quinta-feira, 19 de dezembro de 2024

Quando o peregrino Laffi passou por Setúbal (2)

 


A primeira descrição que Domenico Laffi faz em terras portuguesas nesta Viagem de Pádua a Lisboa acontece em Serpa, onde “as casas são pequenas, isto é, baixas devido ao vento do oeste, e todas com chaminé, ou seja, lareira onde se acende o fogo, decerto a coisa mais bonita delas”, construções que se apresentam “rodeadas de grandes muros, muito altos” e “feitas de várias maneiras e de vária arquitectura, de modo que, de longe, são agradáveis à vista.” Em Alcácer do Sal, “bela vila banhada por um braço do oceano”, surpreendem-no as salinas e o embarque de géneros.

É também neste cais que toma lugar num barco para chegar, pelo meio-dia de 14 de Setembro de 1687, a Setúbal, que classifica como “cidade bonita, com o seu porto de mar muito mercantil e capaz de conter qualquer armada e navios de qualquer lotação”. Na apresentação que faz da urbe, refere a história de Tubal, “neto de Noé, que lhe deixou o seu nome”, mas o que mais o impressiona é o momento em que, no dia seguinte, assiste à ida do Santíssimo “a um enfermo com muita solenidade e cortejo de gente e uma grande quantidade de tochas” por ruas “bem limpas e enfeitadas”, cheias de “tapeçarias nas janelas e nas montras das lojas, coisa muito bonita de ver e que transmitia grande devoção.”

Ao longo do relato, há mais três referências a Setúbal: ao apresentar a história do início de Portugal, repete a explicação do primeiro habitante, Tubal (“o primeiro que habitou este reino foi Tubal, neto de Noé, que deixou o seu nome à cidade de Setúbal”); quanto aos portos, refere que Portugal “possui diversos portos excelentes: o primeiro é o de Setúbal, o outro é o da cidade do Porto, na foz do Douro, mas o mais famoso é o de Lisboa”; ao fazer o balanço sobre a importância das localidades do reino, regista que, “além das cidades episcopais, há terras notáveis, como Vila Viçosa, Almeirim e Salvaterra, Setúbal, cidade de Espanha célebre pelas suas salinas, Avis, Palmela, em que há os conventos magistrais da Ordem de Avis e da Ordem de Santiago.”

Mas Setúbal era apenas um ponto no itinerário de Domenico Laffi e do seu companheiro peregrino, pois o objectivo era chegar a Lisboa, sítio onde nasceu Santo António. Por isso, a viagem é retomada, com saída de Setúbal pela “porta oeste, ladeando um grande e comprido aqueduto de duas arcadas sobrepostas”, de onde subiu até Palmela, aí contemplando a vista sobre Setúbal e Lisboa e conhecendo “os conventos magistrais da Ordem de Santiago e da Ordem de Avis”, logo seguindo pela Moita, onde embarcou para chegar, “com a ajuda de Deus, à tão suspirada cidade de Lisboa a 16 de Setembro do ano 1687.”

Na capital do reino, onde ainda assistiu aos festejos do casamento de D. Pedro II com a princesa da Casa de Neuburgh, passará Laffi três dias, com intenso programa de visitas à cidade que considera “a oitava maravilha do mundo” e “rainha dos mares”: torre de Belém, igreja e convento dos padres Jerónimos, santuário Madre de Deus, Santa Engrácia, Rossio, igrejas de S. Roque e do Carmo, entre outros pontos. O que mais o comove é a visita à zona da Sé, à “devota igreja de Santo António dito de Pádua, que era cidadão de Lisboa”, construção realizada “a partir da casa paterna onde nasceu o santo”: “com a ajuda de Deus disse missa nesta igreja a 18 de Setembro, com grande felicidade minha (...). Quem entra nesta igreja entra numa espécie de paraíso, não só pela santidade e devoção que transmite, como também pela riqueza e beleza com que brilha.”

A descrição que Laffi faz de Lisboa, onde só esteve por três dias, revela-se interessante porquanto acaba por ser um retrato do espaço urbano que o terramoto de 1755 acabou por alterar profundamente. Em 19 de Setembro, a viagem recomeça, com a opção de seguir pela costa até ao Norte do país para daí chegar a Compostela. Pelo caminho, vão ficando os registos do convento alcobacense, do “sumptuosíssimo templo” da Batalha, de Leiria (situada em “fértil planície, rodeada de montanhas igualmente frutíferas”), de Coimbra (onde “todas as construções se apresentam, olhando para elas da parte oposta da ponte, como se estivessem umas em cima das outras”), Porto (onde teve de permanecer seis dias “por causa de umas fortes dores nas costas”, situação que o impediu de descrever a cidade com pormenor), Viana do Castelo (onde há “lindos chafarizes espalhados, cá e lá, pela cidade” e um “porto de mar lindíssimo”, apesar da chuva) e Caminha (onde se impressiona com a vista sobre o outro lado do rio Minho).

Nesta Viagem de Pádua a Lisboa, Laffi é um viajante culto, observador, crítico, com sensibilidade artística, atento ao mundo, merecendo bem as palavras de Feliciano Novoa Portela, que disse ser a sua obra a “de um verdadeiro ‘homo viator’, para quem a vida é uma contínua viagem para encontrar o enigma da existência, na busca de uma constante que explique o passado, o presente e também o futuro.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1438, pg. 2.


sábado, 14 de dezembro de 2024

Quando o peregrino Laffi passou por Setúbal (1)

 


Por meados de Setembro de 1687, no dia 14, dois religiosos italianos, peregrinos e viajantes, passavam em Setúbal — eram eles o padre Domenico Laffi e o frade Giuseppe Liparini, vindos desde Bolonha, de onde tinham partido em 24 de Maio desse ano. Dessa passagem ficou registo no livro de Laffi intitulado Dalla tomba alla culla è um lungo passo: Viaggio di Padova ove morse il glorioso S. Antonio a Lisbona ove nacque, que teve primeira publicação em 1691, em Bolonha, e cujo itinerário português foi editado em 1988 pela Università degli Studi di Perugia, em trabalho a cargo de Brunello De Cusatis. Uma década depois, em Portugal, surgia a obra O Portugal de Seiscentos na ‘Viagem de Pádua a Lisboa’ de Domenico Laffi, estudo crítico também assinado por De Cusatis (Editorial Presença, 1998), incluindo o capítulo de Laffi dedicado a Portugal.

Sobre a biografia de Laffi, o autor do relato, pouco se sabe, não se ignorando, contudo, o rol bibliográfico que assinou e teve ampla repercussão (textos teatrais e narrativas de viagem — a Compostela, a Lisboa e à Terra Santa). Nascido em 3 de Agosto de 1636 em Vedegheto di Savigno, foi para Bolonha ainda na infância. Em 1666, quando já era sacerdote, fez a sua primeira peregrinação a Compostela, local que visitou várias vezes — em 1670, aquando da segunda viagem, redigiu a obra Viaggio in Ponente a San Giacomo di Galitia e Finisterre per Francia e Spagna, publicada em Itália em 1673, título que teve reedições em 1676 e em 1681 e graças ao qual Laffi é considerado pela Xacopedia “um dos peregrinos mais importantes da história de Santiago por ser autor do relato de peregrinação de maior significado e relevância conhecido até agora”.

