Em A Espiritualidade da Arrábida, as tentativas de partilhar o que a Serra sugere oscilam entre a impossibilidade da precisão descritiva — “espaço que flutua acima de todas as tentativas de o adjectivar”, escreve Salvador Peres — e esse desafio da descoberta que põe à prova e sugere outros esforços — “subir à Arrábida significa uma oportunidade para contemplar a Esperança e dinamizar a Fé e o Amor”, defende Hermínio Araújo. A aceitação deste desafio causado pelo impacto da Serra é um jogo permanente, assente sobre a simbologia que a ampara e sobre o mistério que a adorna, como descobre Casimiro Henriques: “Tu és a serra e a Serra és tu, ali perdido diante de um mundo que não consegues criar pelo teu poder.” Ou, como diria o poeta que escreveu o seu primeiro poema sobre a beleza da Arrábida aos 15 anos, Sebastião da Gama, numa recomendação ao passeante: “Vá sozinho, suba ao Convento, que é onde o espírito da Serra converge e como que ganha forma. Leve, se quiser, os versos de Agostinho e experimente como afinal é fácil estar a sós com Deus. (...) O Céu fica-lhe perto.” Uma forma de juntar o criador e a criatura, afinal... que perpassa pela descoberta da grandiosidade das coisas simples captada por Carlos Vale Rego, pelo confronto com a insuficiência da palavra para dizer a magia da terra assinalado por José-António Chocolate, pela contemplação que se exprime em oração na voz de Lourenço de Morais, pelo afago introspectivo da mãe-serra enaltecido por Isabel Melo, pela proximidade do historial franciscano trazido por Helena Mattos, pela centralidade que este espaço envolve lembrada por Joaquina Soares, pelo efeito transformador e interpelativo registado por Ruy Ventura...
As fotografias chamadas para este livro, resultantes de olhares, de momentos e de descobertas, corroboram essa onda de mistério em torno da paisagem, intensificada pela impressão digital da Natureza, pelos ângulos de visão pessoais, pela recusa do cenário imediato, pelas tonalidades em diversos graus das mesmas cores ou pela imponência do preto e branco, pela vastidão sugerida, pela luminosidade a favorecer o pormenor, pelo jogo entre luz e sombra, pela pluralidade de motivos, todas rendidas ao que mostram e rendilhadas com legendas sugestivas, por onde perpassam emoções pessoais, deslumbramentos, recriações de sentido, tudo em favor de uma arte poética da imagem, haja em vista títulos como “Escondido, mas visível”, de Nazar Kruk, “Porto seguro”, de João Completo, “In-Quietude”, de Carlos Medeiros, “Flor do cardo que eu guardo”, de José Alex Gandum, “Que serra é esta, que comigo fala e me sente?”, de Alberto Pereira, “Arrábida tranquila”, de José Canelas, “A alma do lugar”, de Carlos Sargedas, “O teu adormecer”, de António Alves da Costa, ficando apenas por intitular o surpreendente dourado sobre a serra do Risco, de João Moura.
Nos olhares fotográficos, há um outro grupo de leitura mais imediata, registo de momentos festivos e religiosos captados pelas lentes de Américo Ribeiro e de José António Carvalho, marcas de tempos diferentes neste “romariar e rezar” (como refere Luís Marques no ensaio já mencionado) em que a religiosidade popular surge aliada à Natureza.
Retratos escritos ou fotográficos, a verdade é que por todos os registos deste livro perpassam partes de um texto maior, uno, deixando adivinhar que a Arrábida impressiona sempre por aquilo que não somos capazes de dizer porque o silêncio se nos impõe para que ouçamos o concerto da cor com o restolhar segredado pelas veias da Serra. Assim percebemos que a reinvenção, a reconstrução ou a abordagem iniciática do ser da Serra serão sempre complexas, difíceis e angustiantes, na medida em que nenhuma das representações será suficientemente totalizadora de forma a desocultar o seu mistério.
É Viriato Soromenho-Marques quem assina o derradeiro texto, em tom posfacial, recapitulando momentos históricos em torno da “presença cultural e simbólica na nossa consciência” da Arrábida, lembrando as perspectivas científica, ecológica (mesmo ecocrítica) e literária e afirmando-a como uma “causa colectiva”. A motivação criada pela Arrábida a todos quantos a visitam ou aos que nela vivem mostra que ninguém fica insensível perante o que vê ou o que sente — há os textos que tentam guardar os sentimentos, há as memórias que afagam a distância do tempo, há os desenhos que são geradores de uma reconstrução, há as fotografias que se apresentam com uma mensagem muito mais intensa do que o registo lacónico de se ter estado ali... tudo porque, como Soromenho-Marques refere, “o que importa colocar em relevo é o permanente convite da Arrábida para a meditação e a viagem interior”, elementos estruturantes para aquilo que, a fechar o seu texto, defende: “A verdadeira força da espiritualidade é aquela que se funde na celebração da existência.” E a Arrábida deve ser celebração, sempre! Porque, como dizia a personagem de Agustina Bessa-Luís, “parece que o mundo foi criado daqui!”
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1417, 2024-11-20, pg. 9.
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