A guerra, na sua faceta mais brutal, percorre todas as páginas do livro A Grande Porta de Kiev, conjunto de treze poemas assinados por António Marques (n. 1956), em edição do sesimbrense Centro de Estudos Culturais e de Acção Social Raio de Luz, textos em que, apesar de uma clara intenção de apregoar a paz, o leitor é posto perante a inevitabilidade: “Desde os tempos sem rasto ou memória / Que dizimamos e aniquilamos civilizações / Não me venham com conversas retóricas e sermões / Desde que me conheço é sempre esta a história / Treinado pelos assírios lutei por gregos e romanos / Sob a cruz templária assaltei e matei em Jerusalém / A coberto de navegações na morte fui sempre mais além / Em guerras santas dei caça a cristãos e muçulmanos / Fiz a guerra dos cinco dos dez dos cinquenta e dos cem anos / cavaleiro armado e sagrado na verdade simples mercenário / Sem piedade ou perdão aos inimigos fui temerário / Com armas primitivas ou modernas nunca temi senhor / Não me tornei assim agressivo e bélico como sou, agora / Cego e sem piedade não é coisa de agora vem de outrora”.
A citação é longa, vem quando o livro já vai a mais de meio, mas revela o desabar de toda a esperança, o gene da revolta contra o estado de coisas das civilizações, na voz de um eu que se assume combatente contrariado pela paz, perdedor, revoltado, num caminho sem sentido, acompanhado pela barbárie, em que “o que vai ficar são destroços e entulhos / Tijolos e pedras manchadas pelo sangue dos heróis / Anónimos reduzidos a pó e ao esquecimento / Entre os aços retorcidos pelo calor da batalha / Semeados pelos gelados campos eslavos”.
A destruição provocada pelo confronto bélico, cujas causas nem sempre são conhecidas, esbarra no sentir primeiro do poeta — “Sou avesso às guerras, justas ou injustas, todas mortais / Aqui, neste lugar, ou em qualquer outro”, ideia complementada mais adiante, ainda no primeiro poema: “Só a paz desejo, é o meu combate, o meu desígnio / A luta pela honra e pela liberdade”.
Todo o livro corre sobre a pele da sobrevivência num mundo em destruição, sempre a aguardar o que pode ser “o derradeiro combate”, numa ansiedade resultante da luta entre a raiva e a angústia, entre a dor e o amor (lembrando mesmo o episódio bíblico da luta fratricida — “Desde os tempos de Abel / Que morremos às mãos de um irmão”), entre o “sacrifício dos ideais”, o infortúnio e a hipocrisia, conflitos denunciados pela palavra poética — “Fornecemos sempre munições, víveres e provisões / Alimentamos o ódio dando expressão à raiva / Promovemos recolhas de bens e dinheiro / Doamos armas de todos os tamanhos feitios e gerações, / Numa hipócrita solidariedade humana”. A revolta é intensa e dela faz o poeta a sua prova — “Escrevo em paredes e nos muros das vilas e das cidades / O desconforto e a revolta // NÃO À GUERRA / Esta e qualquer outra // Não me ouvem? Porra!”
Atrás do título “A Grande Porta de Kiev”, há um percurso artístico forte, personalizado em várias estéticas e por diversos nomes — se a primeira vez que foi utilizado se deveu ao arquitecto e pintor Viktor Hartmann (1834-1873), autor do desenho de uma porta comemorativa para Kiev com vista a assinalar o atentado falhado contra o czar Alexandre II (em 4 de Abril de 1866), nunca construída, a verdade é que uma exposição da obra de Hartmann em S. Petersburgo, no ano seguinte ao seu falecimento, constituiu o pretexto para o compositor Modest Mussorgski (1839-1881) construir uma peça para piano intitulada “Quadros de uma Exposição” a partir de dez telas, sendo uma, a última, “A Grande Porta de Kiev”. A composição musical ganharia projecção a partir da orquestração feita em 1922 por Maurice Ravel (1875-1937) e o tema voltaria a passar pela pintura através da criação de Wassily Kandinsky (1866-1944), que, em 1930, foi autor da tela com o mesmo título, reprodução que ilustra a capa do livro de António Marques.
A porta de Kiev, “a grande porta de Kiev”, afigura-se como o marco temporal e de esperança “da última e decisiva hora / Onde a verdade e a vida / Prevalecerão sobre / A mentira e a morte”, com uma força simbólica que José Ramos-Horta assinala na introdução ao livro: “para a defesa da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, é necessário manter a grande porta de Kiev aberta ao mundo”. Assim, a poesia edifica o monumento que homenageia os que tombaram e lembra que a vida é possível...
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1497, 2025-03-26, pg. 8.
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