A vinda a Portugal acontece pela razão que o título da obra sobre essa viagem indica — peregrinação a partir de Pádua, onde está sepultado Santo António, para chegar ao local do seu nascimento, Lisboa, percurso justificado com a transcrição da frase “dalla tumba alla culla è um lungo passo” (“do túmulo ao berço é um longo passo”), aforismo que resulta de adaptação do último verso de um soneto do pós-renascentista Giambattista Marino, nas suas Rime (1602), ao afirmar que “da la cuna a la tomba è um breve passo” (“do berço ao túmulo é um pequeno passo”).

A entrada de Laffi em Portugal aconteceu nesse Setembro de 1687, em dia não indicado, na zona de Aldeia Nova de São Bento, num trajecto que passou por Serpa, Cuba, Torrão e Alcácer do Sal, até chegar a Setúbal (no dia 14); a viagem prosseguiu por Palmela e Moita, com paragem em Lisboa dois dias depois; a 19, a partida leva os viajantes por Loures, Torres Vedras, Caldas da Rainha, Alcobaça, Leiria, Coimbra, Porto, Viana do Castelo e Caminha, para posterior entrada na Galiza, rumando a Compostela, onde chegaram a 15 de Outubro. Logo no início da obra, é justificada a narrativa: “Eu, para satisfazer as curiosidades discretas e indiscretas de todos, direi, com mera verdade, ter feito esta viagem, não sei se impelido mais por natural propensão, por talento sujeitado à curiosidade de ver coisas novas, ou por espírito de piedade para o glorioso Santo António de Pádua. Fui àquela cidade para adorar, naquelas sacras cinzas, vivas sementes de eternidade, e recolher copiosa messe de graças.” Quanto à decisão de passar a escrito o visto e vivido, explica: “senti-me na obrigação de fazer um sucinto relato para dar prazer a quem goza deste tipo de leitura, como também para agradar a quem se sinta movido, por devoção, a fazer peregrinação semelhante. Isso fiz com o estilo que me pareceu mais adequado para uma simples narração.” O relato que o leitor tem ao seu alcance está eivado de informações que Laffi recolheu nas leituras sobre o país e fortemente alicerçado naquilo que testemunhou, aspectos que, na edição portuguesa referida, merecem adequadas notas de contextualização por De Cusatis.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: 2024-12-11, pg. 10.

 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

Contributo de Daniel Pires para a bibliografia setubalense (3)

 


Para a bibliografia setubalense, o contributo de Daniel Pires tem sido eloquente também quando se fala do ambiente social e cultural do século XVIII, tempo que fez Bocage. É assim que se valoriza uma obra como Setúbal, Palmela e Azeitão Vistas por Estrangeiros, de 2012, recolhendo testemunhos de oito autores que olharam Setúbal entre 1766 e 1800, destacando nesta antologia o olhar da diversidade e o cosmopolitismo e não escondendo o preconceito ou a isenção presentes nas várias abordagens. Outros dois títulos relacionados com a época são Padre Gabriel Malagrida: O Último Condenado ao Fogo da Inquisição, de 2012, e O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 em Setúbal e o Padre Malagrida, de 2013, duas peças importantes pela quantidade de documentos que são postos a descoberto ou relembrados, numa transcrição encaixada na narrativa resultante da pesquisa, fundamentais para se perceber o ambiente cultural da época, a acção dos jesuítas em Setúbal, as rivalidades entre a política e a religião, o papel desempenhado pela liberdade de opinião ou pela sua falta, o retrato que de Setúbal ficou após o terramoto.

Outras duas figuras sadinas mereceram a atenção de Daniel Pires num trabalho que não pode ser esquecido: Paulino de Oliveira e António Maria Eusébio, o poeta popular “Calafate”. Do primeiro, fez Daniel Pires ressurgir o livro autobiográfico Em Ferros d’El-Rei (2012), com um prefácio que valoriza a prática da cidadania e destaca a acção do autor como jornalista, poeta, pedagogo, republicano e divulgador da cultura portuguesa, considerando ser esta “uma das obras mais emblemáticas de Paulino de Oliveira, não obstante ser uma das menos conhecidas”. Quanto ao segundo, o poeta popular setubalense, Daniel Pires foi responsável, com Ana Margarida Chora, em 2020, pela edição da obra António Maria Eusébio, o Calafate - Uma Evocação, título que reúne textos da homenagem que Setúbal lhe fez em 1902 (em cuja organização estiveram Ana de Castro Osório, Paulino de Oliveira e Henrique das Neves), parte significativa dos testemunhos que Henrique das Neves coligiu numa obra antológica publicada em 1908 e alguns contributos mais recentes para o conhecimento da importância da obra deste poeta.

A história do jornalismo setubalense passa também pelo trabalho de Daniel Pires, facto interessante porquanto o jornalismo tem constituído para si fonte de informação e objecto de estudo. Se, em 1986, na sua obra Dicionário das Revistas Literárias Portuguesas do Século XX, na longa lista de entradas aparecem três títulos setubalenses, já no Dicionário da Imprensa Periódica Literária Portuguesa do Século XX, editado entre 1996 e 2000, o número de entradas sobe para 26, num trabalho repleto de dificuldades por não existirem colecções completas dos títulos, mas que prova a importância da imprensa periódica nos domínios da polémica, da afirmação de movimentos culturais, da liberdade de opinião e da ligação à sociedade e dá a conhecer as figuras agentes da intervenção nestas áreas ao nível local e nacional.

