“Meu Alentejano bisonho (Isto é por fora: por fora é que é o Alentejano bisonho, o bicho do mato; por dentro é um homem cheio de humanidade, de compreensão, de ternura. Por isso é que começou a nossa amizade, que já tem escrito algumas páginas bonitas).” Assim começa, em 20 de Julho de 1946, uma carta saída da Arrábida, assinada por Sebastião da Gama (1924-1952), dirigida a Luís Amaro (1923-2018), uma das mais antigas na densa relação epistolográfica entre o poeta azeitonense e o seu amigo de Aljustrel, à data a trabalhar em Lisboa, na casa Portugália Editora. A apresentação que é feita de Luís Amaro no início desta carta vai ao encontro do que Ernesto Rodrigues testemunhou e é reproduzido no catálogo resultante da exposição que celebrou o centenário do poeta e bibliógrafo alentejano: “Nome fundamental, no ‘silêncio perfeito’ que o poeta deseja, generoso, elegante”.
A mostra, intitulada Dádiva - Luís Amaro - Uma Vida em Livros, acontecida entre Junho e Setembro de 2024 na biblioteca que o tem como patrono na sua terra-natal, teve continuidade em Maio através da publicação do respectivo catálogo, edição a cargo da Associação Do Fundo à Superfície (Associação de Defesa do Património Mineiro Cultural e Ambiental do Concelho de Aljustrel). O texto de abertura desta obra deve-se a Guilherme d’Oliveira Martins, que assim o apresenta: “Luís Amaro representa a memória viva da cultura e das letras portuguesas. (...) Foi poeta, bibliófilo, estudioso e investigador, tornando-se raro mestre em matéria bibliográfica, a quem qualquer editor competente podia recorrer com segurança quando houvesse dúvidas ou hesitações. (...) Sempre discreto, os maiores especialistas reconheceram-lhe essa excepcional qualidade, só possível a um grande conhecedor e a um trabalhador incansável.”
Oriundo de uma família humilde, Luís Amaro cedo começa o seu itinerário na causa dos livros — acabada a instrução primária, são um ajudante-farmacêutico, a biblioteca da Associação dos Operários Mineiros e Adeodato Barreto (advogado e poeta, em cujo cartório Luís Amaro começa a trabalhar aos 12 anos) os responsáveis pelo culto pelas letras e por um trajecto que sempre o aproximará dos livros e da leitura, passando por um estágio no “Diário do Alentejo” quando tinha 13 anos, por um emprego na Biblioteca Municipal de Beja, por colaboração jornalística em diversos periódicos (Ala Esquerda, O Arraiolense, Brados do Alentejo, Revista Transtagana, entre outros), até chegar a um emprego em Lisboa, na Livraria Portugália (onde foi caixeiro-livreiro). Daí, transitaria para a Portugália Editora como revisor de provas, sob cujo olhar criterioso passaram as obras de alguns dos mais conceituados escritores portugueses do século XX — Aquilino Ribeiro, Fernando Namora, Jaime Cortesão, José Saramago, José Régio (uma leitura do volume da correspondência trocada entre Régio e Amaro, editado em 2024 pela editora Colibri, trabalho devido a Ernesto Rodrigues, demonstra bem o cuidado e a qualidade de revisor-editor que Luís Amaro praticou), Manuel da Fonseca, Sebastião da Gama, Soeiro Pereira Gomes, entre muitos mais.
Com o cuidar da obra dos outros e com o espírito reservado que o caracterizava, só em 1949 publicou a sua obra, depois de muitos incentivos de amigos, entre os quais Sebastião da Gama. Dádiva foi o título atribuído, escolha que Sebastião da Gama assim comentou no seu Diário (registo de 18 de Fevereiro de 1949): “Ao escrever isto — ‘ser professor é dar-se’ —, lembro-me do Amaro. Pobre querido Amigo, tão nobre, tão modesto, tão púdico da sua intimidade. Um António Nobre que chegou tarde, uma flor que o vento magoou... Há três anos que lhe peço o livro: ele, tímido, recusa sempre mostrá-lo ao Mundo. (...) Pois há uma semana encontrei o Amaro. Acompanhei-o. Junto de um portal, com medo de que alguém que passasse o ouvisse, segredou-me: ‘Vou publicar.’ “Diário Íntimo?’ ‘Não. DÁDIVA.’ Senti cá dentro uma lágrima que era a compreensão exacta e comovida daquele nome. Dádiva. Dádiva. Dádiva.” Luís Amaro conheceu esta opinião do amigo uns meses depois, quando, em 2 de Outubro, recebeu de Sebastião da Gama longa carta (uma das mais longas no seu epistolário para o amigo), apreciando o livro e transcrevendo este excerto do seu diário. Diário Íntimo - Dádiva e Outros Poemas viria a ser o novo título da obra, ampliada, em 1975 e em 2011, enquanto em 2006 se intitularia Diário Íntimo.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1539, 2025-05-28, pg. 6.
1 comentário:
Obrigada pela partilha de informação/reflexão tão rica de conteúdo que os olhos se humedecem e a alma se anima.
Enviar um comentário