A Constituição Política da República Portuguesa que entrou em vigor em 11 de Abril de 1933 (regendo, nos seus 142 artigos, o país até 1976, ainda que com alterações que lhe foram sendo introduzidas) rapidamente possibilitou a prevalência do estado autoritário sobre os cidadãos. Com a sua publicação foi também republicado o Acto Colonial (que fora aprovado em 1930, com 47 artigos), normativo que estabelecia o quadro jurídico e institucional com os territórios que estavam sob domínio português.
Imagine-se agora a submissão dos dois documentos, de 1930 e de 1933, à análise prévia do “lápis azul”, não já com o propósito de os impedir de circular (como faziam os censores de antes do 25 de Abril, quando se confrontavam com textos, desenhos ou imagens que contrariassem o espírito da lei e dos costumes), mas de os pôr em causa, de afirmar princípios que lá não constam e que chegam a subverter o seu teor normativo...
Foi isso que fez um grupo de poetas e de artistas para a obra ReConstituição Portuguesa (Companhia das Letras, 2022), coordenada por Diego Tórgo e Viton Araújo, apresentada como um “manifesto que transforma um símbolo do Fascismo em gritos poéticos de liberdade”, num total de 58 curtos poemas construídos sobre outras tantas páginas pintadas em azul, envolvendo 22 autores de poemas e 12 autores das ilustrações (sendo DeBrito autor de mais de metade destas).
Experiência de “blackout poetry”, os textos de ReConstituição Portuguesa surgem por cobertura das palavras indesejadas no articulado dos normativos, ficando a descoberto aquelas que constroem o poema, assim se dando um outro sentido a palavras que já lá constavam - os versos “Nenhum Estado / garante protecção / àqueles que se inutilizarem / no serviço em defesa da ordem / e nele perderem a vida” resultam de apagamentos provocados nos artigos 57 e 58, que dizem, respectivamente, “Nenhum cidadão pode conservar ou obter emprego do Estado ou das autarquias locais se não houver cumprido os deveres a que estiver sujeito pela lei militar” e “O Estado garante protecção e pensões àqueles que se inutilizarem no serviço militar em defesa da Pátria ou da ordem, e bem assim à família dos que nele perderem a vida.”
Por estes poemas passa sobretudo a contestação, forma máxima de manifesto - “é permitida / a publicidade contrária à ordem, / aos interesses do Estado / ou aos bons costumes” (a partir dos artigos 116 e 120), “Na execução dos seus despachos e sentenças / podem os Tribunais aplicar leis, / decretos ou quaisquer outros diplomas / que infrinjam o disposto nesta Constituição / por sua iniciativa / para a defesa da sociedade” (sobre os artigos 121 a 123). Do articulado do “Acto Colonial” surgem poemas relacionados com a forma de olhar o outro, como acontece em “corpos / indígenas / exploração pública / e púbica” (a partir dos artigos 18 a 21), ou com a independência, como surge em “colónias / países estrangeiros / destinados exclusivamente / à autonomia” (sobre os artigos 45 e 47), entre outros temas.
Expressivas são também as imagens conseguidas a azul, algumas a raiar o fantástico, vivendo de símbolos como o cravo, o corpo humano, elementos militares, a justiça, a solidariedade, a dor, elementos políticos (o parlamento, o voto, figuras da política) ou manifestações populares.
ReConstituição Portuguesa é a expressão da indignação contra a violência sobre as ideias e sobre a autenticidade, uma maneira de afirmar o valor da liberdade e da crença no ser humano.
*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 850, 2022-05-18, pg. 8
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