quarta-feira, 21 de maio de 2025

José-António Chocolate: o que baila num poema

 

 

Deverá o poeta tentar explicar o que perpassa pelos seus versos? Caber-lhe-á mostrar as lágrimas que podem correr de desalento ou de paixão no interior do poema? Serão necessárias mais palavras para explicar a palavra? Estas questões serão mera retórica, mas vão ao encontro do que José-António Chocolate se propôs na obra À Descoberta de um Verso (Colibri, 2025), um objecto com finalidade didáctico-pedagógica, deixando perpassar a poesia e debruçando-se sobre ela, trazendo momentos de transfiguração surgidos a partir das telas, que assumem novas interpretações.

Neste livro, poesia, crónica (por vezes, analítica) e ilustração entrelaçam-se, na proporção de um poema para um desenho e para um texto em prosa, funcionando este como descodificador de símbolos, a orientar o caminho, eivado de memórias, de reflexões, de chamadas de atenção, afinal, no cumprimento de uma intenção: sensibilizar para a poesia, “procurar conquistar o leitor para o gosto e uma leitura de poesia, através da desmistificação da palavra e dos versos, tantas vezes associados a alguém fora da realidade e pairando num ambiente lunático”, por um lado, e abrir a fonte do “entendimento da palavra poética”, por outro.

Fala-se, pois, de sensibilização para. E correrá o leitor os caminhos da produção poética, das motivações, do dizer, onde são sinais a força da palavra, a chamada do silêncio, o colorido das memórias, o efeito trazido pelo deleite e pela voluptuosidade de momentos ou de visões. Vê o leitor que todas as vidas se transformam em palavras — o lu(g)ar, simultaneamente conforto, protecção e tempo; a aldeia e as vivências da infância; a labuta e as dificuldades da vida; a paisagem entre a planície e o mar alentejanos; a brutalidade da realidade; o sorriso e a indignação; a sensualidade de momentos; as operações que se fazem com o tempo, às vezes longo, às vezes não mais do que instantâneo; o equilíbrio entre o eu que se expõe e o espelho que o olha; o pacto de quem se diz com a avaliação do caminho feito; a faceta sensorial que nos liga ao mundo; a casa que se constrói em torno do que se é; os sentimentos, por vezes contraditórios, ora libertadores, ora opressivos; a predestinação que quase nos impomos...

Pelos intervalos, passam as palavras de outros, como as perguntas do eterno questionador Pessoa ou o deslumbramento do caminho trazido pelo sevilhano Antonio Machado, passam os retratos dos mais antigos aconchegos, passam os reflexos deixados pelas experiências. Passa também a interpelação, exigindo a conivência do leitor, num trabalho que tem a preocupação de levar a pensar a poesia (ou de a construir), abrindo caminhos a leitores, independentemente da sua maturidade leitora, conjugando o poema (valorizado pela palavra essencial) com a prosa, que lhe giza um possível mapa e ajuda a entendê-lo, e com a arte do traço, outra forma de perscrutar o sentir do mundo, espelhado por autores como Carlos Pereira da Silva, Eduardo Carqueijeiro, Fátima Falcão, Paula Falcão de Lima e Nuno David.

Duas linhas de força correm em paralelo: a ideia de que o poeta não é um “lunático”, antes uma entidade que se expõe pela palavra, reinventando-a e constituindo-a como força metafórica; o princípio de que a poesia leva o seu criador e o seu leitor à descoberta, verdadeiro acto de fé que contempla a epopeia da simplicidade do quotidiano nesse trajecto da procura de quem somos. É este percurso da procura de sentido que José-António Chocolate nos proporciona, ora num acto de revisitação da sua própria poesia, ora com poemas novos, sempre tentando descobrir os seus versos ou dando-os a descobrir, contando histórias, contextualizando, apontando linhas de sentido ou de leitura, num trabalho que tem também a sua dose de didactismo e de desocultação do acto de poetar. É que a poesia é algo que adorna o mundo, assim a saibamos sentir — isso ensinou-nos Miguel Torga num livro de 1950 (que nem sequer é de poesia), quando construiu uma bela metáfora sobre o texto poético: “Poema é toda a página aberta diante de mim, caligrafada de esperança e de calma. Poema é o facho de claridade que incide sobre as coisas e os seres, acariciando com a mesma ternura inefável o bom e o mau, o perecível e o imperecível.” (em Portugal, 1950). O que é preciso então é partir... à descoberta de um verso e das suas cores!

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1534, 2025-05-21, pg. 10.


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