quinta-feira, 25 de novembro de 2021

António Osório e o equilíbrio, entre Sado e Arrábida



Em 1996, nos vinte anos da criação do Parque Natural da Arrábida, publicava-se em Setúbal o opúsculo Junto ao Sado e Arrábida, dezasseis poemas de António Osório (1933-2021), numa edição do Instituto da Conservação da Natureza e do Parque Natural da Arrábida. A origem desses textos estava nos livros A raiz afectuosa (1972), A ignorância da morte (1978) e Planetário e zoo dos homens (1990), sobrando ainda dois que viriam a ser integrados em Crónica da fortuna (1997).

Em Junto ao Sado e Arrábida, o leitor visita a paisagem revestida pelo branco e pelo vento que animam um moinho, ao mesmo tempo que, junto ao postigo, se fixa na naturalidade do curso da vida - “os grãos de trigo / estremeciam / antes de se perderem” -, assim como conhece a paisagem de Aldeia de Irmãos, lugar que abriga pessoas e animais, num cenário que apresenta “em torno vinhas, olivais, / irmãos uns dos outros / como tijolos dentro da parede.”

Noutro passo, sente-se a beleza única das camarinhas, conjugando a estética da planta e o gosto sentido - “bagas acídulas, / iguais a pérolas”, num fruto que se atapeta sobre as dunas, resistente “ao salitre penetrante das vagas”. Ainda sob domínio do mar, em espera invernosa, as gaivotas são apresentadas como “curiosas, húmidas, algo de pombo, milhafre, cinza”, ocupando, “para ver gente, o ponto iluminante dos candeeiros”, num tempo em que “aguardam o que não temem, as devoluções do mar”. 

As plantas são tema ainda em poemas como “As dez nogueiras” ou “O apanhador de ervas”, no primeiro se afirmando a relação de proximidade e respeito entre o homem e a Natureza - “Plantadas no Inverno (...), atravessarão o tempo, muito tempo. E darão sombra e fruto a outras gerações. Se eles forem cuidadosos, abençoarão um a um os seus donos.” -, enquanto o segundo acompanha à lupa a persistência de um homem em quatro décadas de recolha de plantas - “Há quarenta anos anda pela vala real (que já ninguém conhece), destila na caldeira de seu avô plantas salutares”.

A figura humana é glorificada em vários momentos: no poema “Cabo do mar”, com um protagonista poderoso, mas humano - “não era Neptuno, mas o descalço / e poderoso cabo do mar”; na descrição da vida do fazendeiro; a propósito de um amigo, Sebastião da Gama, enaltecendo a sua ligação à Arrábida e traçando-lhe o retrato que a memória conservou - a fala da fraternidade, o sorriso infantil, a boina (“travessura mordaz, / tua exclusiva defesa”), os alunos (“à volta, / atrás do sobretudo, cachorros / que amamentavas”), os livros (“debaixo do braço, farnel / de poesia ambulante”), a água bebida da infusa (“como pedreiro, de um jacto”). 

Também a fragilidade da vida por aqui perpassa - ora pela “patada, / relincho, trigo por ladrão gadanhado”, que foi o choque da morte de Sebastião da Gama, ora pela imagem de um esqueleto em “Caldeira da Tróia”, visto enquanto golfinhos saltavam no Sado: “Não, não é fácil a ruína de um corpo. / Nem plácida a boca escavada / e as órbitas de símio desafiando os vivos.”

Por estes poemas de António Osório passa a sua leitura do mundo, da vida e da memória, numa atenção veneranda por tudo o que o rodeia, quase sinal de agradecimento pela existência e pela harmonia encontrada, na busca da palavra essencial para suportar imagens intensas e sóbrias, construtoras da sensibilidade do equilíbrio. 

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 741, 2021-11-24, p. 2 


quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Bombeiros Voluntários da Moita: quase 90 anos de história



“Fazer bem sem olhar a quem” é ditado popular que se impõe como recomendação. Mas também pode ser lema, tal como acontece nos Bombeiros Voluntários da Moita, que escolheram esta frase para ser gravada no monumento que ali os enaltece desde 1991. Instituição fundada em 1933, teve agora apresentada a sua monografia, Por ti, ponho as mãos no fogo - História dos Bombeiros Voluntários da Moita, assinada por Helena Barros (n. 1962), título que joga com uma expressão bem conhecida que apela à confiança ilimitada.

A obra, apoiada na documentação da corporação (livros de actas e correspondência) e em fontes orais a partir dos bombeiros mais velhos, começa por sensibilizar o leitor para elementos que configuram a pré-história dos bombeiros - o papel das populações antigas perante o deflagrar de um incêndio, a função dos aguadeiros, as primeiras medidas tomadas na prevenção e combate a incêndios (de 1395, com D. João I), o primeiro corpo de homens para os combater (em Lisboa, em 1646), os acontecimentos de 1755, a primeira notícia de morte de combatentes ao fogo (em Lisboa, em 1830), a criação do slogan “Vida por vida” pelo tomarense-montijense Álvaro Valente (1886-1965) no início do século XX.