As obras com que Daniel Pires nos tem presenteado ou que nos tem revelado, “remos para guiar a jangada” (lembrando Tolentino Mendonça) ou testemunhos que provam “a aventura do homem” (recorrendo a Serafim Ferreira), possuem também marcas de uma forma de estar e de olhar o mundo, conseguindo-se perceber a indignação perante as atitudes despóticas, o desrespeito relativamente à memória, a crueldade na recusa dos direitos inalienáveis, os jogos de poder que juntam intenções ardilosas, como se entende a simpatia por uma forma de estar próxima da intervenção em benefício da sociedade e das manifestações culturais, pelo ideal republicano, pelos princípios éticos e pelos direitos humanos. Naturalmente, são contributos importantes para uma bibliografia setubalense, ainda mais relevantes quando o leitor se confronta, no final de cada uma delas, com referências bibliográficas exaustivas e rigorosas e, muitas vezes, com indicação dos locais onde as obras podem ser encontradas, num trabalho que é importante para o presente, mas que também garante que a jangada do conhecimento e da identidade possa vogar no futuro...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1427, 2024-12-04, pg. 8.


segunda-feira, 2 de dezembro de 2024

Contributo de Daniel Pires para a bibliografia setubalense (2)

 


As imagens da região de Setúbal vindas através da poesia tinham já ocupado Daniel Pires em 2001, quando uma equipa que integrou também Fernando Marcos e António Quaresma Rosa organizou a exposição Setúbal - Terra de Poetas e Cantadores, reunindo uma centena de autores e 349 títulos, recenseados em catálogo, em cuja introdução se insistia na “dinamização cultural da cidade de Setúbal e reconstituição da sua memória”, surgida de “investigação aturada” que pretendia uma “perspectiva diacrónica da poesia de matriz setubalense”, coligindo os nomes conhecidos e “os populares e os menos consagrados”. Assim se originava uma obra que, mais do que uma lista, se transformou num elemento de estudo, fornecendo pequena antologia e notas biográficas sobre os autores, atitude que visava a luta contra a efemeridade das exposições, “fazendo a ponte com os investigadores vindouros que pretendam conhecer a identidade cultural da cidade”, afinal uma obra para poder ser uma referência de estudo e de conhecimento.

A criação do Centro de Estudos Bocageanos (CEB) em 1999 surgiu de uma intervenção de Daniel Pires no Forum “Pensar Setúbal”, realizado no mês de Maio desse ano, em que defendeu a criação de um centro de estudos e de informação sobre o vate sadino, com a preocupação de o âmbito de estudos ser alargado a outras temáticas locais. A ideia conseguiu agregar cerca de 80 pessoas, que foram os sócios fundadores do CEB, e, nos estatutos, publicados em 1 de Outubro seguinte, eram claras as intenções: divulgar a obra e a personalidade de Bocage, “fazer o enquadramento dos escritores locais e nacionais e dinamizar culturalmente a cidade de Setúbal”. Cerca de um mês e meio depois, em 22 de Dezembro (no dia a seguir ao que marca o falecimento de Bocage), o jornal O Setubalense incluía o primeiro número do que foi a “Página Cultural” do CEB, assinando Daniel Pires um texto que revelava uma antiga e rara tradução italiana de um poema bocagiano. A “Página Cultural”, de publicação mensal, prolongou-se até ao número 155, saído em 29 de Abril de 2013, sempre com uma abordagem de assuntos de interesse local e regional, por onde passaram investigadores, escolas e criadores artísticos, numa pluralidade de saberes. Daniel Pires, além de ter sido seu co-coordenador durante uma temporada, aí fez ampla divulgação de textos esquecidos e publicou ensaios relacionados com figuras locais (como Bocage, o poeta popular Calafate e o historiador João Carlos de Almeida Carvalho), com a implantação do regime republicano e suas marcas em Setúbal ou com histórias da educação, entre outros temas, chegando a defender que o CEB deveria ser o motor da constituição de uma Biblioteca de Fundo Local com vista ao “estudo do património cultural da cidade”.

Nesta missão divulgadora, Bocage tem sido, sem dúvida, a figura mais tratada por Daniel Pires, estudo em que nunca esquece a contextualização de Setúbal à época da juventude do poeta, seja colhendo elementos descritivos, seja pela demanda de iconografia sua contemporânea, reveladora do que eram o espaço e a vida sadinos, como se pode ver, por exemplo, nesse repositório de imagens que é a obra Bocage - A Imagem e o Verbo, editado em 2015. Outros contributos como a colecção de postais Bocage na Prisão, de 1999, o baralho de cartas designado Bocage e a sua Época, de 2005 (em colaboração com Manuel de Vilhena), ou a reedição das Fábulas de Bocage, em 2000 (a partir da edição de 1905), mantendo o mesmo espírito de ligação do poeta à região, apresentam também objectivos de divulgação junto do grande público, particularmente em idade escolar, visando o desfazer de imagens fáceis construídas em torno do poeta, como a do herói das anedotas, e dando-lhe a visibilidade merecida como actor de uma época ideologicamente conturbada.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1422, 2024-11-27, p. 10

 

quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Arrábida e imagens da sua espiritualidade (2)

 


Em A Espiritualidade da Arrábida, as tentativas de partilhar o que a Serra sugere oscilam entre a impossibilidade da precisão descritiva — “espaço que flutua acima de todas as tentativas de o adjectivar”, escreve Salvador Peres — e esse desafio da descoberta que põe à prova e sugere outros esforços — “subir à Arrábida significa uma oportunidade para contemplar a Esperança e dinamizar a Fé e o Amor”, defende Hermínio Araújo. A aceitação deste desafio causado pelo impacto da Serra é um jogo permanente, assente sobre a simbologia que a ampara e sobre o mistério que a adorna, como descobre Casimiro Henriques: “Tu és a serra e a Serra és tu, ali perdido diante de um mundo que não consegues criar pelo teu poder.” Ou, como diria o poeta que escreveu o seu primeiro poema sobre a beleza da Arrábida aos 15 anos, Sebastião da Gama, numa recomendação ao passeante: “Vá sozinho, suba ao Convento, que é onde o espírito da Serra converge e como que ganha forma. Leve, se quiser, os versos de Agostinho e experimente como afinal é fácil estar a sós com Deus. (...) O Céu fica-lhe perto.” Uma forma de juntar o criador e a criatura, afinal... que perpassa pela descoberta da grandiosidade das coisas simples captada por Carlos Vale Rego, pelo confronto com a insuficiência da palavra para dizer a magia da terra assinalado por José-António Chocolate, pela contemplação que se exprime em oração na voz de Lourenço de Morais, pelo afago introspectivo da mãe-serra enaltecido por Isabel Melo, pela proximidade do historial franciscano trazido por Helena Mattos, pela centralidade que este espaço envolve lembrada por Joaquina Soares, pelo efeito transformador e interpelativo registado por Ruy Ventura...

As fotografias chamadas para este livro, resultantes de olhares, de momentos e de descobertas, corroboram essa onda de mistério em torno da paisagem, intensificada pela impressão digital da Natureza, pelos ângulos de visão pessoais, pela recusa do cenário imediato, pelas tonalidades em diversos graus das mesmas cores ou pela imponência do preto e branco, pela vastidão sugerida, pela luminosidade a favorecer o pormenor, pelo jogo entre luz e sombra, pela pluralidade de motivos, todas rendidas ao que mostram e rendilhadas com legendas sugestivas, por onde perpassam emoções pessoais, deslumbramentos, recriações de sentido, tudo em favor de uma arte poética da imagem, haja em vista títulos como “Escondido, mas visível”, de Nazar Kruk, “Porto seguro”, de João Completo, “In-Quietude”, de Carlos Medeiros, “Flor do cardo que eu guardo”, de José Alex Gandum, “Que serra é esta, que comigo fala e me sente?”, de Alberto Pereira, “Arrábida tranquila”, de José Canelas, “A alma do lugar”, de Carlos Sargedas, “O teu adormecer”, de António Alves da Costa, ficando apenas por intitular o surpreendente dourado sobre a serra do Risco, de João Moura.

