quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Thiago de Mello e os estatutos da utopia



(em memória de Thiago de Mello, que partiu em 14 de Janeiro)


De 31 de Março para 1 de Abril de 1964, um golpe militar perpetrado no Brasil depôs o presidente João Goulart e iniciou a ditadura militar, que se manteve por duas décadas. Nessa altura, Thiago de Mello (1926-2022) era adido cultural na Embaixada do Brasil no Chile e cultivava intensa amizade com Pablo Neruda, em parte advinda de um sentido de comunhão poética, mas também originada pela proximidade ideológica.

Na sequência da alteração política verificada no Brasil, Thiago de Mello apresentou quase de imediato a sua renúncia ao lugar e, parodiando o “Ato Institucional número 1” (que as chefias militares brasileiras assinaram em 9 de Abril para sustentarem o seu poder, em onze curtos artigos), redigiu o poema “Os estatutos do homem”, defesa forte da liberdade, cuja primeira publicação ocorreu em 30 Maio no jornal fluminense Correio da Manhã (edição 21825) - ironicamente, noutra página do mesmo dia, era noticiada a visita policial à Biblioteca da Faculdade Nacional de Direito, solicitando à bibliotecária a “máxima fiscalização quanto às leituras dos académicos” e deixando um rol dos livros expurgados... 

“Os estatutos do homem”, depois integrado na obra Faz escuro mas eu canto, mereceria ao longo dos tempos edições autónomas e grande divulgação nas várias partes do mundo - em Portugal, seria publicado em 1968 pelas Edições ITAU, tendo grande circulação na forma de poster.

O poema, em que ressoa o espírito da “Declaração Universal dos Direitos Humanos”, segue a construção do texto jurídico (logo a começar pelo título, “estatutos”), dividindo-se em artigos, numerados (14, no total), correspondendo cada um a uma estrofe, variavelmente iniciados por “fica decretado” (na maioria dos casos), “fica estabelecido”, “fica permitido”, “decreta-se” e “fica proibido”. Entre o prescrito no artigo primeiro (“Fica decretado que agora vale a verdade, / que agora vale a vida, / e que de mãos dadas, / trabalharemos todos pela vida brasileira” - “brasileira” passou depois a “verdadeira”) e o último, o leitor é posto perante princípios que visam influenciar o comportamento da sociedade, levando o ser humano a acreditar que a construção da paz, da alegria, da felicidade e da liberdade é função de todos e de cada um. Apenas um artigo, o último, invoca a proibição, apresentando-se como corolário de tudo o que antes foi estabelecido, tentativa de construção da utopia: “Fica proibido / o uso da palavra liberdade, / a qual será suprimida dos dicionários / e do pântano enganoso das bocas. / A partir deste instante / a liberdade será algo vivo e transparente / como um fogo ou um rio, / ou como a semente do trigo / e a sua morada será sempre / o coração do homem.” Além desse incentivo à acção por parte da sociedade, o poema apela também a valores como a coerência (“os homens / estão livres do jugo da mentira”) ou a fraternidade (“que o pão / tenha sempre / o quente sabor da ternura”), na linha da poesia politicamente comprometida.

Dedicado ao escritor e jornalista Carlos Heitor Cony (1926-2018), uma das vozes anti-ditadura, este poema viria a ser considerado por Thiago de Mello o seu “ato institucional permanente”, paródia e contestação do “Ato institucional nº 1” que segurara a “revolução” levada a cabo pelo golpe militar... Em 1998, em entrevista a Lêda Rivas, o poeta falaria sobre a sua carreira: “Sou responsável perante o dom que recebi ao nascer, o dom da poesia. Minha vida é uma vida que tem sido útil para os outros. Sou coerente, porque coloquei sempre a minha poesia a serviço da vida.”

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 768, 2022-01-19, pg. 5


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