A organização do livro e da história é depois ligada aos vários quartéis por onde passou a Associação e pela acção desenvolvida em prol de cada uma dessas construções, não esquecendo nomes e figuras locais que foram determinantes para a estabilidade da corporação, muitos deles num tempo longo de dedicação à causa, como foram os casos dos dois mais longevos presidentes da Direcção, Adriano Augusto Flores (1950-1977) e Manuel Oliveira Filipe (2001-2015), ou dos dois mais duradouros comandantes do corpo activo, Joaquim Pelica (1959-1974) e Carlos Picado (1993-2016).

A narrativa vai sendo condimentada com curiosidades (primeira bomba adquirida, primeiro auto pronto-socorro ou primeira mulher a integrar os corpos gerentes, por exemplo) e com histórias por vezes épicas, como a que relata a forma de levar um doente desde a Moita até ao Hospital de S. José no início da corporação: “o paciente era acomodado na maca rodada e transportado por dois ou mais bombeiros até à estação da CP (da Moita) e aí aguardavam o comboio. Maca, doente e bombeiros embarcavam no vagão Jota com destino ao Barreiro. Aí chegado, o doente era levado (ainda na maca de rodas) até ao barco que o transportaria a Lisboa. Saídos do barco, os bombeiros retomavam o transporte braçal da maca e do doente até ao Hospital de S. José.” Intervenções importantes que ficaram na memória foram o salvamento de um homem soterrado num poço de 15 metros (1953), o apoio no desastre ferroviário na estação da Moita (1955) ou o serviço prestado aquando do desabamento de uma bancada com 200 pessoas nas Festas da Boa Viagem (1969).

Parte significativa desta monografia é alimentada com as dificuldades da vida da Associação - de ordem económica, administrativa e logística, sobretudo, ou na angariação e fidelização de associados, verificando-se, frequentemente, que uma novidade introduzida na organização pode ser momento catalisador de adesões, como se passou com a criação do Grupo de Dadores Benévolos de Sangue, da secção desportiva, da fanfarra ou do museu com o nome do quarteleiro Alfredo Picado.

Nos quase 90 anos, “o nome da Associação sempre foi uma referência e um cartão de visita para o município. A sua presença na vida das populações é impagável, prestando os seus valiosos serviços a instituições, agentes económicos e todo o município.” Esta é a imagem que perpassa, justificando o título atribuído à monografia.

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 736, 2021-11-17, p. 5


quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Palavra(s) de Alexandre O’Neill



São do poema “Entrevista”, saído em 1979 no livro Uma saca de orelhas, os versos “Diz-lhe que estás ocupado / a entrevistar-te a ti mesmo / mesmo porque se não / o pões desde já porta / fora estás quilhado vai / espiolhar-te apalpar-te (...)”. Quem assim escrevia era Alexandre O’Neill (1924-1986), poeta vindo do Surrealismo, neto de escritora (Maria O’Neill) e trineto de Carlos O’Neill e de Adelaide Custance, proprietários da Quinta dos Bonecos, em Setúbal, quando Andersen lá esteve (1866).

Neste poema se inspirou Joana Meirim para o título de ‘Diz-lhes que estás ocupado’ - Conversas com Alexandre O’Neill (Tinta-da-China, 2021), dezasseis entrevistas, entre 1944 e 1985, assinadas por nomes como Adelino Gomes, António Mega Ferreira, Baptista-Bastos, Clara Ferreira Alves ou Fernando Assis Pacheco, entre outros.

Assumindo-se, em 1944, como poeta “por tendência própria e por educação”, logo ali dirá: “Desde cedo que leio bons poetas”, princípio que se manteve, como repetiu em 1977 - “um poeta ler outro poeta é muito importante: coloca-nos em confronto com outras experiências.” Da mesma forma, os poetas importantes se mantiveram na sua lista, logo apresentada na primeira entrevista - Pessoa, Nemésio, Torga, por Portugal; Bandeira, Drummond, Cecília Meireles e outros, pelo Brasil. Referências importantes porque a poesia é trabalhosa, como explicava em 1959 - “Na inspiração guedelha-ao-vento e soltura não acredito. Só para filmes e biografias romanceadas. A disposição irresistível para escrever, o rumor anterior ao ritmo, podem chamar-se momentos de inspiração, mas só a atenção contínua ao rumor, o abrir o ouvido para dentro, leva pouco a pouco ao ritmo e do ritmo ao verso.” E, em 1968, a sua identificação como poeta: “Sou parecidíssimo com a minha poesia. (...) Escrevo para registar o que é fugaz. Para deter as coisas. Para registar certos factos. Parece-me que é isto. Escrevo para registar, para fixar, para demorar.”

