sábado, 31 de maio de 2025

Luís Amaro: o bibliógrafo de Aljustrel (1)

 


“Meu Alentejano bisonho (Isto é por fora: por fora é que é o Alentejano bisonho, o bicho do mato; por dentro é um homem cheio de humanidade, de compreensão, de ternura. Por isso é que começou a nossa amizade, que já tem escrito algumas páginas bonitas).” Assim começa, em 20 de Julho de 1946, uma carta saída da Arrábida, assinada por Sebastião da Gama (1924-1952), dirigida a Luís Amaro (1923-2018), uma das mais antigas na densa relação epistolográfica entre o poeta azeitonense e o seu amigo de Aljustrel, à data a trabalhar em Lisboa, na casa Portugália Editora. A apresentação que é feita de Luís Amaro no início desta carta vai ao encontro do que Ernesto Rodrigues testemunhou e é reproduzido no catálogo resultante da exposição que celebrou o centenário do poeta e bibliógrafo alentejano: “Nome fundamental, no ‘silêncio perfeito’ que o poeta deseja, generoso, elegante”. 

A mostra, intitulada Dádiva - Luís Amaro - Uma Vida em Livros, acontecida entre Junho e Setembro de 2024 na biblioteca que o tem como patrono na sua terra-natal, teve continuidade em Maio através da publicação do respectivo catálogo, edição a cargo da Associação Do Fundo à Superfície (Associação de Defesa do Património Mineiro Cultural e Ambiental do Concelho de Aljustrel). O texto de abertura desta obra deve-se a Guilherme d’Oliveira Martins, que assim o apresenta: “Luís Amaro representa a memória viva da cultura e das letras portuguesas. (...) Foi poeta, bibliófilo, estudioso e investigador, tornando-se raro mestre em matéria bibliográfica, a quem qualquer editor competente podia recorrer com segurança quando houvesse dúvidas ou hesitações. (...) Sempre discreto, os maiores especialistas reconheceram-lhe essa excepcional qualidade, só possível a um grande conhecedor e a um trabalhador incansável.”

Oriundo de uma família humilde, Luís Amaro cedo começa o seu itinerário na causa dos livros — acabada a instrução primária, são um ajudante-farmacêutico, a biblioteca da Associação dos Operários Mineiros e Adeodato Barreto (advogado e poeta, em cujo cartório Luís Amaro começa a trabalhar aos 12 anos) os responsáveis pelo culto pelas letras e por um trajecto que sempre o aproximará dos livros e da leitura, passando por um estágio no “Diário do Alentejo” quando tinha 13 anos, por um emprego na Biblioteca Municipal de Beja, por colaboração jornalística em diversos periódicos (Ala EsquerdaO ArraiolenseBrados do AlentejoRevista Transtagana, entre outros), até chegar a um emprego em Lisboa, na Livraria Portugália (onde foi caixeiro-livreiro). Daí, transitaria para a Portugália Editora como revisor de provas, sob cujo olhar criterioso passaram as obras de alguns dos mais conceituados escritores portugueses do século XX — Aquilino Ribeiro, Fernando Namora, Jaime Cortesão, José Saramago, José Régio (uma leitura do volume da correspondência trocada entre Régio e Amaro, editado em 2024 pela editora Colibri, trabalho devido a Ernesto Rodrigues, demonstra bem o cuidado e a qualidade de revisor-editor que Luís Amaro praticou), Manuel da Fonseca, Sebastião da Gama, Soeiro Pereira Gomes, entre muitos mais.

Com o cuidar da obra dos outros e com o espírito reservado que o caracterizava, só em 1949 publicou a sua obra, depois de muitos incentivos de amigos, entre os quais Sebastião da Gama. Dádiva foi o título atribuído, escolha que Sebastião da Gama assim comentou no seu Diário (registo de 18 de Fevereiro de 1949): “Ao escrever isto — ‘ser professor é dar-se’ —, lembro-me do Amaro. Pobre querido Amigo, tão nobre, tão modesto, tão púdico da sua intimidade. Um António Nobre que chegou tarde, uma flor que o vento magoou... Há três anos que lhe peço o livro: ele, tímido, recusa sempre mostrá-lo ao Mundo. (...) Pois há uma semana encontrei o Amaro. Acompanhei-o. Junto de um portal, com medo de que alguém que passasse o ouvisse, segredou-me: ‘Vou publicar.’ “Diário Íntimo?’ ‘Não. DÁDIVA.’ Senti cá dentro uma lágrima que era a compreensão exacta e comovida daquele nome. Dádiva. Dádiva. Dádiva.” Luís Amaro conheceu esta opinião do amigo uns meses depois, quando, em 2 de Outubro, recebeu de Sebastião da Gama longa carta (uma das mais longas no seu epistolário para o amigo), apreciando o livro e transcrevendo este excerto do seu diário. Diário Íntimo - Dádiva e Outros Poemas viria a ser o novo título da obra, ampliada, em 1975 e em 2011, enquanto em 2006 se intitularia Diário Íntimo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1539, 2025-05-28, pg. 6.


