Entre 2017 e 2022, o “designer” setubalense Raul Reis (n. 1974) desenvolveu e publicou o projecto “A cidade está deserta” (No Frame Creative Publishing), numa trilogia que compreende os títulos Envia-me cartas (2017), Ninguém em casa (2018) e Em tua pele (2022, acabado de sair), livros com registos fotográficos de orientação temática - as caixas de correio dos prédios urbanos (com a indicação de “cartas”), as campainhas da entrada das casas e as cores e revestimentos das ruas, respectivamente.
Em qualquer dos títulos, o observador-leitor respira o ar das ruas calcorreadas, confronta-se com imagens que se colam à fixação da cidade (que não das pessoas), correndo-se o risco de uma viagem à interioridade das memórias. Por estas fotografias não circulam pessoas, mas em todas há vestígios de gente ter por ali passado, ali ter permanecido, ali ter sido.
Envia-me cartas é uma peregrinação por portas e portas que ostentam a memória e a força do que foi a carta, manuscrita ou dactilografada, em que pessoas se aproximaram, vencendo distâncias e fazendo com que o presente se dilatasse pelo tempo que o correio demorava a chegar ao destinatário. Imagens de uma quase arqueologia da comunicação escrita, os letreiros com a gravação “cartas” parecem desafiar o passante para uma forma mais pessoal de contacto ou para a nostalgia dos momentos propiciados por esses compassos de espera e de desejo de receber uma carta, abrir o envelope e simular a audição das palavras do emissor por trás de uma caligrafia reconhecida ou adivinhada.
Ninguém em casa, mostrando campainhas individuais ou em bloco, afigura-se como uma provocação ao silêncio ou como uma sugestão para início de conversa, despidas do moderno videoporteiro, algumas (poucas) com sistema de voz incorporado, a larga maioria apenas botão de chamada, “clique” para conversa ou para entrada no espaço e na vida.
Em tua pele prossegue a viagem pelas ruas que nos fazem, mostrando que as texturas e as cores exteriores se podem albergar sob a força da metáfora que liga o mundo ao corpo ou vice-versa. Os olhos caem sobre fragmentos de muros, de painéis, de tintas, de cores, de azulejos, compostos e ordenados ou afectados pelo tempo e pelo desgaste e doença dos materiais, num choque com a perenidade ou em contínua descoberta de novas geometrias ou ilusões com que a vista se diverte.
Qualquer um dos elementos desta trilogia convida a um olhar sobre o mundo de forma mais circunstanciada - um parar para reparar, um diálogo com o tempo e com a história das formas e da decoração, um encontro com o que foi padrão e agora se reveste com a ironia do desgaste e da erosão tecida pelo calendário e pela alteração do gosto. O leitor do tríptico “A cidade está deserta” é impelido a tornar-se observador do quotidiano, centrando-se naquilo que, parecendo banal, desafiou a paciência cronológica para ser olhado, quase como se desse olhar despontasse uma revelação, a magia do pormenor e das pequenas coisas, a descoberta de novas formas.
No conjunto, são mais de quatrocentas imagens, radiografias do corpo da(s) cidade(s), guardiãs de histórias das gentes. Fixarmo-nos nestas imagens trazidas por Raul Reis e seguir o mapa que elas desenham é uma forma de nos encontrarmos com aquela ideia que Italo Calvino trouxe sobre a cidade: ela “não conta o seu passado, contém-no como as linhas da mão, escrito nas esquinas das ruas, nas grades das janelas, nos corrimões das escadas, nas antenas dos pára-raios, nos postes das bandeiras, cada segmento marcado por sua vez de arranhões, riscos, cortes, entalhes.”
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 878, 2022-06-29, p. 9.
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