A primeira descrição que Domenico Laffi faz em terras portuguesas nesta Viagem de Pádua a Lisboa acontece em Serpa, onde “as casas são pequenas, isto é, baixas devido ao vento do oeste, e todas com chaminé, ou seja, lareira onde se acende o fogo, decerto a coisa mais bonita delas”, construções que se apresentam “rodeadas de grandes muros, muito altos” e “feitas de várias maneiras e de vária arquitectura, de modo que, de longe, são agradáveis à vista.” Em Alcácer do Sal, “bela vila banhada por um braço do oceano”, surpreendem-no as salinas e o embarque de géneros.
É também neste cais que toma lugar num barco para chegar, pelo meio-dia de 14 de Setembro de 1687, a Setúbal, que classifica como “cidade bonita, com o seu porto de mar muito mercantil e capaz de conter qualquer armada e navios de qualquer lotação”. Na apresentação que faz da urbe, refere a história de Tubal, “neto de Noé, que lhe deixou o seu nome”, mas o que mais o impressiona é o momento em que, no dia seguinte, assiste à ida do Santíssimo “a um enfermo com muita solenidade e cortejo de gente e uma grande quantidade de tochas” por ruas “bem limpas e enfeitadas”, cheias de “tapeçarias nas janelas e nas montras das lojas, coisa muito bonita de ver e que transmitia grande devoção.”
Ao longo do relato, há mais três referências a Setúbal: ao apresentar a história do início de Portugal, repete a explicação do primeiro habitante, Tubal (“o primeiro que habitou este reino foi Tubal, neto de Noé, que deixou o seu nome à cidade de Setúbal”); quanto aos portos, refere que Portugal “possui diversos portos excelentes: o primeiro é o de Setúbal, o outro é o da cidade do Porto, na foz do Douro, mas o mais famoso é o de Lisboa”; ao fazer o balanço sobre a importância das localidades do reino, regista que, “além das cidades episcopais, há terras notáveis, como Vila Viçosa, Almeirim e Salvaterra, Setúbal, cidade de Espanha célebre pelas suas salinas, Avis, Palmela, em que há os conventos magistrais da Ordem de Avis e da Ordem de Santiago.”
Mas Setúbal era apenas um ponto no itinerário de Domenico Laffi e do seu companheiro peregrino, pois o objectivo era chegar a Lisboa, sítio onde nasceu Santo António. Por isso, a viagem é retomada, com saída de Setúbal pela “porta oeste, ladeando um grande e comprido aqueduto de duas arcadas sobrepostas”, de onde subiu até Palmela, aí contemplando a vista sobre Setúbal e Lisboa e conhecendo “os conventos magistrais da Ordem de Santiago e da Ordem de Avis”, logo seguindo pela Moita, onde embarcou para chegar, “com a ajuda de Deus, à tão suspirada cidade de Lisboa a 16 de Setembro do ano 1687.”
Na capital do reino, onde ainda assistiu aos festejos do casamento de D. Pedro II com a princesa da Casa de Neuburgh, passará Laffi três dias, com intenso programa de visitas à cidade que considera “a oitava maravilha do mundo” e “rainha dos mares”: torre de Belém, igreja e convento dos padres Jerónimos, santuário Madre de Deus, Santa Engrácia, Rossio, igrejas de S. Roque e do Carmo, entre outros pontos. O que mais o comove é a visita à zona da Sé, à “devota igreja de Santo António dito de Pádua, que era cidadão de Lisboa”, construção realizada “a partir da casa paterna onde nasceu o santo”: “com a ajuda de Deus disse missa nesta igreja a 18 de Setembro, com grande felicidade minha (...). Quem entra nesta igreja entra numa espécie de paraíso, não só pela santidade e devoção que transmite, como também pela riqueza e beleza com que brilha.”
A descrição que Laffi faz de Lisboa, onde só esteve por três dias, revela-se interessante porquanto acaba por ser um retrato do espaço urbano que o terramoto de 1755 acabou por alterar profundamente. Em 19 de Setembro, a viagem recomeça, com a opção de seguir pela costa até ao Norte do país para daí chegar a Compostela. Pelo caminho, vão ficando os registos do convento alcobacense, do “sumptuosíssimo templo” da Batalha, de Leiria (situada em “fértil planície, rodeada de montanhas igualmente frutíferas”), de Coimbra (onde “todas as construções se apresentam, olhando para elas da parte oposta da ponte, como se estivessem umas em cima das outras”), Porto (onde teve de permanecer seis dias “por causa de umas fortes dores nas costas”, situação que o impediu de descrever a cidade com pormenor), Viana do Castelo (onde há “lindos chafarizes espalhados, cá e lá, pela cidade” e um “porto de mar lindíssimo”, apesar da chuva) e Caminha (onde se impressiona com a vista sobre o outro lado do rio Minho).
Nesta Viagem de Pádua a Lisboa, Laffi é um viajante culto, observador, crítico, com sensibilidade artística, atento ao mundo, merecendo bem as palavras de Feliciano Novoa Portela, que disse ser a sua obra a “de um verdadeiro ‘homo viator’, para quem a vida é uma contínua viagem para encontrar o enigma da existência, na busca de uma constante que explique o passado, o presente e também o futuro.”
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1438, pg. 2.