Nos olhares fotográficos, há um outro grupo de leitura mais imediata, registo de momentos festivos e religiosos captados pelas lentes de Américo Ribeiro e de José António Carvalho, marcas de tempos diferentes neste “romariar e rezar” (como refere Luís Marques no ensaio já mencionado) em que a religiosidade popular surge aliada à Natureza.

Retratos escritos ou fotográficos, a verdade é que por todos os registos deste livro perpassam partes de um texto maior, uno, deixando adivinhar que a Arrábida impressiona sempre por aquilo que não somos capazes de dizer porque o silêncio se nos impõe para que ouçamos o concerto da cor com o restolhar segredado pelas veias da Serra. Assim percebemos que a reinvenção, a reconstrução ou a abordagem iniciática do ser da Serra serão sempre complexas, difíceis e angustiantes, na medida em que nenhuma das representações será suficientemente totalizadora de forma a desocultar o seu mistério.

É Viriato Soromenho-Marques quem assina o derradeiro texto, em tom posfacial, recapitulando momentos históricos em torno da “presença cultural e simbólica na nossa consciência” da Arrábida, lembrando as perspectivas científica, ecológica (mesmo ecocrítica) e literária e afirmando-a como uma “causa colectiva”. A motivação criada pela Arrábida a todos quantos a visitam ou aos que nela vivem mostra que ninguém fica insensível perante o que vê ou o que sente — há os textos que tentam guardar os sentimentos, há as memórias que afagam a distância do tempo, há os desenhos que são geradores de uma reconstrução, há as fotografias que se apresentam com uma mensagem muito mais intensa do que o registo lacónico de se ter estado ali... tudo porque, como Soromenho-Marques refere, “o que importa colocar em relevo é o permanente convite da Arrábida para a meditação e a viagem interior”, elementos estruturantes para aquilo que, a fechar o seu texto, defende: “A verdadeira força da espiritualidade é aquela que se funde na celebração da existência.” E a Arrábida deve ser celebração, sempre! Porque, como dizia a personagem de Agustina Bessa-Luís, “parece que o mundo foi criado daqui!”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1417, 2024-11-20, pg. 9.


Arrábida e imagens da sua espiritualidade (1)

 


Quando abriu a janela e olhou para o exterior, a personagem só pôde exclamar: “Parece que o mundo foi criado daqui!” Este momento é relatado no romance As Terras do Risco, de Agustina Bessa-Luís, publicado em 1994 (Guimarães Editores). A frase, que exprime o maravilhamento de quem a diz, no momento em que olha a Arrábida, remete-nos para a expressão do sublime, algo impossível de ser descrito, por muitas tintas que se ensaiem, por muitas frases que se recomponham, por muitos ângulos que os olhares procurem, por muitas combinações em que os sons se concertem. 

Conseguir contar a beleza seria igualá-la, operação impossível porque o belo é único, irrepetível, envolvendo uma aguarela de mistério, uma linha de sentido que a Arrábida, esse espaço que corre desde a Comenda até ao Cabo Espichel, sempre tem albergado e suscitado. Com razão escrevia Luís Marques em 1990, no seu estudo intitulado Arrábida e a sua Religiosidade Popular (Assírio & Alvim): “A essência da serra continua a sobrepor-se a todas as obras e transformações já realizadas. Um espelho disso, que chegou aos nossos dias, verifica-se (...) na interpretação que dela fazem, designadamente, os amantes da natureza, os poetas, os religiosos e os investigadores. (...) Hoje, como ontem, apenas os que se deixam penetrar pela serenidade da sua paisagem ou pela sua sacralidade conseguem encontrar a imutabilidade e intangibilidade que a serra permanentemente desencadeia.”

Servem estas duas referências — da ficção, através de Agustina Bessa-Luís, e do ensaio, por intermédio de Luís Marques — para chegarmos à obra A Espiritualidade da Arrábida, iniciativa louvável do Grupo dos Amigos da Paróquia de S. Sebastião, acabada de publicar, que reúne duas dúzias de olhares contemporâneos sobre a Serra, distribuídos pela escrita e pela imagem em partes iguais, associando-se ainda a expressividade dos dois nomes indiscutivelmente mais arrábidos, pelo contributo inegável que deram para a integração desta Serra na tradição literário-cultural portuguesa: Frei Agostinho da Cruz, religioso e poeta, que neste espaço viveu os seus últimos quinze anos no século XVII, e Sebastião da Gama, poeta e professor, que também aqui se acolheu e construiu o seu poemário em torno da simbologia da Serra, na década de 1940. 

A emergência desta obra pode ser vista a partir do que António Melo, um dos obreiros deste projecto, regista no texto de apresentação: “Este livro pretende ser uma prova de admiração pela Beleza e Espiritualidade da Arrábida e por todos os que a conseguem preservar na sua imortalidade.” Trata-se de um propósito forte, porque reflecte um sentimento do presente, num contínuo espanto perante o sublime, e, simultaneamente, homenageia a múltipla partilha que gerações nos têm transmitido neste caminho que tem sido o descortinar as linhas de sentido associadas à geografia social, cultural e natural da Serra, a que, metaforicamente, na obra Terral, o poeta Miguel de Castro chamou “varanda de ver o mar” (Edições Estuário, 1990). A importância desta obra é assinalada também no prefácio que D. Américo de Aguiar subscreve, um pouco em tom confessional, pondo-se à prova e testemunhando a sua descoberta: “Não estava prevenido para o impacto da beleza do mar e da serra. Sempre viajei muito do Norte ao Sul da nossa terra, na maior parte das vezes pelo cinzento monótono das auto-estradas. (...) A serra da Arrábida pede-nos silêncio e alguma solidão. É um convite renovado ao subir da montanha.” A recomendação é um desafio, exactamente o mesmo que se pôs ao frade franciscano Agostinho da Cruz, que lhe permitiu registar a beleza da experiência numa exclamação elegíaca — “Ó Serra das estrelas tão vizinha, / Quem nunca de ti, Serra, se apartara!” São, aliás, estes dois versos que fecham o percurso sugerido pela organização textual deste livro, que contraria a progressão cronológica, partindo das reflexões contemporâneas para recuar até ao século XVII.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º1416, 2024-11-19, pg. 7.


quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Contributo de Daniel Pires para a bibliografia setubalense (1)



Começarei por duas citações, uma de um poeta, outra de um editor, ambas de quem escreve e vive os livros — a primeira, de José Tolentino Mendonça, que nos lembra que “em tantos momentos da história, os livros foram (e são!) remos para guiar a jangada”; a segunda, de Serafim Ferreira, a considerar que “o livro será o melhor instrumento para decifrar todos os códigos e desvendar os paraísos artificiais (ou não) que pela eternidade hão de alimentar a aventura do homem”.

