São do poema “Entrevista”, saído em 1979 no livro Uma saca de orelhas, os versos “Diz-lhe que estás ocupado / a entrevistar-te a ti mesmo / mesmo porque se não / o pões desde já porta / fora estás quilhado vai / espiolhar-te apalpar-te (...)”. Quem assim escrevia era Alexandre O’Neill (1924-1986), poeta vindo do Surrealismo, neto de escritora (Maria O’Neill) e trineto de Carlos O’Neill e de Adelaide Custance, proprietários da Quinta dos Bonecos, em Setúbal, quando Andersen lá esteve (1866).
Neste poema se inspirou Joana Meirim para o título de ‘Diz-lhes que estás ocupado’ - Conversas com Alexandre O’Neill (Tinta-da-China, 2021), dezasseis entrevistas, entre 1944 e 1985, assinadas por nomes como Adelino Gomes, António Mega Ferreira, Baptista-Bastos, Clara Ferreira Alves ou Fernando Assis Pacheco, entre outros.
Assumindo-se, em 1944, como poeta “por tendência própria e por educação”, logo ali dirá: “Desde cedo que leio bons poetas”, princípio que se manteve, como repetiu em 1977 - “um poeta ler outro poeta é muito importante: coloca-nos em confronto com outras experiências.” Da mesma forma, os poetas importantes se mantiveram na sua lista, logo apresentada na primeira entrevista - Pessoa, Nemésio, Torga, por Portugal; Bandeira, Drummond, Cecília Meireles e outros, pelo Brasil. Referências importantes porque a poesia é trabalhosa, como explicava em 1959 - “Na inspiração guedelha-ao-vento e soltura não acredito. Só para filmes e biografias romanceadas. A disposição irresistível para escrever, o rumor anterior ao ritmo, podem chamar-se momentos de inspiração, mas só a atenção contínua ao rumor, o abrir o ouvido para dentro, leva pouco a pouco ao ritmo e do ritmo ao verso.” E, em 1968, a sua identificação como poeta: “Sou parecidíssimo com a minha poesia. (...) Escrevo para registar o que é fugaz. Para deter as coisas. Para registar certos factos. Parece-me que é isto. Escrevo para registar, para fixar, para demorar.”
Poeta bem conhecido, O’Neill era, no entanto, crítico relativamente ao mundo dos escritores, como justificou em 1973: “Isso está directamente relacionado com o meio literário português. É a reacção a certo empolamento que há em muitos escritores. Certa importanticidade sumamente ridícula.”
As entrevistas com Alexandre O’Neill não eram fáceis - Eduardo Guerra Carneiro, em 1973, escrevia no preâmbulo: “Se não foi difícil encontrar o entrevistado, fácil não foi a entrevista. Mas, mesmo aos soluções, a entrevista fez-se. Depois, tesoura de um lado, cola do outro: a montagem. Talvez não seja a melhor, mas foi o que se pôde arranjar.” E, quatro anos depois, seria Francisco Dionísio Domingos a explicar: “É difícil falar com Alexandre O’Neill”, pois “fala como se estivesse a fazer um ou vários poemas, mudando aqui e acolá de tom.”
Pelas conversas aqui apresentadas passam referências ao Surrealismo em Portugal e às suas dissidências; ao tom muito rural do Neo-Realismo, sem ter havido, por exemplo, um romance citadino; à operação exercida pela censura e aos actos de auto-censura; à crítica aos recitadores de poesia que fazem dela “um acto fúnebre” (1983); aos efeitos da abordagem académica da literatura, pois “quando há tese, há cadáver” (1982); aos trocadilhos da sua poesia e à influência na publicidade, área em que trabalhava; a um olhar nem sempre feliz sobre a sociedade e sobre a solidão, apesar de “a descoberta da poesia ser sempre uma coisa extremamente solitária” (1983).
Prolongamento da própria poesia de O’Neill, estas entrevistas são também um testemunho sobre o viver, como, em 1985, ilustrava na última entrevista recolhida: “A vida interessa-me, o que não me interessa é a vidinha. (...) Videirar, ou videirunha. O viveter francês, ou seja, ir vivendo.”
*J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 731, 2021-11-10, p. 9.
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