sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Sebastião Fortuna, o idealista coerente

 

“O nosso amigo Sebastião partiu”, disse-me ao telefone, com voz hesitante e pesarosa, a amiga que me deu a notícia na tarde de 14 de Janeiro. E logo um turbilhão de imagens me passou, remexendo a já memória do Sebastião Fortuna (1936-2023).

De imediato me lembrei de uma folha manuscrita que ele me tinha oferecido, texto provavelmente lido ou pensado para alguma intervenção pública quando tinha 76 anos (de 2012, portanto), em que se definia: “Penso que sou uma pessoa como qualquer outra, com defeitos e qualidades, com qualidades e defeitos. Mas aceito que sou um idealista! Tenho consciência disso. Mas procuro ser um idealista coerente, pois tenho a consciência de que o ideal nunca se atinge, porque o ideal é um desejo, uma meta a atingir, que tem como finalidade o que consideramos a perfeição e o ser humano nunca será perfeito.”

A ideia que passou para os amigos e para os conhecidos sobre o Sebastião Fortuna foi a do “sonhador”, epíteto a fazer algum jus às palavras com que ele se apresentara. E vale a pena ler o capítulo da narrativa da vida do Sebastião Fortuna há pouco tempo publicado por Cecília Matos no segundo volume da obra E assim se fez esta terra... - Os Frescata, os Fortuna, as Cabanas e outras histórias (ed. Autor, 2022), relato de uma dezena de páginas, muitas vezes na primeira pessoa, recheado da inconstância, da luta, dos sonhos, da persistência, da vida que povoou este homem, que contou saberes para muitas profissões, que peregrinou à frente dos seus sonhos, que valorizou a circunstância de ser e de viver em detrimento de todos os riscos que correu.

Conheci Sebastião Fortuna quando vim para Setúbal, numa visita que fiz ao seu empreendimento “Fortuna - Arte e Artesanato”, ali na entrada de Quinta do Anjo. De tal maneira me fascinou o fluxo das ideias que lhe passavam que não pude deixar de testemunhar no jornal O Distrito de Setúbal (na edição de 29 de Novembro de 1988) a impressão recebida. Conversador (muitas vezes mais em monólogo, com vontade de ser ouvido), fazedor de coisas (em barro, em tela, em madeira, em pedra), defensor do património e do saber, as intenções de Sebastião Fortuna eram fortes, mas assentes apenas nessa vontade de construir e de enfrentar a vida - tudo podia acontecer naquele espaço, era preciso lutar contra a extinção de artes e de ofícios locais, pensava na construção de um museu do trabalho onde se pudesse ver e fazer... e as palavras acompanhavam o movimento das mãos, porque as ideias já circulavam pelas nervuras do corpo.

Retomo o manuscrito de 2012: “Porque sou um idealista e procuro ser coerente, empenho-me no meu ideal, porque é nele que encontro a minha razão de Vida, que é colaborar para a construção de um Mundo Melhor. Mas sei que, para colaborar na construção de um Mundo Melhor, não preciso de fazer nada de extraordinário, não preciso de dar lições a ninguém, basta-me lutar todos os dias com os meus defeitos e esforçar-me, empenhar-me em cultivar os dons, os talentos que Deus me deu e pô-los ao serviço do bem Comum e já tenho muito em que me ocupar, já tenho muita sarna para me coçar.”

Sebastião Fortuna viveu na convicção e afirmação destes princípios, a que associava a sua crença no sonho, como referiu no livro em que alguns dos seus quadros vivem acompanhados pelos poemas de Alexandrina Pereira, publicado no ano passado: “É acreditando no nosso sonho e lutando pela sua realização que as coisas acontecem.” Dizer isto quando o peso de 86 anos acompanha o autor é levar um manifesto até ao fim, é assumir um caminho na sua totalidade.

O sonho, companheiro inseparável de Sebastião Fortuna ao longo das quase nove décadas que viveu, casou sempre bem com o lirismo das suas telas, dominadas por espaços de isolamento, por uma emotividade espelhada em cenários de infinito conducentes a certa dose de introspecção. Olhando os catálogos das exposições que envolveram os seus quadros, vemos que as telas sempre se cruzaram com a poesia através de títulos que podiam ser um verso, uma pista ou um poema, numa aproximação repleta de simplicidade - Sebastião Fortuna tinha o condão de dizer grandes verdades construídas com a simplicidade absoluta, aliás.

Retomo o que escrevi sobre a sua forma de estar para texto introdutório de um catálogo de 2015: “Um percurso cheio de positivas aventuras e de nem sempre calculados riscos, claro. Um trajecto único, pessoal, de um timoneiro que conduz a nau dos sonhos até quem o queira ouvir, seguir ou acreditar. Um itinerário cheio de luz, em que nada parece vacilar, salvo a rude dureza da circunstância terrena...” É que não foi fácil ser Sebastião Fortuna, sobretudo porque a vida e o sonho nem sempre se compatibilizam, mesmo que as cores do sonho escorram sobre a tela da vida.