A razão destas escolhas cruza-se com o papel que Daniel Pires tem tido no enriquecimento do que podemos chamar uma bibliografia setubalense, não só pelo contributo que tem trazido desde há muitos anos para os estudos bocagianos —editando a obra de Bocage (nas Edições Caixotim, entre 2004 e 2007, e na Imprensa Nacional, entre 2017 e 2018) ou contribuindo para o seu estudo (Bocage e o Livro na Época do Iluminismo e Bocage - A Imagem e o Verbo, ambos de 2015, Bocage ou o Elogio da Inquietude, de 2019, O Essencial sobre Manuel Maria Barbosa du Bocage, de 2023, além de outras obras em que colaborou), títulos necessariamente relacionados com Setúbal, quer pelas circunstâncias biográficas, quer por algumas alusões, ainda que escassas, de Bocage à sua região de origem —, mas também pelo que tem posto a descoberto no domínio do conhecimento sobre Setúbal, fazendo ressurgir textos do pó dos tempos e construindo outros a partir das suas investigações e demandas por arquivos e bibliotecas várias, todos eles iluminando o que tem sido a aventura da identidade na região dominada pela Arrábida.

E será justamente pela serra que entramos, uma vez que, como tema, ela consta já na tradição literária portuguesa, desde, pelo menos, o século XVI. Durante muito tempo, referências literárias da Arrábida foram dominadas por uns poucos nomes, a começar em Frei Agostinho da Cruz, passando por Alexandre Herculano e desaguando em Sebastião da Gama. No entanto, a persistência de Daniel Pires e de António Mateus Vilhena possibilitaram ao leitor a pluralidade dos muitos olhares que sobre a Arrábida têm surgido na literatura lusa, desde que, em 2002, publicaram a obra A Serra da Arrábida na Literatura Portuguesa. Se, nessa edição, nos mostraram cerca de meia centena de poetas que versejaram sobre a serra que Pascoaes confessou ser o verdadeiro “altar da Saudade”, como nos contou Sebastião da Gama depois da visita que lhe fez em Setembro de 1951, quando saiu a segunda edição, em 2014, o número de autores subia já para cerca de oito dezenas, com textos escritos num período temporal entre o século XVI e 2014, valendo a pena atentar na justificação que os antologistas apresentam nos prefácios de ambas as edições: a pretensão foi a de “dedicar especial atenção ao património cultural da cidade de Setúbal, contribuindo, desta forma, para a sua valorização e para a preservação de uma memória que faz parte integrante da nossa identidade”, tarefa resultante de investigação “metódica em vários arquivos e bibliotecas nacionais”, partilhando textos que estavam “dispersos por livros ou periódicos de muito difícil acesso”, assim contrariando “a impossibilidade da sua fruição pela maioria das pessoas”.

No mesmo ano de 2014, os dois investigadores avançaram também na publicação da obra Descrição da Arrábida, a partir de manuscrito guardado na Biblioteca Nacional, contendo o texto do franciscano madeirense Inácio Monteiro, assim pondo a descoberto uma obra de referência no domínio da literatura de viagens em Portugal, simultaneamente um bom exemplo da “estética literária barroca”, que descreve “a paisagem envolvente” e os dois conventos arrábidos, dá “informações relevantes no domínio arquitectónico” e apresenta “ampla visão da natureza em estado puro e uma panorâmica de resultado da acção humana sobre ela exercida.” Este trabalho, construído no confronto de dois manuscritos e de uma versão publicada no jornal O Azeitonense (em 1920), trouxe ainda luz sobre o seu autor, que, até esta edição, se supunha ser um jesuíta oriundo do Norte do país, com vida feita em Roma e falecido em Ferrara...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1412, 2024-11-13, pg. 10.

 

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Ana Mata: inscrever Florença pelo olhar



“Fui com o objectivo preciso de me ir espantar. Fui seguindo a ideia de passear o mutismo, nesse princípio de desejo de ser olhar aberto e recepção. (...) Fui anónima: tanto para atravessar a cidade, como para ser atravessada.” Assim descreve os seus sentimentos a setubalense Ana Mata (n. 1980), no momento que antecede a narração dos dias passados no visitado paraíso da arte, itinerário contado em Carta de Florença (Sr Teste Edições, 2024).

Ainda que o título nos remeta para o estilo epistolográfico, a verdade é que nesta obra se mesclam também registos diarísticos e de memória, com a reprodução de duas dezenas de águas-fortes com tinta sanguínea, gravuras a partir de peças vistas nas mostras que o espaço florentino permitiu. A intenção deste registo, em que se misturam o tom autobiográfico e a faceta ensaística, surge logo no início, sublinhada em três aspectos: “Esta escrita serviu o sentimento de aventura íntima, a que não desmaiasse no caos, a minha permanência na experiência.” Descoberta e continuidade na memória são, pois, dois tons fortes nesta visitação (no que esta palavra sugere de curiosidade e de abertura) realizada em Março de 2023, afigurando-se o registo escrito como a forma de albergar o que poderia ser a “síndrome de Florença”, caracterizada pela comoção perante o fascínio da arte.

A viagem foi preparada — “Comecei, antes de ir, a viagem a Florença”, escreve Ana Mata logo no início da narração para dar conta de que se deixou povoar pelas imagens antecipadamente recebidas, impressão forte que impregnou a necessidade de ir “à presença”. Como antecedentes da partida, a recomendação de amigos associou-se a leituras de outras experiências do mesmo itinerário legadas por relatos de Stendhal e de Rilke ou por um poema de Bernardo Pinto de Almeida, de maneira que melhor se cumprisse a intenção da viagem.

Perante as obras vistas, foi forte a impressão sentida pela figura humana, pela elegância dos gestos nos quadros, pela expressão de dor, pela força dos pormenores. Deslumbramento e comoção não faltam neste relato intenso, como no momento em que se fala dos quadros de Fra Angelico, vistos no Museu de S. Marcos: “Há pinturas pequenas e tão delicadas que me parecem terem sido pintadas num estado de oração íntima”. O cerne do sentimento perante estas telas cola-se às raízes de quem contempla: “Estou grata pela religiosidade que me deram em criança, mesmo se já não cumpro os ritos ou se procuro outros lugares de infinito. Se tivesse uma repulsa pelo religioso, pelas histórias de Cristo, de Maria, dos anjos, não veria estas obras da mesma maneira, tendo então um filtro que creio que bloquearia o seu sentimento profundo.”