quarta-feira, 21 de maio de 2025

José-António Chocolate: o que baila num poema

 

 

Deverá o poeta tentar explicar o que perpassa pelos seus versos? Caber-lhe-á mostrar as lágrimas que podem correr de desalento ou de paixão no interior do poema? Serão necessárias mais palavras para explicar a palavra? Estas questões serão mera retórica, mas vão ao encontro do que José-António Chocolate se propôs na obra À Descoberta de um Verso (Colibri, 2025), um objecto com finalidade didáctico-pedagógica, deixando perpassar a poesia e debruçando-se sobre ela, trazendo momentos de transfiguração surgidos a partir das telas, que assumem novas interpretações.

Neste livro, poesia, crónica (por vezes, analítica) e ilustração entrelaçam-se, na proporção de um poema para um desenho e para um texto em prosa, funcionando este como descodificador de símbolos, a orientar o caminho, eivado de memórias, de reflexões, de chamadas de atenção, afinal, no cumprimento de uma intenção: sensibilizar para a poesia, “procurar conquistar o leitor para o gosto e uma leitura de poesia, através da desmistificação da palavra e dos versos, tantas vezes associados a alguém fora da realidade e pairando num ambiente lunático”, por um lado, e abrir a fonte do “entendimento da palavra poética”, por outro.

Fala-se, pois, de sensibilização para. E correrá o leitor os caminhos da produção poética, das motivações, do dizer, onde são sinais a força da palavra, a chamada do silêncio, o colorido das memórias, o efeito trazido pelo deleite e pela voluptuosidade de momentos ou de visões. Vê o leitor que todas as vidas se transformam em palavras — o lu(g)ar, simultaneamente conforto, protecção e tempo; a aldeia e as vivências da infância; a labuta e as dificuldades da vida; a paisagem entre a planície e o mar alentejanos; a brutalidade da realidade; o sorriso e a indignação; a sensualidade de momentos; as operações que se fazem com o tempo, às vezes longo, às vezes não mais do que instantâneo; o equilíbrio entre o eu que se expõe e o espelho que o olha; o pacto de quem se diz com a avaliação do caminho feito; a faceta sensorial que nos liga ao mundo; a casa que se constrói em torno do que se é; os sentimentos, por vezes contraditórios, ora libertadores, ora opressivos; a predestinação que quase nos impomos...

Pelos intervalos, passam as palavras de outros, como as perguntas do eterno questionador Pessoa ou o deslumbramento do caminho trazido pelo sevilhano Antonio Machado, passam os retratos dos mais antigos aconchegos, passam os reflexos deixados pelas experiências. Passa também a interpelação, exigindo a conivência do leitor, num trabalho que tem a preocupação de levar a pensar a poesia (ou de a construir), abrindo caminhos a leitores, independentemente da sua maturidade leitora, conjugando o poema (valorizado pela palavra essencial) com a prosa, que lhe giza um possível mapa e ajuda a entendê-lo, e com a arte do traço, outra forma de perscrutar o sentir do mundo, espelhado por autores como Carlos Pereira da Silva, Eduardo Carqueijeiro, Fátima Falcão, Paula Falcão de Lima e Nuno David.

Duas linhas de força correm em paralelo: a ideia de que o poeta não é um “lunático”, antes uma entidade que se expõe pela palavra, reinventando-a e constituindo-a como força metafórica; o princípio de que a poesia leva o seu criador e o seu leitor à descoberta, verdadeiro acto de fé que contempla a epopeia da simplicidade do quotidiano nesse trajecto da procura de quem somos. É este percurso da procura de sentido que José-António Chocolate nos proporciona, ora num acto de revisitação da sua própria poesia, ora com poemas novos, sempre tentando descobrir os seus versos ou dando-os a descobrir, contando histórias, contextualizando, apontando linhas de sentido ou de leitura, num trabalho que tem também a sua dose de didactismo e de desocultação do acto de poetar. É que a poesia é algo que adorna o mundo, assim a saibamos sentir — isso ensinou-nos Miguel Torga num livro de 1950 (que nem sequer é de poesia), quando construiu uma bela metáfora sobre o texto poético: “Poema é toda a página aberta diante de mim, caligrafada de esperança e de calma. Poema é o facho de claridade que incide sobre as coisas e os seres, acariciando com a mesma ternura inefável o bom e o mau, o perecível e o imperecível.” (em Portugal, 1950). O que é preciso então é partir... à descoberta de um verso e das suas cores!

