Não tivessem sido a dedicação e a persistência de Joana Luísa da Gama (1923-2014) e os leitores pouco conheceriam da obra de Sebastião da Gama (1924-1952)! Talvez mesmo se tivesse perdido a maior parte da sua produção literária!... A obra do poeta poderia ter-se cingido aos títulos por si publicados — Serra-Mãe, em 1945, Cabo da Boa Esperança, em 1947, e Campo Aberto, em 1951, além dos textos que deixou dispersos por vários jornais e revistas, das quadras que foram integradas nas Loas a Nossa Senhora da Arrábida (em 1946), do texto A Região dos Três Castelos, de 1949, que cativava para as viagens turísticas nas imediações da Arrábida e, talvez, de Pelo Sonho é que Vamos (de 1953), a primeira obra póstuma, que Sebastião da Gama deixara orientada e com título escolhido. Todos os restantes títulos do poeta e professor azeitonense publicados resultaram do empenho posto por Joana Luísa da Gama, na tarefa de recolha, organização e preservação dos manuscritos e dactiloscritos do marido, e por um grupo de amigos do casal (David Mourão-Ferreira, Matilde Rosa Araújo, Luís Amaro, Maria de Lourdes Belchior e Luís Filipe Lindley Cintra, entre outros), que acompanharam as edições sucessivas.
Após o falecimento de Sebastião da Gama, o itinerário de Joana Luísa passou pela vida conventual (até final de 1955), tendo chegado a tomar o hábito nas Franciscanas Missionárias de Maria sob o nome de Maria Delfina de Jesus, pelos estudos na Escola João de Deus, pelo trabalho nas Misericórdias de Lisboa e de Azeitão e no Centro Regional de Segurança Social, pela dedicação ao apoio social e pela divulgação da obra do marido. A ideia de um novo casamento não se lhe voltou a pôr, pois, como disse em entrevista a Vladimiro Nunes, na revista Tabu (jornal Sol, 3.Fev.2012), “ia ser o mais infiel possível ao homem que casasse comigo, porque não me largava do Sebastião”. Este sentimento, explicava-o ela ao entrevistador nos seguintes termos: “Não sou capaz de pensar no Sebastião morto. Não o vejo, mas encontro-o. Ele está sempre comigo. (...) Sei que ele está vivo e ajuda-me. Pergunto-lhe muitas vezes o que hei-de fazer. Não sai livro nenhum sem eu ter a resposta do Sebastião. Todos os livros que têm saído, ele tem consentido. E tem ajudado.” Uma espécie de presença pressentida que foi publicamente confessada por Joana Luísa em diversas ocasiões, como, por exemplo, em 1985, quando, num encontro com jovens da Casa do Gaiato, onde contou a história do encontro entre Sebastião da Gama e o Padre Américo ocorrido em 1947, disse à assistência: “Não estou aqui por acaso, (...) estou em lugar do Sebastião, do nosso poeta Sebastião da Gama, porque se ele cá estivesse viria aqui fazer esta apresentação. Mas ele deixou um recado e eu venho trazê-lo.” Outro momento, para lembrar um outro reflexo desta união, aconteceu em 2007, ao falar para alunos e professores numa escola em Carnaxide: “Será desnecessário dizer o carinho que sinto pelos professores e quanto sofro e me alegro com eles. São colegas do meu marido. São, porque o Sebastião continua presente.”
Os períodos de vida dos dois quase se entrelaçaram no tempo — Sebastião da Gama nasceu em Abril e faleceu em Fevereiro, Joana Luísa nasceu em Fevereiro e faleceu em Abril. Nos 62 anos que sobreviveu ao marido, ela não deixou de testemunhar, de divulgar, de apresentar, de falar sobre a obra dele, fosse em sessões poéticas, fosse em eventos públicos para que era convidada, sobretudo em escolas, caracterizando-se sempre o seu testemunho pela leitura de alguns textos de Sebastião, por vezes recorrendo a inéditos, pelo contar de uma história relacionada com os textos lidos e por uma viagem nas memórias.
Foi da reunião de alguns desses textos que surgiu o livro Estala de Saudade o Coração (Associação Cultural Sebastião da Gama, 2013), em cuja apresentação Joana Luísa ainda esteve presente, apesar de já revelar alguma debilidade física. O passeio que, enquanto leitores, podemos fazer por essas páginas dominadas pela memória é um trajecto impressionante numa história de amor e de poesia, de saudade e de reconhecimento.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1478, 2025-02-26, pg. 10.
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