Todo o livro de Ana Mata é uma tentativa para que se cumpra o que revela quase no final — “Agora quero que Florença permaneça.” A reflexão surge a bordo do avião, em regresso a Lisboa. “Que fica deste convívio imenso com estas obras feitas por uma humanidade grandiosa, magnífica, que aponta para o alto? Que fica também desta lição de humildade? Andei de corações nos olhos, com esse filtro apaixonado que tanto activou a hemoglobina nas minhas sanguíneas.” E, como conclusão: “Agora, os nomes dos lugares do mapa já não me são abstractos. Florença inscreveu-se.” Uma “inscrição” a tal ponto forte que as sanguíneas a partir de Botticelli, Caravaggio, Tiziano, Memling, Fra Angelico e outros têm de fazer parte do livro, uma forma de apropriação a cargo da visitante.

Partilhar a arte vista em Florença neste livro é um pouco como admirar a cidade banhada pelo Arno, atravessado por pontes, a partir da praça Miguel Ângelo, um misto de distância e de impossibilidade de tudo apreender ou uma relação de sedução. Nesta cidade da Toscana, também Ruben A. (1920-1975) sentiu o fascínio, relatado em Páginas - III (1956): “Florença tem coisas demais e é como uma mulher possessiva que tem sempre qualquer pormenor ainda não visto — sair de Florença é sentir o mesmo alívio de liberdade em semelhança a férias conjugais. Na nossa vida há momentos só nossos tão intimamente nossos que ninguém pode tentar sequer incluir-se.” A metáfora é forte, revelando a vontade de continuar a descobrir o espírito da cidade, o de olhar a arte, nela se inscrevendo.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1407, 2024-11-06, pg. 10.


quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Cecília Matos mostra como José Bárcia fotografou Setúbal e Palmela



Trinta anos foi o tempo que Cecília Matos levou a amadurecer o plano de trazer para a memória o itinerário artístico e biográfico de um dos importantes fotógrafos portugueses da primeira metade do século XX, tempo de descobertas e de contactos com a obra e com testemunhos, que agora aparece sob o título de Os Dias de José Bárcia (1895-1917) (edição de autor, 2024), com informação acrescida no subtítulo, curta apresentação de parte do conteúdo — “a colecção fotográfica de Quinta do Anjo, Palmela e Setúbal”.

São cerca de 300 as fotografias integrantes desta obra, que podemos organizar em duas partes em torno do fotógrafo Bárcia (1873-1945). Na primeira, que traça o seu perfil biográfico, o leitor assiste a um recuo até às origens galegas do biografado, passando pelas suas apetências musicais e pela profissão de desenhador de obras públicas, até chegar àquilo que não foi a sua profissão, mas o seu gosto, a fotografia, sendo ainda de destacar o relacionamento com o olissipógrafo Júlio de Castilho, parte que também nos revela peças de correspondência epistolar de Bárcia com diversos destinatários (especialmente com Castilho). Cecília Matos faz o levantamento dos arquivos onde existe o acervo fotográfico de um autor que testemunhou pela imagem momentos tão importantes como a construção da nova Escola Médico-Cirúrgica (1906), o funeral real (1908) ou a construção do Hospital Júlio de Matos, articulando a sua investigação com a recepção que a obra de Bárcia teve na época e sobre quem Brum do Canto deixou dito ser autor de fotografias “reveladoras de estudo e muito apreciável capacidade artística” e a Ilustração Portuguesa (de 21 de Março de 1918) registou ser “o fotógrafo amador a quem a arqueologia olissiponense deve relevantes serviços”.

A segunda parte da obra é ocupada com o tempo em que Bárcia registou momentos de Setúbal, Palmela e Quinta do Anjo, em vindas da capital que muito ficaram a dever ao facto de uma sua tia, Amélia Várgea, ter sido professora, desde 1877, em Palmela e, a partir de 1894, em Setúbal. Tais instantes, motivadores de outras tantas fotografias, surgem muitas vezes com as legendas que o próprio artista registou, anotando nomes dos retratados, referências dos locais e, até, pormenores dos contextos desses momentos, por aqui passando as histórias de pessoas, de festas e do quotidiano ou os testemunhos de um passado ligado a narrativas familiares e locais.

Ao longo do livro-álbum, Cecília Matos procedeu também à transcrição de textos que documentam o que eram os locais fotografados e a vida nesse tempo que José Bárcia guardou, recorrendo a alguns testemunhos orais e a entrevistas por si realizadas a descendentes de pessoas que contactaram com o fotógrafo-artista (irmãs Adília do Carmo Cardoso e Maria da Graça Cardoso, Maria Neves Cipriano, Laura Cardoso e Maria Adelaide Chagas), a registos publicados de autores como Mário de Sampayo Ribeiro, Augusto Filipe Simões e Manuel Godinho de Matos, e a notícias da imprensa periódica (como Ilustração PortuguesaOlisipoSerõesDiário de Lisboa, entre outros títulos). 

Obra com cuidado estético assinalável, Os Dias de José Bárcia resulta de uma procura intensa nos acervos (Arquivo Municipal de Lisboa, Torre do Tombo, Museu de Lisboa, Arquivo Municipal de Palmela e espólio de Maria Ascenso, enteada do fotógrafo), mas também de factores importantes que Cecília Matos não esconde — o seu gosto pela história e pelas técnicas da fotografia, o seu interesse pela história local e o seu afecto às origens e à aldeia-natal, Quinta do Anjo. Por isso, também perpassa pelo livro uma preocupação de trazer a personalidade de Bárcia para a actualidade e de o chamar para a construção da identidade local, como refere: “Em 2023, se Bárcia fosse vivo, faria 150 anos. Agradeço-lhe a possibilidade que nos deu de viajarmos até ao passado e de ver como era a Quinta do Anjo no início do século XX, de imaginarmos como seria viver numa época ainda sem electricidade, sem telefones e sem automóveis.”

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1403, 2024-10-30, pg. 10.


quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Abril: 50 anos, 100 mulheres, 2 antologias

 


Meio século depois do 25 de Abril de 1974, torna-se imperioso haver testemunhos que contem o antes, revivam o durante e avaliem o depois, num percurso que seja construtivo e se oriente pela permanente edificação da liberdade e pelo contínuo engrandecimento da humanidade que somos. A data foi pretexto para Alexandrina Pereira desafiar uma centena de mulheres (50 do concelho de Palmela e outras tantas do concelho de Setúbal, de grande diversidade de profissões, muitas nascidas a partir de 1974) para testemunharem sobre as suas experiências, memórias e olhares sobre o feminino, registos coligidos em duas antologias, editadas com o apoio dos respectivos municípios — Abril, Nome de Mulher, para o caso de Palmela, e Liberdade no Feminino, para o de Setúbal, ambas publicadas recentemente.

Para Alexandrina Pereira, “esta variedade de testemunhos poderá ser objecto de estudo em vários meios, com enfoque nas escolas, e principalmente nos mais jovens, para que a memória não seja curta e a história não se repita”, intenção registada no volume editado em Palmela. Um segundo propósito, que completa o anterior, surge no título publicado em Setúbal, ao desejar que “cada página deste livro seja um grito de libertação perante quem foi fechando um círculo à volta da condição feminina”, poder responsável por remeter as mulheres para a “ignorância imposta por leis que as submetia às mais humilhantes situações.”

