A ligação de Sebastião da Gama a Estremoz seguiu um caminho de intensidade crescente, numa simpatia mútua e na construção de uma rede de afectos, como testemunha uma sua carta dirigida a Albano Ferreira, em 7 de Setembro de 1951: “Devo estar mais um ano, pelo menos, em Estremoz. A terra é agradável, a gente é boa.” Esta permuta afectiva revelou-a ele a quem o ouviu quando, em Abril de 1951, a convite de João Falcato, repetiu no Colégio Estremocense a conferência que fizera em Setúbal sobre Bocage — a concluir a palestra, disse, numa linguagem de empatia e com não menos dose de simplicidade, ter sido “o prazer de pagar aos estremocenses com leite do meu gado o puro azeite da simpatia e do bom acolhimento.”
Estremoz foi também o espaço e o tempo de transformação e de criação para Sebastião da Gama, visível até nos gestos mínimos, provas da satisfação e do prazer de sentir e de partilhar a alegria e a vida, tal como contou em carta de 13 de Janeiro de 1951 a Joana Luísa: “Alegre, alegre mesmo com a chuva, é o mercado aos sábados. Hoje comprei - pelo prazer de comprar: dois molhinhos de rabanetes, que trouxe na mão como violetas; meio quilo de peros; um prato de barro para os pôr: no fundo tem um passarinho.” Há lá maneira melhor do que recriar a vida ao atribuir significado e força àquilo que impressiona o olhar de um poeta!...
Na obra Uma Outra Voz, de Gabriela Ruivo Trindade (Leya, 2014), romance baseado na figura de João Francisco Carreço Simões e na sua acção em Estremoz, Sebastião da Gama, designado como “professor” e como “poeta” ocupa quase três páginas, num retrato traçado a partir das memórias que deixou na cidade alentejana. É através da personagem José Eduardo Serrão, com 15 anos em 1954, que o leitor recebe o eco das lembranças do poeta da Arrábida que permaneceu em quem com ele privou.
“Do professor de português, o poeta, é que nunca mais me esqueci.” — assim começa a evocação. E, no final da passagem: “Depois de o poeta abalar — não gosto de dizer que morreu —, parecia que me tinha passado a vontade de rir. Comecei a ler cada vez mais.” A memória exposta vale como um testemunho do que para quem o conheceu em Estremoz significou a figura de Sebastião da Gama: a leitura que ele fazia de poemas, que se tornava motivadora, enchendo-se-lhe, por vezes, os olhos de lágrimas ao longo do poema; o professor que “falava da beleza das pedras, das cores das folhas no Outono, do azul do mar, da imensidão dos céus e da magia das estrelas”; as sucessivas chamadas de atenção para a beleza do outro e da Natureza; a abertura para que os alunos interviessem nas aulas e o prazer que os estudantes tinham no tempo de uma lição com aquele professor; os ensinamentos de solidariedade recebidos, convidando os jovens à partilha e à dedicação aos mais necessitados; as suas idas ao mercado estremocense para comprar flores... enfim, um conjunto de marcas que identificaram Sebastião da Gama no seu relacionamento com a vida e com o local. Se dúvidas existissem quanto à identificação deste professor e poeta, elas seriam desvanecidas com a referência à Arrábida, com a indicação da sua morada, “no segundo andar de uma casita do Largo do Espírito Santo”, com a alusão a uma prenda que a personagem recebera — “Não era à toa que lhe chamávamos poeta, pois, além de tudo isto, escrevia versos. Ainda guardo um livro de poemas seus chamado Cabo da Boa Esperança que me ofereceu.”
Para esta personagem, que tinha 13 anos aquando do falecimento de Sebastião da Gama, o desaparecimento do poeta volveu um quase-mistério: “Nunca percebi bem que doença tinha, e depois de ter abalado as pessoas também preferiram não falar disso. Foi-se embora durante as férias do Carnaval e, apesar de tudo, ia feliz por regressar à sua Serra da Arrábida, como dizia. É um lugar muito longe daqui, explicou, ‘onde os ares são muito puros e curam algumas doenças’. Com ele, pelos vistos, não resultou. Ouvi algumas conversas e também li no jornal. Vinha uma fotografia e um poema dele, que começa assim: ‘Quando eu nasci / Ficou tudo como estava...’ E depois, em baixo, a cruz preta. Penso nele muitas vezes com saudade. Foi a primeira pessoa de quem gostava que morreu. Sem contar com o meu pai, claro.”
Muito embora sendo o testemunho de uma personagem de ficção, a intensidade desta caracterização corresponderá ao que a sociedade estremocense da época ficou a conhecer de Sebastião da Gama, fosse pelo retrato chegado (e mantido) por via dos seus alunos, fosse por quem com ele conviveu na escola e na rua, no café, nas tertúlias e no Rossio. Manter a imagem do poeta através de uma obra de ficção é também uma forma de resolver o mistério que envolve uma partida aos 27 anos, sobretudo quando sentida por uma população juvenil que neste professor encontrava momentos de felicidade... como sucessivamente muitos foram lembrando ao longo dos tempos.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1468, 2025-02-12, pg. 10.
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