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1534, 2025-05-21, pg. 10.


quarta-feira, 14 de maio de 2025

Papa Francisco: um “viva” para a poesia (3)

 


Um dos textos intensos, em termos de percurso histórico-cultural e de defesa dos poetas, presente em Viva la Poesia!, do Papa Francisco, é a carta apostólica de Março de 2021, surgida a propósito do sétimo centenário da morte de Dante Alighieri, exercício que passa pelas leituras pontifícias que o poeta italiano possibilitou no século XX (através de Bento XV, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI) e pela adesão de Francisco ao autor de Divina Comédia, obra que se afirma como “um grande itinerário, assim como uma verdadeira peregrinação, seja pessoal e interior, seja comunitária, eclesial, social e histórica”. Entendendo Dante como “paradigma da condição humana”, Francisco atribui-lhe a missão de ser “poeta da esperança” pelo caminho que fez entre uma visão do inferno, “a condição humana mais degradante”, e a visão de Deus, como possibilidade de “uma nova humanidade que aspira à paz e à felicidade”, irmanando-o com Francisco de Assis.

A construção deste caminho, com invocações históricas, recheado de símbolos e de imagens intensas, apresenta Dante como referência de um tema que é caro a Francisco: “paladino da dignidade de todo o ser humano e da liberdade como condição fundamental tanto das opções de vida como da própria fé”. Quase no final do texto, Francisco considera que, em Dante, “podemos quase vislumbrar um precursor da nossa cultura multimedia, na qual palavras e imagens, símbolos e sons, poesia e dança se fundem numa única mensagem”, razão adicional para que a obra do poeta florentino seja apresentada aos jovens como mensagem forte e importante.

Esta preocupação de apresentar a literatura, particularmente a poesia, como determinante para a formação dos agentes pastorais constitui tema da carta em que Francisco abordou esse papel, datada de Julho de 2024, logo de início defendendo “o valor da leitura de romances e de poesia no caminho do crescimento pessoal”. Seguindo uma perspectiva didáctica da leitura, porque “uma obra literária é um texto vivo e sempre fecundo”, Francisco elogia a capacidade criativa que a leitura traz, em vantagem sobre outros meios — “Diferentemente dos meios audiovisuais, onde o produto é mais completo e a margem e o tempo para enriquecer uma narrativa ou interpretá-la costumam ser menores, na leitura de um livro o leitor é muito mais ativo. De alguma forma, ele reescreve a obra, amplifica-a com sua imaginação, cria um mundo, usa as suas capacidades, a sua memória, os seus sonhos, a sua própria história cheia de drama e simbolismo.” Para reforçar a importância da literatura na formação, Francisco valoriza a forma como o quotidiano a influencia e recorre ao jesuíta Karl Rahner (1904-1984) quando disse que ela parte dos “acontecimentos reais como a ação, o trabalho, o amor, a morte e todas as coisas pobres que preenchem a vida.” E conclui o Papa: “O olhar da literatura treina o leitor na descentralização, no sentido dos limites, na renúncia ao domínio cognitivo e crítico sobre a experiência, ensinando-lhe uma pobreza que é fonte de riqueza extraordinária. Ao reconhecer a inutilidade e talvez até a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinómica de verdadeiro/falso ou certo/errado, o leitor acolhe o dever de julgamento não como instrumento de dominação, mas como impulso à escuta incessante.”

