Por meados de Setembro de 1687, no dia 14, dois religiosos italianos, peregrinos e viajantes, passavam em Setúbal — eram eles o padre Domenico Laffi e o frade Giuseppe Liparini, vindos desde Bolonha, de onde tinham partido em 24 de Maio desse ano. Dessa passagem ficou registo no livro de Laffi intitulado Dalla tomba alla culla è um lungo passo: Viaggio di Padova ove morse il glorioso S. Antonio a Lisbona ove nacque, que teve primeira publicação em 1691, em Bolonha, e cujo itinerário português foi editado em 1988 pela Università degli Studi di Perugia, em trabalho a cargo de Brunello De Cusatis. Uma década depois, em Portugal, surgia a obra O Portugal de Seiscentos na ‘Viagem de Pádua a Lisboa’ de Domenico Laffi, estudo crítico também assinado por De Cusatis (Editorial Presença, 1998), incluindo o capítulo de Laffi dedicado a Portugal.
Sobre a biografia de Laffi, o autor do relato, pouco se sabe, não se ignorando, contudo, o rol bibliográfico que assinou e teve ampla repercussão (textos teatrais e narrativas de viagem — a Compostela, a Lisboa e à Terra Santa). Nascido em 3 de Agosto de 1636 em Vedegheto di Savigno, foi para Bolonha ainda na infância. Em 1666, quando já era sacerdote, fez a sua primeira peregrinação a Compostela, local que visitou várias vezes — em 1670, aquando da segunda viagem, redigiu a obra Viaggio in Ponente a San Giacomo di Galitia e Finisterre per Francia e Spagna, publicada em Itália em 1673, título que teve reedições em 1676 e em 1681 e graças ao qual Laffi é considerado pela Xacopedia “um dos peregrinos mais importantes da história de Santiago por ser autor do relato de peregrinação de maior significado e relevância conhecido até agora”.
A vinda a Portugal acontece pela razão que o título da obra sobre essa viagem indica — peregrinação a partir de Pádua, onde está sepultado Santo António, para chegar ao local do seu nascimento, Lisboa, percurso justificado com a transcrição da frase “dalla tumba alla culla è um lungo passo” (“do túmulo ao berço é um longo passo”), aforismo que resulta de adaptação do último verso de um soneto do pós-renascentista Giambattista Marino, nas suas Rime (1602), ao afirmar que “da la cuna a la tomba è um breve passo” (“do berço ao túmulo é um pequeno passo”).
A entrada de Laffi em Portugal aconteceu nesse Setembro de 1687, em dia não indicado, na zona de Aldeia Nova de São Bento, num trajecto que passou por Serpa, Cuba, Torrão e Alcácer do Sal, até chegar a Setúbal (no dia 14); a viagem prosseguiu por Palmela e Moita, com paragem em Lisboa dois dias depois; a 19, a partida leva os viajantes por Loures, Torres Vedras, Caldas da Rainha, Alcobaça, Leiria, Coimbra, Porto, Viana do Castelo e Caminha, para posterior entrada na Galiza, rumando a Compostela, onde chegaram a 15 de Outubro. Logo no início da obra, é justificada a narrativa: “Eu, para satisfazer as curiosidades discretas e indiscretas de todos, direi, com mera verdade, ter feito esta viagem, não sei se impelido mais por natural propensão, por talento sujeitado à curiosidade de ver coisas novas, ou por espírito de piedade para o glorioso Santo António de Pádua. Fui àquela cidade para adorar, naquelas sacras cinzas, vivas sementes de eternidade, e recolher copiosa messe de graças.” Quanto à decisão de passar a escrito o visto e vivido, explica: “senti-me na obrigação de fazer um sucinto relato para dar prazer a quem goza deste tipo de leitura, como também para agradar a quem se sinta movido, por devoção, a fazer peregrinação semelhante. Isso fiz com o estilo que me pareceu mais adequado para uma simples narração.” O relato que o leitor tem ao seu alcance está eivado de informações que Laffi recolheu nas leituras sobre o país e fortemente alicerçado naquilo que testemunhou, aspectos que, na edição portuguesa referida, merecem adequadas notas de contextualização por De Cusatis.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: 2024-12-11, pg. 10.
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