Há uma canção de Bob Dylan, de 1968 (“Open the door, Hommer”), em que o papel das memórias é assim poetizado: “Cuida de todas as tuas recordações / pois não podes revivê-las.” Estes versos do poeta-cantor nobelizado acentuam de forma crua o efeito da lembrança, uma quase-metáfora para tornar presentes coisas acontecidas no passado, momentos distanciados pelo factor tempo e pelo contexto em que os acontecimentos e as recordações ocorrem.
A obra surgida da edição do Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage de 2022 que agora se publica, O sossego do tempo sobre a pele (Setúbal: LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão, 2023), de Luís Aguiar, joga com esse elemento fundamental que é o tempo, fermentador de uma certa quietude e elevador das recordações, num percurso resultante da brutalidade do encontro com a morte, com o silêncio.
Na mais antiga recordação, o poema que inicia o livro, há a vivência de um passado que fazia o tempo, trajecto prolongado que parecia não ser interrompido - “Éramos tão novos, meu amor, / mas o tempo trazia nas veias lume, / romãs e os lugares / que um dia iríamos esquecer”. Contudo, este correr da vida e da paixão surge ameaçado logo no segundo poema, quando a escrita se confronta com a sorte e com a doença - “o destino é um viajante, / assim é a dor que o naufrágio causa / (...) / enquanto a leucemia se estendia / pelo sangue e pela linfa, / como se fosse um vestido preso / no estendal da quinta.”
A memória impele para lugares de revisitação, numa tentativa de construção de momentos de felicidade retomada - “Ontem, estive junto à praia onde namorávamos / sem que a tua mãe o soubesse. / (...) / Em escassos segundos recordei-me do teu sorriso.” Porém, tais instantes podem acentuar a dor, trazida pela ausência - “O mundo não mudou e tu, agora, repousas em parte incerta, / enquanto eu me tento expulsar deste quarto / onde adormeceste ontem, e ontem foi há tanto tempo”.
A continuação do poema constrói-se sobre recordações assentes em objectos (as cartas), em partilhas (uma viagem de comboio para Caminha), em instantes de alegria (o vento na praia, a areia nos pés, os campos verdes), como é conseguida nas imposições do sofrimento (“Doem as perguntas mais planas, / e as histórias que desapareceram no azul desvanecido”) ou na insistência na vã procura do ser amado - “Diz-me, / em que manhã, / ou em que pôr-do-sol, / poderei / procurar o teu cheiro, / ou o teu beijo, / misturado num lívido poema (...)?”
A leitura deste O sossego do tempo sobre a pele é um desafio à sensibilidade do leitor, uma viagem pela dor e pelas cicatrizes trazidas pela vida, num percurso interrompido pela morte, que “chegou na idade em que o cimento / estava fresco, e as searas eram infindas / para os passos que não conseguíamos dar”. O trajecto torna-se difícil para o poeta, que, depois de se ver “órfão” na viagem, sente a falta do abraço do “último momento”, tem de responder às perguntas sobre a morte, peregrina na tentativa de minimizar a ausência.
Na justificação apresentada pelo júri para premiar esta obra, assinada por José-António Chocolate, é referido estar-se “perante uma história de amor e saudade, sendo esta última não o resultado de uma revolta perante as circunstâncias adversas da vida, mas um hino de agradecimento a quem partilhou uma relação intensa e verdadeira”, ao mesmo tempo que se sublinha a riqueza imagética e metafórica conseguida no poema. No fundo, um livro construído sobre o silêncio e a vertigem da dor.
Se, como disse Jaime Salazar Sampaio, “é preciso ter amado a vida para aceitar a morte”, este longo poema de amor é prova desse percurso, via difícil de procura e de encontro, que se conclui com uma declaração que ultrapassa todas as agruras, que vence a dor: “Amo-te, / mesmo que as rosas me rasguem as mãos, / por não suportarem / o peso do teu nome inscrito numa lápide.”
* João Reis Ribeiro. "500 Palavras". O Setubalense: n.º 1149, 2023-09-20, p. 10
Sem comentários:
Enviar um comentário