler em silêncio, uma prática incomum na época”, porque o “impressionava como os olhos de Ambrósio percorriam o texto, deixando em descanso a voz e a língua”. Encantos com pequenas coisas que só o silêncio do leitor consegue entender!...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1602, 2025-09-17, pg. 9.


segunda-feira, 15 de setembro de 2025

João Aldeia conta o 25 de Abril de 1974 em Sesimbra



A primeira manifestação sesimbrense sobre a Revolução de 1974 em Sesimbra aconteceu em 30 de Abril desse ano, graças ao entusiasmo do mestre de pesca João Caparica, que chamou à participação a fanfarra dos Bombeiros com os intervenientes usando uma camisa “à pescador”; já no dia seguinte, em 1 de Maio, surgiu uma outra manifestação, ainda mais participada, em cuja liderança estava também gente ligada ao mar. O episódio é evocado no livro A Revolução de 1974 em Sesimbra, o mais recente título de João Augusto Aldeia, uma obra repleta de história(s) e de memória(s) sobre a vida e a sociedade sesimbrense antes e depois de 25 de Abril, num percurso a que não é alheio o facto de o próprio autor ter sido protagonista em algumas das acções, condição que é logo assinalada de início: “O facto de ter participado nos acontecimentos de um determinado período, numa dada comunidade,  constitui uma vantagem ou uma limitação para escrever sobre esses acontecimentos?” A resposta junta as vantagens e as desvantagens, umas e outras devendo ser pesadas criticamente.

É por isso que, a seguir, João Aldeia justifica esta obra: “As ‘leituras’ feitas em Sesimbra em torno da comemoração dos 50 anos da Revolução de 1974 — quer as oficiais, quer as outras — primaram pela indigência, omitindo aspectos relevantes da Revolução (causas, consequências, efeitos positivos e negativos na comunidade). Foi repisada a versão de que ‘antes não acontecia nada’ e que depois tudo foi ‘magnífico’, tudo ‘conquistas da Revolução’, com destaque, neste contexto municipal, para o ‘poder autárquico’. Ou seja: nem uma sombra de dúvida, nem a mínima assunção de aspectos negativos, nenhuma reflexão sobre as iniciativas das populações ou os actos da administração, e o respectivo sucesso ou insucesso.” A intensidade do comentário serve para apresentar globalmente o conteúdo do livro — “um relato sucinto da vida social, cultural e política, anterior e posterior à Revolução de 1974”.

João Aldeia perpassa, depois, por uma diversidade de áreas, tendo em vista um retrato tão completo quanto possível do que foi Sesimbra nesses dois tempos históricos, apresentando dados sobre a população, a actividade económica (pesca, agricultura, turismo, pequena indústria), a guerra colonial, a habitação, as tentativas de preservação ambiental, a actividade política, a questão assistencial, a cultura, a educação, o movimento associativo.

Ao longo da apresentação de dados, o autor não deixa de ser crítico, como quando refere a exaustão dos “pesqueiros” (“nunca foram feitos estudos científicos sobre o problema, uma das mais gritantes falhas do nosso sector científico”), ou quando aprecia a criação em 1998 do Parque Marítimo da Arrábida (que, “sem sólido fundamento científico, foi apenas um placebo”), ou a propósito da construção clandestina na Lagoa de Albufeira (em que poucas demolições aconteceram devido a interferência de Marcelo Caetano), ou sobre a definição dos limites territoriais do concelho (lamentando que a Câmara não tenha ripostado, aquando da publicação do inerente normativo em 1972, às exigências dos concelhos vizinhos de Almada e Seixal, “uma neutralidade difícil de explicar e de aceitar”), ou relativamente às intervenções com razoável conflitualidade levadas a cabo por um autarca como Ezequiel Lino durante os sucessivos mandatos (com consequências políticas e sociais locais).

O trabalho de João Aldeia é fortemente apoiado em dados estatísticos, em registos de imprensa, em documentação da época, em testemunhos diversos e na sua própria memória de participante (que várias vezes menciona, ainda que com modéstia e discrição). Este levantamento serve também para fundamentar a crítica feita à celebração do cinquentenário de Abril, que, não atendendo aos circunstancialismos locais e não procurando reflectir sobre a história, passou ao lado da “dinâmica comunitária” e da “saudável confrontação entre as diversas ideologias” que animaram o período pós-Revolução — exemplo claro dessa ausência de leitura crítica é o de não ter havido uma reflexão sobre as causas que terão levado ao declínio do movimento cooperativista em Sesimbra, muito forte a partir de 1975, ano em que foi criada a Cooperativa dos Apanhadores de Algas Estrela do Sul, ou sobre o aumento da abstenção nos actos eleitorais, no que isso tem a ver com a participação cívica.

