Em quase uma centena de fotografias, Pedro Narra (n. 1974) leva-nos a um encontro com segredos da Comporta, nem sempre visíveis a quem daquele espaço aproveita apenas o mais óbvio, num convite para descobertas pessoais e momentos de contemplação da Natureza que nos cerca.
O desafio passa pelas páginas de Terras da Comporta, álbum recentemente editado pela Vanguard Properties (fora do circuito comercial), título que se conjuga também com a marca dos empreendimentos que esta empresa está a promover na zona da Comporta - “Dunas” e “Torre”.
O livro corre em duas vertentes - por um lado, nessa linha do desvendar, mostrando momentos quase únicos e insistindo na urgência do olhar e do parar; por outro, na pista das memórias do artista, que ali cresceu e se deixa mergulhar nas memórias vividas.
“Revisitação do passado” - é assim que este livro é qualificado por Pedro Narra, para quem a Comporta é “um estado de alma”, conjunto de olhares resultantes do tempo ali passado a “contemplar o mar, as dunas” e a absorver “as fragrâncias que chegavam”. Um livro feito de sentidos, pois, em que se adivinham os cheiros, os ruídos, os gostos, os toques, vindos das brisas, do restolhar, do chilreio, dos sabores, do bate-que-bate das águas enroladas na areia. Um livro feito de olhares oportunos, demorados, contemplativos, perscrutantes, atentos, sub-reptícios.
Estruturado em cinco partes - “terra”, “azul”, “asas”, “areia” e “luz” -, por cada uma delas passa o mais forte de cada título, cobrindo a vida que nos é trazida dos meandros do arrozal, do sapal, das dunas ou do estuário. Encanta-se o leitor-observador com os animais (a gineta, o ouriço-cacheiro, a salamandra, o abelharuco, o chapim, a poupa, o pintassilgo, a garça, o pato-real, o golfinho, a cegonha, a águia-pesqueira, a raposa, entre outros), com as plantas (a alfazema, a camarinha, o pinhal, o feto, a azeda, a planta do arroz, o cravo-das-areias, partes de uma lista maior) ou com os efeitos de luz e cor (conseguidos em espaços como o arrozal próximo da praia da Comporta, as praias da Raposa, do Pinheirinho e do Carvalhal ou nos meandros a que Pedro Narra chamou “vida nas dunas” ou mesmo nas gotas de orvalho que serrilham uma folha).
Há fotografias que nos obrigam a parar, de tal forma a Natureza se nos impõe e se manifesta, como a que inaugura o livro - paisagem verde de arrozal, cruzada por linha vertical cor de terra, espaço de passagem e de divisão de lotes de terreno agrícola, quase mostrando as simetrias ou as geometrias com que a Natureza se nos apresenta muitas vezes - ou como a das camarinhas (nas suas bagas apelativas e tentadoras), a do pinhal na Praia da Comporta (com tufos de plantas que disfarçam a areia, dando ideia de que a protegem), a dos pintassilgos (no esforço de repartir o alimento pelos filhotes, em simultâneo com a avidez de bicos abertos na busca do pedaço que cairá em sorte), a do canal da Comporta (no seu delinear ziguezagueante, composição magistral de desenho livre), a da planta do arroz (na força da sua fragilidade), a dos flamingos em bando (construção de linhas paralelas estilizadas, em espírito de grupo e de orientação), a dos fetos castanhos (trabalho de recorte fino e de ornamentação), a do cravo-das-areias (quase querendo fazer com que o seu odor ou a sua cor corram na brisa) ou a da Praia do Carvalhal (mistura de cores numa paleta que desafia os restos de luz).
É um livro bonito este, que Pedro Narra construiu para que o mundo próximo de nós nos surpreenda e para que o leitor se torne observador do que lhe é contíguo.
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: nº 1139, 2023-09-06, p. 8.
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