Em Estala de Saudade o Coração, assiste o leitor ao entusiasmo da jovem Joana Luísa, com 21 anos, a escrever a uma amiga, em Agosto de 1944, dando-lhe conta do início do namoro dos dois — “eu, a Luísa, e ele, o Sebastião, chegámos enfim a um acordo. Eu deixei de fingir que não gostava dele e ele viu enfim que não me dará o desgosto que temia, porque se julga muito barro, muito humano, muito tudo menos o que é. Para mim, é apenas aquele que eu sempre esperei para companheiro da minha vida, é aquele que eu amo, nada mais, não lhe ponham defeitos, porque cruzarei os braços ante os obstáculos e vencerei, se Deus quiser.”
Se o namoro entre Joana e Sebastião foi o ponto de partida para tão longo percurso, as provas da fidelidade vão surgindo no decorrer das várias intervenções — em 18 de Maio de 1999, ao falar na cerimónia de entrega do Prémio de Poesia Sebastião da Gama, tendo sido pedido a Joana Luísa um discurso de cinco minutos, dirá perante a assistência: “Como posso eu meter o Sebastião em cinco minutos, estando ele presente 24 horas em cada dia dos 365 dias do ano?” A pergunta não seria apenas retórica, mas denotava toda a dedicação que continuava a existir — e quem estava presente ouviu mais uma história protagonizada pelo jovem Sebastião em 1945, quando terminou a Grande Guerra: “ele chegou de Lisboa e ouviam-se em toda a vila os gritos dele, desde que saiu da camioneta de passageiros até à minha porta: ‘Acabou a guerra! Acabou a guerra! Acabou a guerra!’ E foi assim aos gritos que ele manifestou a sua alegria.”
O entusiasmo dos dois aquando da publicação dos livros é também lembrado, seja na publicação do seu primeiro título, Serra-Mãe, no meio de dificuldades económicas e editoriais, das recomendações de amigos quanto à estrutura da obra, das idas sucessivas à tipografia, da revisão de provas, seja na preparação do segundo, Cabo da Boa Esperança, tarefa partilhada por ambos — “O caderno ia engrossando e chegou a altura de fazer a selecção. Bem difícil tarefa! Tinha a preocupação de não engrossar demasiado o livro e, vista agora, à distância, encontro uma ternura enorme recordando a cena dos dois diante do caderno, lendo poemas, trocando uns por outros, tirando mesmo alguns, para que o livro não fosse volumoso nem caro de mais."
Joana Luísa foi testemunha de momentos de poesia vividos com Sebastião da Gama. Se, no tempo que durava a finalização de um poema, ele queria estar sozinho, ela foi também, frequentemente, a primeira ouvinte e a primeira leitora de muita da produção poética, instantes que preservou quase cinematograficamente, como relembrou a propósito da escrita do poema “Nocturno”, de 1946: “Uma noite, o Sebastião saiu para a Serra como sempre. Quando voltou, trouxe um poema; nós estávamos na praia e, a caminho de casa, pela noite, de braço dado, ouvi-o murmurar esse poema. Foi tão linda aquela hora! O mar, o vento, o silêncio da noite e o poema dito por ele. (...) Quando volta assim da Serra, vem tão bonito! Os olhos muito abertos, os lábios vermelhos entreabertos, olha para longe, longe, para aonde não podemos olhar, e diz o poema.”
Joana Luísa acompanhou Sebastião da Gama nos sentimentos, ambos perfilhando a vivência de fortes emoções, muitas vezes surpreendentes. Caso a que não falta essa intensidade, pela espontaneidade e naturalidade do acontecimento, é o do episódio acontecido no dia do casamento, em 4 de Maio de 1951, relembrado numa entrevista à Antena 1, em 1988: “No dia do nosso casamento, ele foi muito cedo para a Serra, casámos no Convento da Arrábida, e por lá andou. E, como fazia muitas vezes, apanhou um ramo de alecrim. Quando eu cheguei à porta da capela com o meu ramo de rosas, ele veio ter comigo, pediu-me as rosas, que deu a um convidado, e disse-me: ‘Leva antes estas!’ E eu casei-me de ramo de alecrim...”
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1482, 2025-03-05, pg. 9.