“O nosso amigo Sebastião partiu”, disse-me ao telefone, com voz hesitante e pesarosa, a amiga que me deu a notícia na tarde de 14 de Janeiro. E logo um turbilhão de imagens me passou, remexendo a já memória do Sebastião Fortuna (1936-2023).
De imediato me lembrei de uma folha manuscrita que ele me tinha oferecido, texto provavelmente lido ou pensado para alguma intervenção pública quando tinha 76 anos (de 2012, portanto), em que se definia: “Penso que sou uma pessoa como qualquer outra, com defeitos e qualidades, com qualidades e defeitos. Mas aceito que sou um idealista! Tenho consciência disso. Mas procuro ser um idealista coerente, pois tenho a consciência de que o ideal nunca se atinge, porque o ideal é um desejo, uma meta a atingir, que tem como finalidade o que consideramos a perfeição e o ser humano nunca será perfeito.”
A ideia que passou para os amigos e para os conhecidos sobre o Sebastião Fortuna foi a do “sonhador”, epíteto a fazer algum jus às palavras com que ele se apresentara. E vale a pena ler o capítulo da narrativa da vida do Sebastião Fortuna há pouco tempo publicado por Cecília Matos no segundo volume da obra E assim se fez esta terra... - Os Frescata, os Fortuna, as Cabanas e outras histórias (ed. Autor, 2022), relato de uma dezena de páginas, muitas vezes na primeira pessoa, recheado da inconstância, da luta, dos sonhos, da persistência, da vida que povoou este homem, que contou saberes para muitas profissões, que peregrinou à frente dos seus sonhos, que valorizou a circunstância de ser e de viver em detrimento de todos os riscos que correu.
Conheci Sebastião Fortuna quando vim para Setúbal, numa visita que fiz ao seu empreendimento “Fortuna - Arte e Artesanato”, ali na entrada de Quinta do Anjo. De tal maneira me fascinou o fluxo das ideias que lhe passavam que não pude deixar de testemunhar no jornal O Distrito de Setúbal (na edição de 29 de Novembro de 1988) a impressão recebida. Conversador (muitas vezes mais em monólogo, com vontade de ser ouvido), fazedor de coisas (em barro, em tela, em madeira, em pedra), defensor do património e do saber, as intenções de Sebastião Fortuna eram fortes, mas assentes apenas nessa vontade de construir e de enfrentar a vida - tudo podia acontecer naquele espaço, era preciso lutar contra a extinção de artes e de ofícios locais, pensava na construção de um museu do trabalho onde se pudesse ver e fazer... e as palavras acompanhavam o movimento das mãos, porque as ideias já circulavam pelas nervuras do corpo.
Retomo o manuscrito de 2012: “Porque sou um idealista e procuro ser coerente, empenho-me no meu ideal, porque é nele que encontro a minha razão de Vida, que é colaborar para a construção de um Mundo Melhor. Mas sei que, para colaborar na construção de um Mundo Melhor, não preciso de fazer nada de extraordinário, não preciso de dar lições a ninguém, basta-me lutar todos os dias com os meus defeitos e esforçar-me, empenhar-me em cultivar os dons, os talentos que Deus me deu e pô-los ao serviço do bem Comum e já tenho muito em que me ocupar, já tenho muita sarna para me coçar.”
Sebastião Fortuna viveu na convicção e afirmação destes princípios, a que associava a sua crença no sonho, como referiu no livro em que alguns dos seus quadros vivem acompanhados pelos poemas de Alexandrina Pereira, publicado no ano passado: “É acreditando no nosso sonho e lutando pela sua realização que as coisas acontecem.” Dizer isto quando o peso de 86 anos acompanha o autor é levar um manifesto até ao fim, é assumir um caminho na sua totalidade.
O sonho, companheiro inseparável de Sebastião Fortuna ao longo das quase nove décadas que viveu, casou sempre bem com o lirismo das suas telas, dominadas por espaços de isolamento, por uma emotividade espelhada em cenários de infinito conducentes a certa dose de introspecção. Olhando os catálogos das exposições que envolveram os seus quadros, vemos que as telas sempre se cruzaram com a poesia através de títulos que podiam ser um verso, uma pista ou um poema, numa aproximação repleta de simplicidade - Sebastião Fortuna tinha o condão de dizer grandes verdades construídas com a simplicidade absoluta, aliás.
Retomo o que escrevi sobre a sua forma de estar para texto introdutório de um catálogo de 2015: “Um percurso cheio de positivas aventuras e de nem sempre calculados riscos, claro. Um trajecto único, pessoal, de um timoneiro que conduz a nau dos sonhos até quem o queira ouvir, seguir ou acreditar. Um itinerário cheio de luz, em que nada parece vacilar, salvo a rude dureza da circunstância terrena...” É que não foi fácil ser Sebastião Fortuna, sobretudo porque a vida e o sonho nem sempre se compatibilizam, mesmo que as cores do sonho escorram sobre a tela da vida.
Pelo retrato que, no livro de Cecília Matos, com a ajuda do protagonista, fica traçado, percebe-se que a navegabilidade da vida, mesmo se orientada pelo sonho, nem sempre é regular e, em nome da coerência que o sonhador quer ter, os momentos de quebra são muitos e os de procura outros tantos. Na verdade, Sebastião Fortuna conhecia-se muito bem: ao definir-se como “idealista coerente”, defendia-se das inseguranças e das barreiras do quotidiano. Se olharmos para os títulos das exposições dos seus quadros de 2008, 2010 e 2015, temos a prova da sua coerência e os pilares do seu percurso: “Sonhar é preciso”, “A felicidade é essencial” e “A vida é feita de sonhos”. Um quase manifesto! Uma quase justificação para a vida!
* J.R.R. "500 (e mais) palavras". O Setubalense: nº 1000, 2023-01-26, pg. 19.