Os temas que perpassam por esta centena de testemunhos, muitas vezes eivados de reflexão quanto ao presente e quanto ao futuro (mesmo que as aprendizagens advenham do relato transmitido por familiares), são comuns às duas antologias: as condições difíceis de vida antes do 25 de Abril, as memórias da guerra colonial, as lembranças do que era a escola, a falta de liberdade e a prisão, o medo da polícia política, o papel de subserviência atribuído à mulher, o fascínio pelas promessas pressentidas com a Revolução, a força da manifestação no primeiro Primeiro de Maio, o entusiasmo perante uma figura como José Afonso, a influência e aprendizagem vindas das mães e das avós (sobretudo nos testemunhos de mulheres que nasceram após 1970), as referências ao que falta cumprir como direito e garantia de bem-estar social (no âmbito da saúde e da justiça e na afirmação da democracia e da liberdade, tópico que, em alguns casos, reacende a questão do medo e a indignação perante o populismo).

Por muitos dos testemunhos passam momentos de comoção, que foram vividos na primeira pessoa: o ter tido o primeiro cerco da PIDE aos 16 anos (Antonieta Santos), a dureza da vida da conserveira e os cenários de violência doméstica sobre a mulher (Emília Mondim), a vivência da ruralidade (Felisbela Rilhó), o medo da PIDE e dos traidores (Fernanda Pésinho), o castigo infligido na escola por uma professora esposa de um agente da PIDE a uma miúda cujo pai trabalhava em jornal que dava voz à oposição (Isabel Castan), a felicidade das aprendizagens de um percurso de activista (Natividade Coelho), entre outros que constam no volume editado em Palmela; o exemplo vindo da vida em que a mãe disse “não” à humilhação (Cátia Oliveira), a comoção ao ver com o pai a libertação dos presos de Caxias (Dina Barco), a história de família e de afirmação de identidade (Helena de Sousa Freitas), o peso de viver ao pé das instalações da PIDE  e de assistir ao “teatro de sombras” dos informadores (Isabel Victor), a história da mãe que se indignou porque o Estado não assumia a trasladação dos jovens mortos na guerra colonial (Maria Luís Bento), a dura experiência das desigualdades sociais e consequente indignação (Rita Drouillet), entre outros que povoam o livro dos testemunhos de Setúbal.

Quanto ao futuro, as ideias que perpassam são de confiança num regime livre, ainda que muitas vezes exista a apreensão quanto aos perigos — com 40 anos, Ana Pereira, de Palmela, considera: “Agora, crescida, volto a ter medo. Tenho medo de que o fascismo volte embrulhado num papel dourado coberto de populismo. Tenho medo de que as canções de Abril percam as suas palavras e nos esqueçamos de quem lutou e quem morreu pela luta. Tenho medo de que tenhamos perdido o poder da palavra. E o ‘medo’ é das palavras que mais evito usar, mas prefiro ter medo a ser inconsciente.” Helena de Sousa Freitas, de Setúbal, com 48 anos, construiu o seu texto em diálogo com a mãe, Adélia Lino Rapaz, a quem dá a última palavra no testemunho: “Se houver que desenterrar os tempos velhos, que seja para estudar os erros ali cometidos e evitar repeti-los, nunca para matar supostas saudades. E, em seguida, é devolvê-los à sepultura e enterrá-los bem fundo. Sobretudo, enterrá-los bem fundo!”

Convicção e confiança são, assim, dois pilares fortes na sustentação do futuro... construídos sobre a base da memória, que não permite que a história seja traiçoeira.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1398, 2024-10-23, pg. 10.


quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Luís Osório e Sobrinho Simões: Uma conversa para semear

 


Em mais de centena e meia de páginas, a conversa flui e passeia por assuntos diversos, reflectindo e partilhando. A dada altura, fala-se de semear. “Nestes últimos anos, fui abandonando as tarefas mais políticas, mais de administração e gestão, a minha medida passou a fazer-se de recompensas imediatas e afetivas, é isso que verdadeiramente hoje me interessa. Já não semeio.” E insiste o que entrevista: “Está a semear nesta conversa.” E responde o primeiro: “Vamos ver, espero que sim, que possa ser uma boa sementeira.” Quem se deixa entrevistar é o anatomopatologista Sobrinho Simões (n. 1947) e quem pergunta é Luís Osório (n. 1971), diálogo publicado sob o título A Última Lição de Manuel Sobrinho Simões (Contraponto, 2024).

Foram vários os encontros entre os dois conversadores e em diversos pontos, no Porto ou em Évora, em casa, no hospital ou no bar de um hotel, sempre para alimentar um testemunho de vida, que ficou organizado em seis partes, todas intituladas com um substantivo que abre portas para os rumos desses momentos, num itinerário entre o público e o privado — “provocador”, “aluno”, “professor”, “médico”, “político” e “homem de família”.

O diálogo é sereno, falam de (quase) tudo, numa postura de balanço seguro pela experiência de vida, sem a preocupação de esconder o tom familiar e de proximidade por vezes ou o pensamento sobre coisas mais sérias, algumas sem resposta, mostrando convicções, experiência, reflexão, fragilidades próprias, medos, importância dos outros e (algumas) certezas.

Em certos momentos não está arredio o poder irónico, como quando se fala do sentido da curiosidade — “O português só pergunta quando já sabe a resposta. Quando não a sabe, cala-se. Não somos genericamente capazes de semear, não temos atos que não sejam de interesse imediato.” Ou quando se fala de obrigações: “Somos péssimos no compromisso. (...) Somos mestres a resolver catástrofes, mas deficientes a preveni-las.” O retrato, porém, não é negativo em absoluto: “Somos uma data de coisas boas também, algumas que nos fazem únicos. (...) Generosidade. Somos extraordinariamente generosos.”

Necessariamente, nestes encontros teria de vir a questão do médico e da saúde (ou da sua falta), na forma como cada um de nós vê e sente estas realidades. Sobre o médico: “Na medicina tradicional, o médico é alguém que ajuda o outro, que sabe olhar o outro, que sabe ler nos olhos e tocar no corpo. Quem apenas sabe tudo de cor não é necessariamente alguém que compreende a condição humana. (...) Na medicina, mais de 90 por cento do que se faz são coisas de bom senso, de ternura e empatia, quando se é bom, de ter capacidade de perceber o outro, de não fazer burrices, de perguntar se tiver dúvidas. Depois, há 3 ou 4 por cento de coisas sofisticadas em que se joga a vida e a morte numa decisão que obrigatoriamente necessita de inteligência, conhecimento e muita dedicação, estudo e talento.” E sobre a saúde: “Há uma coisa que as pessoas têm de perceber, a saúde é mais importante e muito mais variável do que a doença. A doença é um alisador, os doentes ficam todos parecidos uns com os outros. Pior só se estiver morto.”