Pelo retrato que, no livro de Cecília Matos, com a ajuda do protagonista, fica traçado, percebe-se que a navegabilidade da vida, mesmo se orientada pelo sonho, nem sempre é regular e, em nome da coerência que o sonhador quer ter, os momentos de quebra são muitos e os de procura outros tantos. Na verdade, Sebastião Fortuna conhecia-se muito bem: ao definir-se como “idealista coerente”, defendia-se das inseguranças e das barreiras do quotidiano. Se olharmos para os títulos das exposições dos seus quadros de 2008, 2010 e 2015, temos a prova da sua coerência e os pilares do seu percurso: “Sonhar é preciso”, “A felicidade é essencial” e “A vida é feita de sonhos”. Um quase manifesto! Uma quase justificação para a vida!

* J.R.R. "500 (e mais) palavras". O Setubalense: nº 1000, 2023-01-26, pg. 19.


quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

António dos Santos, tipógrafo para sempre (2)


 

A partir da abertura que lhe foi dada pelo prefeito, o percurso do tipógrafo António dos Santos começa a edificar-se, sempre na permuta com os outros rapazes, na aprendizagem com os mestres, querendo assumir mais responsabilidades técnicas, dominado pela curiosidade e pelo sentimento de fazer melhor o seu trabalho, num trajecto determinado por um sentido de vocação, eivado de reconhecimento às pessoas que tiveram influência na sua formação.

Pelas páginas de O Tipógrafo passam os trabalhos de António dos Santos no jornal O Setubalense, na partilha de conhecimentos, na preocupação de saber mais, na construção da gráfica Corlito, com lições sobre a arte da impressão, sobre os meandros da linotipia e do offset, quase podendo o leitor entender este livro como um manual técnico contado na primeira pessoa, desvendando os segredos das máquinas com que trabalhou e revelando os caminhos para a produção de um melhor trabalho. O afecto à profissão, à arte e aos equipamentos que lhe permitiram ser tipógrafo surge humanizado em vários passos, como naquele em que se pode assistir à personificação sentida das máquinas, quando se refere o menor esforço na actualização do equipamento, exigindo-se às antigas máquinas as mudanças trazidas pelas novidades - “Tornava-se por vezes assustador visitar tipografias que existiam espalhadas por este país fora e ouvir aquele barulho característico das impressoras pedaleiras, máquinas que gemiam de dor, quase suplicando que lhes dessem um pouco de descanso, tentando com isso abafar o barulho infernal, numa cadência sempre igual, sempre de dor.”

Uma outra faceta que passa por este livro é a do contributo para a história local sadina, aspecto que pode ser visto de dois ângulos: o primeiro, quanto ao esforço de formação profissional que uma instituição como o Orfanato Municipal de Setúbal praticou localmente, depositando nas mãos dos jovens que acolheu os utensílios necessários para o desempenho de uma profissão, aspecto que, de resto, António dos Santos já sobejamente relatou em obras anteriormente publicadas; o segundo, relacionado com a história das artes gráficas em Setúbal, inventariando as tipografias e alguns mestres da arte locais, ligando os momentos de expansão ou de retracção desta actividade com a vida de Setúbal.

A história que António dos Santos nos conta é também uma forma de reconhecimento - ao longo da narrativa, há sempre a preocupação do papel que os outros desempenharam, da construção em equipa - os colegas da arte (muitos deles formados na mesma escola), os seus aprendizes ou aqueles que estiveram sob a sua orientação, os mestres que conheceu e com quem aprendeu, as figuras com quem se cruzou e que confiaram no seu trabalho, os clientes para quem trabalhou (destacando neles o apoio para o crescimento da tipografia e a exigência que punham nos trabalhos encomendados), os parceiros da arte (como designers, fotógrafos, autores, etc.) e, por fim, a parte da família que o auxiliou, os sogros, que apresenta como “a família que nunca tive desde a minha nascença, gente da Murtosa, simples e afável a quem estou grato pela extraordinária ajuda que me deram para levar por diante um sonho de progredir e chegar mais além nas artes gráficas”.