O elogio (e desafio) aos poetas consta numa carta que lhes é dirigida, publicada em 2024, numa antologia de poesia religiosa. Apresentando-os como aqueles que são “olhos que olham, mas também sonham”, elege-os como excelentes mensageiros, pois “o artista é o homem que vê mais profundamente, profetiza, anuncia uma maneira diferente de ver e de compreender as coisas que estão diante dos nossos olhos”, apresentando “tanto as belas quanto as trágicas realidades da vida”. Chamando-os à sua função para a Humanidade, Francisco enaltece o trabalho dos poetas — “dar vida, dar corpo, dar palavras a tudo o que o ser humano vive, sente, sonha, sofre, criando harmonia e beleza” —, ao mesmo tempo que lhes atribui a responsabilidade de poderem “ajudar a entender melhor Deus como o grande ‘poeta’ da humanidade.” Em jeito de exortação, este texto conclui com o incentivo aos poetas: “Segui em frente, sem cansar, com criatividade e coragem!”

Este texto acaba por justificar todas as mensagens sobre poesia que Francisco nos lega neste Viva la Poesia!, dirigindo-se aos leitores, aos formadores, aos que escrevem, aos responsáveis pelo mundo, assumindo a poesia como uma manifestação de aprendizagem do humano, absolutamente necessária, porque “uma pessoa que perdeu a capacidade de sonhar não tem poesia, e a vida sem poesia não funciona.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1524, 2025-05-14, pg. 14.


quinta-feira, 8 de maio de 2025

Papa Francisco: um “viva” para a poesia (2)

 


A apresentação pública de Viva la Poesia!, reunindo uma dúzia de textos do Papa Francisco (entre encíclicas, prefácios e entrevistas) sobre a necessidade dessa arte que a poesia é, ocorreu no mês de Março, quando ele estava internado no hospital Gemmeli, em Roma. Ao longo das várias intervenções recolhidas, o leitor fica perante formulações que valem um programa pedagógico de âmbito universal.

No primeiro texto papal, entrevista dada a Antonio Spadaro (o responsável por esta obra) publicada em 2013, Francisco recorda um episódio do seu tempo de professor, quando tinha de leccionar El Cid aos seus alunos — perante o descontentamento dos jovens quanto à matéria, desafiou-os a lerem a obra em casa para, nas aulas, serem tratados autores como García Lorca ou outros, contemporâneos, mais estimulantes. “Para mim, foi uma grande experiência”, admite Francisco, pois “concluí o programa, mas de forma não estruturada, organizado não conforme o que era esperado, mas sim segundo uma ordem que surgiu naturalmente na leitura dos autores.” E pergunta Spadaro: “Então, Santo Padre, para a vida de uma pessoa, é importante a criatividade?” A resposta, embrulhada em riso: “Para um jesuíta é extremamente importante! Um jesuíta deve ser criativo!” Uma criatividade que levou o então professor Jorge Bergoglio a apresentar contos escritos pelos seus alunos a Jorge Luis Borges, que prefaciou uma recolha dessas narrativas...

Este texto poder-se-á ligar ao último, que reproduz uma entrevista de Spadaro a Jorge Milia, aluno de Bergoglio em Santa Fé, na escola jesuíta da Imaculada Conceição, no início da década de 1960, e autor de um dos contos incluídos na referida antologia, lembrando as aulas do professor e o contributo legado para o conhecimento da literatura, para a escrita criativa e para a divulgação do teatro entre os alunos — “Com Bergoglio, o teatro levou os alunos a considerarem as obras como um trabalho de equipa e a aprenderem a descobrir a verdadeira mensagem dos autores.”

A atenção à leitura da poesia é a preocupação que ressalta neste livro, associada à forma de estar no mundo e de agir humanamente. Quando Luca Milanese (n. 1992) publicou em 2020 o livro Rime a sorpresa, o prefaciador foi Francisco, numa tarefa que lhe agradou (como revela nesse texto) e que acabou por ser um pequeno manifesto em favor do acto poético: “Não haveria poesia se não houvesse alguém disposto a ouvi-la. Se o nosso tempo é pobre em poesia, não é porque não exista a beleza, mas porque temos dificuldade em ouvir”, pois “a poesia é um exercício livre de escuta, um caminho com duas direções: para quem a escreve e para quem a ouve.”

Desse mesmo ano é a carta papal Querida Amazónia, obra em que as referências a poetas avultam, como são os casos da equatoriana Yana Lucila Lema, do colombiano Juan Carlos Galeano, do peruano Javier Yglesias, do chileno Pablo Neruda, do boliviano Jorge Vega Márquez ou dos brasileiros Vinícius de Moraes e Pedro Casaldáliga. As preocupações com o mundo, expõe-nas Francisco com um permanente recurso à poesia, como também ficou evidente na mensagem para o IV Encontro Mundial dos Movimentos Populares (em Outubro de 2021), designando-os como “samaritanos colectivos” e desafiando os interlocutores a serem “poetas sociais”, uma vez que têm “a capacidade e a coragem de criar esperança onde só há desperdício e exclusão”, por isso se lhes aplicando a designação — é que “poesia é criatividade, e vós criais esperança.”