Interessantes também são as considerações sobre a família e sobre os amigos, sobre a política, sobre a crise dos comportamentos, sobre o que não se sabe relativamente ao Homem. Uma conversa que se lê com gosto, sem subserviência a conveniências sociais, em que se misturam pacificamente a perspectiva do cientista e do ser humano para quem a imortalidade “é o sonho impossível” e que é objectivo quando diz o que se perde com o envelhecimento: “Perdemos tempo, é a primeira coisa que perdemos.” No leitor, fica ainda a urgência do pensar e do perguntar, formas que são de responder aos desafios, mesmo que sejam da ordem do transcendente, como a questão da fé: “Fascinante tema, civilizacional e estruturante no que somos. Uma matéria que também me faz pensar, sempre fez. Questiono-me muitas vezes sobre a razão que nos leva a acreditar. Por que raio é que a gente acredita? Quem é religioso tem justificações transcendentais, mas para quem não tem?”

Voltando à sementeira: é impossível ficar-se indiferente a este registo, pleno de ensinamentos, ainda que eles obriguem a um contínuo questionar, forma de nos conhecermos a nós e de conhecermos o outro...

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1393, 2024-10-16, pg. 10.


quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Sebastião da Gama - A inquietação pela palavra essencial (4)

 


Pelos poemas de Sebastião da Gama passa também o reflexo do conhecimento da história literária portuguesa e de muitos dos seus autores, uns invocados, imitados outros — por um lado, na escolha de formas e tipologias, como “vilancete”, “soneto”, “cantar de amor”, “epigrama”, “cantiga de amigo”, “écloga”, “elegia”, “ode”, “madrigal”, “cantilena” ou no recurso a formas populares como a quadra ou no uso de referências advindas da literatura oral, como as lendas; por outro, na menção de referências à lírica trovadoresca e a nomes como Alexandre Herculano, António Botto, António Feijó, António Nobre, Bernardim Ribeiro, Bocage, Camilo, Camões, David Mourão-Ferreira, Diogo Bernardes, Eça, Fernando Pessoa (e nos heterónimos Campos e Caeiro), Guerra Junqueiro, João de Deus, José Duro, José Régio, Júlio Dantas e Nicolau Tolentino. Mas passa também a voz popular, quer por lhe dar lugar de motivo em epígrafe (“Roma”), quer pelo reconhecimento do que deve às origens (“Nasci pra ser ignorante”) ou por ir buscar a imagem do povo e de figuras que constituem a sua paisagem, impregnados do seu saber, para muitos dos seus poemas. Este conjunto possibilita-lhe que na sua obra corram o tom sério e o humor, os temas mais frequentes da literatura (como o amor, a morte, a alegria de viver, a espiritualidade, a contemplação, o espírito do local, o seu tempo, a Grande Guerra — de que foi contemporâneo—, entre outros) e o traçar de um caminho em que o lirismo se impõe, tal como legou registado num dos últimos textos que escreveu, não concluído, que seria para uma futura conferência sobre António Sardinha (incluído em O Segredo É Amar), iniciado em guisa de manifesto: “Cabe aos poetas mostrar a grandeza da Vida” — e, de imediato, lembramos o fulgor dos versos de 1944, vindos em Serra-Mãe: “A cada verso nasço… / É cada verso o meu primeiro grito / à Vida…” Dois parágrafos adiante, na mesma conferência, explica: “A nobreza da Poesia (…) está (…) nisso de se procurar e se encontrar em todos os lugares em que está; nisso de não querer saber da convenção que faz de uns temas poéticos, de outros apoéticos. Que a verdade é que não há temas poéticos e temas que o não são; nem há temas sequer: há sentimentos, há momentos da alma e momentos da paisagem, há acontecimentos, há coisas – e há Poetas em face de tudo isso.”

Esta observação sobre a Poesia e os Poetas (termos que grafava com maiúscula frequentemente) praticou-a Sebastião da Gama, como demonstrou nos versos de “O Poeta” (em Cabo da Boa Esperança): “Tudo ganhou sentido num momento… / (…) / E a poesia das coisas sem Poesia, / que no olhar do Poeta dormitava, / de súbito nas coisas acordava / — tão natural, tão íntima, tão própria, / como se fora delas que nascera…”

Figura importante da geração de 50, Sebastião da Gama foi, como referiu Vasco Graça Moura (em Diário de Notícias, 18.Set.2005), um poeta “muito menos preocupado com a problemática social, tão do gosto dos neo-realistas, do que com a expressão de uma autenticidade pessoal”, reconhecendo-lhe “grande à-vontade nas formas a que recorre”, uma “arte do verso só aparentemente instintiva e espontânea” e uma vivência da poesia “como uma espécie de alimento quotidiano”, caracterizando-se a sua obra “pela subjectividade de um lirismo de intensa e por vezes quase ingénua ternura, de comunhão e partilha sentimental, de grande e romântica generosidade de sentimentos e identificação com a natureza”.

O título escolhido para esta “poesia reunida”, O Inquieto Verbo do Mar, resulta da opção por um verso do poeta e justifica-se por uma simultaneidade de linhas de leitura em Sebastião da Gama — o desassossego do poeta na escuta e na procura, a força da palavra essencial, o mar como um dos signos de eleição e de inspiração —, aqui se encontrando os seus nove títulos de poesia até hoje publicados (entre Serra-Mãe, em 1945, e Lenda de Nossa Senhora da Arrábida, em 2014), um grupo de “Poemas Dispersos”, que integra cerca de 80 poemas escritos entre 1939 e 1950, surgidos dispersamente por variadas edições (publicações periódicas, livros de curso, antologias) e o conjunto de “Poemas Inéditos”, quase 280 textos só agora publicados, datados do período entre 1939 e 1950, maioritariamente provenientes de um caderno a que o poeta deu o título de “Saudosas Recordações” e de um primeiro conjunto de poemas que constituiriam a obra Serra-Mãe, compilação de 1943, que o autor acabaria por substituir por completo.

Se a maior parte destes textos chegou até hoje, sendo possível a sua divulgação, tal é devido ao esforço de Joana Luísa da Gama (1923-2014), que juntou e preservou o que conseguiu para a reconstituição da produção literária e epistolar de Sebastião da Gama, seu marido. O Inquieto Verbo do Mar é também a obra que ela gostaria de ter visto e faz todo o sentido que seja publicado quando se assinalam duas datas “redondas” — os 10 anos sobre o falecimento de Joana Luísa e os 100 anos sobre o nascimento de Sebastião da Gama.

* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1388, 2024-10-09, pg. 10.

OBS: Este texto constitui parte do posfácio ao livro O Inquieto Verbo do Mar, de Sebastião da Gama (Assírio & Alvim, 2024).