O Tipógrafo, que António dos Santos nos oferece, ainda que carecendo de uma revisão linguística adequada, é um belo documento humano e profissional, muito assente no testemunho pessoal, apoiado, muitas vezes, em bibliografia sobre o tema, pois, como revela na última página, houve a preocupação de “chegar ao leitor, descrevendo com autenticidade tudo o que ao ofício de tipógrafo diz respeito.” Torna-se interessante, depois deste percurso, voltar ao início do livro, ao passo em que, na segunda página, o autor confessa o fascínio sentido desde criança pela tipografia: “O tempo ajudou-me a perceber a grande mudança que na minha vida se instalou, dando comigo em dias intermináveis colado aos vidros da porta da oficina de tipografia, imaginando-me um simples monge dos que há séculos habitaram este espaço de clausura, capaz de ali permanecer para sempre.” Missão cumprida, pois!

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 994, 2023-01-18, p. 8


quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

António dos Santos, tipógrafo para sempre (1)


 

“Dediquei-me a esta máquina com muito entusiasmo, conseguindo, com o correr do tempo, dela tirar os melhores resultados de impressão. Era como cruzar uma estrada cheia de obstáculos que nunca esperei percorrer, perguntando-me como consegui sobreviver do abandono a que fui jogado e parecer, afinal, igual a tantos homens que na vida tiveram feliz nascimento. Tudo isto regenerou em mim vontades de chegar longe na arte que escolhi, o ser impressor tipográfico, vendo-me como mais um sobrevivente que ao Orfanato chegou como indigente.”

Este parágrafo surge quase a meio do livro O Tipógrafo, de António dos Santos (Centro de Convívio dos Ex-Alunos do Orfanato, 2022), motivado pela grande inovação que constituiu a aquisição de uma máquina cilíndrica em segunda mão para trabalhos de grande formato, que equipou a oficina do Orfanato Municipal de Setúbal em meados da década de 1950. Mas o propósito deste parágrafo vai além dessa notícia - ele revela também um acto de fidelidade de António dos Santos relativamente à profissão que escolheu, um compromisso com a arte tipográfica, que lhe apareceu como bóia de salvação no seu percurso de criança abandonada pelos pais, mas depois acarinhada pelas instituições sociais, como foram o Asilo das Crianças Desvalidas (até aos sete anos) e o Orfanato Municipal de Setúbal (até aos 18 anos).

Talvez este parágrafo seja a justificação para o título desta obra - na verdade, a linha de leitura dominante neste livro é o percurso de tipógrafo de António dos Santos, desde essa altura até ao encerramento da empresa Corlito (Centro Técnico de Artes Gráficas), ocorrido em 2010, marca que criou e geriu com três outros sócios (Agostinho Ferreira, Alfredo Lopes e Henrique Rocha, este último também formado nas oficinas do Orfanato) ao longo de quase quatro décadas.

Ao escolher um título como este, O Tipógrafo, para contar a sua vida profissional, António dos Santos assume o seu ofício como algo de essencial, como motivação primeira, cruzando a vida com a técnica, com a produção, com o seu papel social de cidadão.

Lemos esta narrativa e assistimos à permanente sobreposição dos dois planos que a conformam - o da biografia do autor e o da história da arte tipográfica -, dando-se a primazia ao plano da profissão: de facto, o princípio da história, à semelhança de todas as biografias que seguem a ordem cronológica, aponta para a infância, mas, neste caso, a infância que é valorizada não é a do narrador António dos Santos, mas a da arte tipográfica - em duas páginas, o narrador apresenta-se para justificar a sua entrada no Orfanato e revelar a curiosidade em torno do que poderiam significar aquele cheiro da tinta e o barulho das máquinas que se ouvia. Depois, em dezena e meia de páginas, o leitor passeia pelos meandros de uma história da “tipografia através dos tempos”, recuando-se até aos anos de 800 no Japão, com entrada na história da arte tipográfica em Portugal, concluindo com referências à reedição, em 1962, da obra Manual do Tipógrafo, de Libânio da Silva (inicialmente publicada em 1908), título “indispensável para os rapazes que se inspiravam nas artes gráficas, procurando na arte de imprimir um futuro seguro”.

Só depois deste passeio pela história da tipografia é que o percurso pessoal do narrador é retomado - “Os 12 anos de idade chegaram. Era ali, naquele espaço do convento com artes de magia, que colocava no papel as palavras através dos caracteres na hora do confronto com a platina da máquina de impressão... que queria estar.” 

Tão firme decisão (ou paixão) obrigaria o jovem a uma conversa com o prefeito, momento de receio quanto à reacção que pudesse surgir como resposta, a carecer de toda a auto-confiança que o rapaz a sair da infância, ainda sem o exame da 4ª classe feito, pudesse arrecadar. O diálogo foi tão marcante que António dos Santos o relembra quase como se tivesse sido registado no momento em que aconteceu, vindo do perfeito a resposta desejada - “Impressionas-me... Está bem, vai lá falar com o Sr. Sequeira e diz-lhe que tens a minha autorização.”

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 989, 2023-01-11, p. 5.