A preocupação com a Inteligência Artificial e com uma educação marcada pela humanidade encontram também eco em Francisco e na sua defesa dos sentimentos e da poesia da vida, como o deixou patente no discurso à academia da Universidade Pontifícia Gregoriana, em Novembro de 2024: “Nenhum algoritmo pode substituir a poesia, a ironia e o amor, e os alunos precisam de descobrir o poder da imaginação, ver a inspiração germinar, entrar em contacto com suas emoções e ser capazes de expressar seus sentimentos.” A propósito da expressão das emoções e da ironia, valerá a pena lembrar que, meses antes, em Junho, ocorreu o encontro de Francisco com uma centena de humoristas de todo o mundo (em que estiveram os portugueses Ricardo Araújo Pereira, Joana Marques e Maria Rueff), tendo valorizado esta arte de uma forma surpreendente, quase descobrindo a poesia do riso: “quando vocês fazem alguém sorrir, Deus também sorri.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1524, 2025-05-07, pg. 10.

 

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Papa Francisco: um “viva” para a poesia (1)

 


“Caro irmão, viva a poesia! Fico feliz que tenha reunido os textos que escrevi ao longo dos anos sobre a importância da poesia. Gostaria que a poesia ocupasse um papel importante nas nossas universidades! Precisamos de recuperar o gosto pela literatura nas nossas vidas, mas também na nossa educação, caso contrário seremos como um fruto seco. A poesia ajuda-nos a sermos humanos, e hoje precisamos muito dela.” A mensagem, datada da Casa de Santa Marta em 20 de Janeiro de 2025, tem a assinatura do Papa Francisco (Jorge Mario Begoglio, 1936-2025) e é dirigida ao jesuíta Antonio Spadaro (n. 1966), que a reproduziu na abertura do livro Viva la Poesia! (Milano: Edizioni Ares), recolha de textos do Papa argentino produzidos entre Agosto de 2013 e Novembro de 2024.

No capítulo introdutório, assinado pelo organizador da antologia, a atenção do leitor vai sendo encaminhada para algumas das traves-mestras que suportam o pensamento de Francisco, texto significativamente intitulado “A vida sem poesia não funciona”.

Spadaro apresenta-nos o percurso de leitor e de pensador do Papa a partir de um princípio que estabelece ligação com a poesia — “Bergoglio sabe que a falta de imaginação é um sério problema para a fé.” Esta afirmação surge como eco de uma quase confissão deixada pelo Papa num discurso para a revista La Civiltà Cattolica, em Fevereiro de 2017, quando afirmou que continuava a ler poesia sempre que lhe era possível, pois “a poesia é cheia de metáforas” e compreendê-las “torna o pensamento ágil, intuitivo, flexível e preciso”, ideia que completava com uma chave que alimentou muitas das suas intervenções e que marcou muitos dos que o admiram: “Quem tem imaginação não se torna rígido, tem sentido de humor, goza sempre da doçura da misericórdia e da liberdade interior.”

Fica patente o papel atribuído à manifestação artística, aqui representado pela poesia: o de ser indispensável para a peregrinação humana que decorre numa vida, aspecto demasiado importante, porquanto, diz Spadaro, “a leitura de romances e de poesia não é um simples passatempo, mas um meio para explorar as profundezas da alma humana e para cada um se compreender melhor a si próprio e aos outros”.

A fechar esta apresentação, o organizador refere uma constante nas intervenções de Francisco — “larga referência à poesia e à literatura nos seus discursos e nos documentos que legou, ora citando um verso, ora um autor ou o título de uma obra”. Para o confirmar, todos nos lembramos dos seus discursos na Jornada Mundial da Juventude de 2023, como no de 2 de Agosto, no encontro no Centro Cultural de Belém, perante o corpo diplomático, em que citou Camões, Sophia de Mello Breyner, Fernando Pessoa e José Saramago, ou, ainda no mesmo dia, no encontro com o clero e agentes da pastoral, nos Jerónimos, invocando o padre António Vieira e Fernando Pessoa, ou, no dia seguinte, quando se encontrou com jovens universitários e convocou para a sua mensagem os nomes de Pessoa, Sophia e Almada Negreiros...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1520, 2025-04-30, pg. 20.