Poeta bem conhecido, O’Neill era, no entanto, crítico relativamente ao mundo dos escritores, como justificou em 1973: “Isso está directamente relacionado com o meio literário português. É a reacção a certo empolamento que há em muitos escritores. Certa importanticidade sumamente ridícula.”

As entrevistas com Alexandre O’Neill não eram fáceis - Eduardo Guerra Carneiro, em 1973, escrevia no preâmbulo: “Se não foi difícil encontrar o entrevistado, fácil não foi a entrevista. Mas, mesmo aos soluções, a entrevista fez-se. Depois, tesoura de um lado, cola do outro: a montagem. Talvez não seja a melhor, mas foi o que se pôde arranjar.” E, quatro anos depois, seria Francisco Dionísio Domingos a explicar: “É difícil falar com Alexandre O’Neill”, pois “fala como se estivesse a fazer um ou vários poemas, mudando aqui e acolá de tom.”

Pelas conversas aqui apresentadas passam referências ao Surrealismo em Portugal e às suas dissidências; ao tom muito rural do Neo-Realismo, sem ter havido, por exemplo, um romance citadino; à operação exercida pela censura e aos actos de auto-censura; à crítica aos recitadores de poesia que fazem dela “um acto fúnebre” (1983); aos efeitos da abordagem académica da literatura, pois “quando há tese, há cadáver” (1982); aos trocadilhos da sua poesia e à influência na publicidade, área em que trabalhava; a um olhar nem sempre feliz sobre a sociedade e sobre a solidão, apesar de “a descoberta da poesia ser sempre uma coisa extremamente solitária” (1983).

Prolongamento da própria poesia de O’Neill, estas entrevistas são também um testemunho sobre o viver, como, em 1985, ilustrava na última entrevista recolhida: “A vida interessa-me, o que não me interessa é a vidinha. (...) Videirar, ou videirunha. O viveter francês, ou seja, ir vivendo.”

*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 731, 2021-11-10, p. 9.


quarta-feira, 3 de novembro de 2021

Histórias dos avós na memória



Em 7 de Dezembro de 1998, perante a Academia Sueca, José Saramago iniciava o seu discurso por uma evocação: “O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. Às quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos. (...) Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro.”

A intenção de Saramago era falar sobre as personagens da sua ficção, inspiradas em pessoas que conheceu e que trabalhou literariamente. Nessa intervenção, que pode ser lida em Último caderno de Lanzarote (2018), Jerónimo e Josefa são apresentados: “bom carácter”, muito pragmáticos, sábios e... sonhadores - a avó, já viúva, confessou ao neto: “O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer”; o avô, pressentindo a chegada da morte, “foi despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.” Pelos tempos, ficou ainda a sabedoria do avô, superior contador de histórias, alimento da imaginação do neto: “Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo.”

Igual fascínio pelos avós traz José Tolentino Mendonça no seu mais recente livro de poesia, Introdução à pintura rupestre (2021), peregrinação à infância por onde passam os avós e uma poderosa lembrança da avó num texto final, retomado de outro publicado em 2014: “A minha avó analfabeta (...) foi o meu bosque, a minha viagem, o meu livro. E também um primordial amor.” Já noutra obra, O que é amar um país - O poder da esperança (2020), o poeta madeirense reconhecia: “Quando tomei posse como arquivista e bibliotecário da Santa Sé, uma das referências que quis evocar foi a da minha avó materna, que era uma mulher analfabeta, mas que foi para mim a primeira biblioteca. Em criança, eu pensava que as histórias que contava, ou as cantilenas com que entretinha os netos, eram coisas de circunstância, inventadas por ela. Depois descobri que faziam parte do romanceiro oral da tradição portuguesa. E que afinal aquela avó analfabeta estava, sem que nós o soubéssemos, e provavelmente sem que ela própria o soubesse, a mediar o nosso primeiro encontro com os tesouros da cultura.”

As imagens que dos avós se conservam são habitualmente felizes e nem sempre fáceis de fazer passar. Rita Ferro sentiu-o quando pensou escrever a biografia do avô, António Ferro, figura pública. Depois de várias tentativas e de confrontos com opiniões sobre o seu avô, decidiu adiar o projecto, como refere no diário Veneza pode esperar (2014): “Penoso, pois, um trabalho sobre o meu avô de uma perspectiva consanguínea, particular e desalinhada. (...) Tenho uma ideia íntima de António Ferro, precisa como um retrato e pessoal como uma moldura. É essa e não outra que um dia gostaria de escrever.”

A imagem dos avós é algo de grandioso, alimentada graças às histórias transmitidas, ao saber, ao carácter e a uma visão positiva da vida.  Daí que a personagem de António Canteiro, no romance Vamos então falar de árvores (2020), diga: “Nós, os netos, somos feitos a partir da massa de tender dos avós, a partir das histórias que nos contam e ficam na memória para sempre.”

* J.R.R. O Setubalense: nº 726, 2021-11-03, p. 9.