A obra é concluída com uma “Cronologia resumida do século XX em Sesimbra”, cujo primeiro registo data de 11 de Abril de 1900, assinalando a “greve dos pescadores das armações de pesca, com intervenção militar que provoca três mortos e numerosos feridos”. Curiosamente, o último registo desta cronologia respeita também à pesca, datado de final de 1999 — “em consequência da não renovação do acordo de pescas entre a União Europeia e Marrocos, a frota sesimbrense da pesca com aparelho de anzol (com cerca de 600 pescadores) ficará parada e a receber subsídios, durante dois anos.” A história local é, muitas vezes, uma boa imagem daquilo que é a história da participação...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1597, 2025-09-10, pg. 10.


quinta-feira, 4 de setembro de 2025

Lucien Descaves e as andorinhas numa sociedade em guerra

 


“A guerra não dizima apenas os combatentes e os feridos, ou os doentes, a quem a paz pôs fim rapidamente. Também têm de constar nos boletins informativos de perdas os pais e as mães que respiraram esses gases asfixiantes, a angústia e a saudade, e que morreram obscuramente.” A citação surge a poucas páginas do final do romance Uma Andorinha no Telhado, de Lucien Descaves (E-Primatur, 2024), uma narrativa que ocorre num tempo entre Dezembro de 1914 e Julho de 1919, algures no Norte de França, numa vila designada pelos topónimos fictícios de Bourg-en-Thimerais ou Bourg-en-Forêt, que ganha protagonismo por acolher refugiados vindos da região francesa do Aisne durante a Primeira Grande Guerra.

Descaves (1861-1949) teve uma vida que lhe permitiu assistir a três grandes conflitos bélicos — a guerra franco-alemã de 1879, a Primeira Grande Guerra (1914-1918) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) —, experiências que o tornaram crítico da vida militar e da actividade política. Tendo publicado desde cedo, a sua última obra, de cunho autobiográfico, data de 1946, mas o derradeiro romance que publicou, Uma Andorinha no Telhado, é de 1924 (a edição portuguesa ocorreu no centenário da obra), originariamente divulgado em 41 folhetins diários no periódico Le Journal, entre 11 de Junho e 21 de Julho de 1923. Logo que a narrativa saiu em livro, o crítico Georges Le Cardonnel escrevia no mesmo jornal (28.Abr.1924) que se estava perante uma obra importante no domínio do romance histórico, pois seria possível, numa leitura mais tardia, “encontrar a atmosfera e a cor de uma pequena cidade durante a Grande Guerra”, considerando-a, sobretudo, “um romance de costumes” em torno de figuras, “com os seus defeitos, qualidades, virtudes e baixezas”, que caracterizam “o formigueiro humano”.

A história revela-nos características da sociedade de província, espaço em que todos se conhecem (nas coisas boas e menos boas), em que as divergências políticas acentuam os julgamentos sobre as atitudes de uns e de outros, em que a maledicência entre adversários ou produzida pela coscuvilhice se alimenta da perfídia (que “adora o mistério e as subtilezas”), em que se adoptam rivalidades silenciadoras do contacto e do bom relacionamento, em que se jogam opiniões fabricadas para desmerecer o outro. Simultaneamente, o leitor acompanha o percurso de uma personalidade romântica que morre por amor (amava e julgava-se amada, optando pelo suicídio quando soube que o homem por quem se apaixonara tinha morrido na frente de batalha), assim como entra na vida de outra personagem que, à boa maneira naturalista, gira em torno dos cogumelos, procurando-os e explicando tudo o que a ciência sobre eles sabe, bem como se confronta, ao modo realista, com uma sociedade alicerçada sobre problemas resultantes da chegada de outros (migração interna de mulheres e de crianças, motivada pela fuga dos locais em que a guerra mais atingia os mais frágeis, ou espaço de refúgio para feridos em recuperação).

O título deste romance assenta na simbologia associada à andorinha, mensageira da Primavera ou boa companhia temporária, metáfora da esperança, personificada na presença de duas crianças refugiadas, oriundas da mesma região, uma em cada família de acolhimento, que vão sendo o garante da crença que essas famílias têm de que os seus filhos (um de cada) regressem da frente de guerra sãos e salvos — as crianças funcionam assim como substitutos de outros jovens (ainda que mais velhos) que regressarão às suas origens quando estes chegarem do campo de batalha (se o ciclo não se quebrar), processo não alheio ao fenómeno da superstição, que o próprio narrador teoriza: “Uma crença não é imune a superstições, pelo contrário. As superstições são as plantas parasitas do jardim religioso. Não as arrancamos; deixamo-las invadir as áleas que não embelezam, mas consideramo-las medicinais, e é isso que as salva.”

Constituído por 22 capítulos, o ritmo deste romance não é alheio àquilo que se exige da publicação em folhetim, um constante apelo à atenção do leitor para o cativar. As descrições não são longas, o diálogo e a acção são intensos, os comentários críticos (muitas vezes, irónicos) aos contextos são expressivos pelo que retratam ou pelo que fazem pensar, o desfecho de algumas situações surpreende o leitor. Não sendo um romance sobre a frente de combate (tema em que a literatura francesa sobre a Grande Guerra é rica, seja no domínio do autobiográfico, seja no da ficção), é, sem dúvida, como dizia o crítico já mencionado, Georges Le Cardonnel, “um pequeno estudo sobre a humanidade e sobre a sociedade, num terrível período em que o país se teve de reorganizar na guerra”.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1592, 2025-09-03, pg. 10