sábado, 31 de julho de 2021

António Rodrigues Correia: Uma vida com as pessoas


Conheci António Correia em 1988. Ficámos amigos a partir daí. No ano lectivo seguinte, fui leccionar para a Escola Secundária de Palmela, onde fomos colegas. Cultivámos sempre a amizade: em horas boas e menos boas. Há tempos, o director de O Setubalense, Francisco Rito, conversou comigo sobre nomes para serem entrevistados para o número do 166º aniversário daquele título regional. Logo me lembrei ao António Correia pela sua experiência, pelas suas histórias e porque é uma referência (não só para mim). Convidou-me Francisco Rito para ser eu a entrevistar. Aceitei com gosto e com receio - é difícil seleccionar quando nos vemos dentro da história...
Numa destas tardes, houve uma conversa de 2 horas entre mim e António Correia. Forte em memórias e em histórias. Um trajecto invulgar, com comoção à mistura. Ouvi a gravação duas vezes e redigi o retrato possível, tendo em conta as limitações de espaço no jornal - mesmo assim, Francisco Rito permitiu que a peça jornalística excedesse em mais um terço os limites. Fico com pena de não ter contado tudo, de ter deixado na gravação algumas interessantes histórias. Mas teve de ser.
Aqui vai o que saiu n'O Setubalense de ontem - a edição que assinalou os 166 anos do título (nº 675, 2021-07-30, pp. 158-159). (clicar sobre as imagens para leitura)


sexta-feira, 30 de julho de 2021

Memória: Pedro Tamen (1934-2021)


 

Por meados de Maio de 2007, conheci Pedro Tamen. Foi numa sessão intitulada “Encontro com Pedro Tamen”, realizada em Palmela (para onde o poeta viera residir), na Biblioteca Municipal,  que a minha amiga Isolina Jarro me convidou para apresentar.

Conhecia alguns dos títulos de Tamen, fui ler os outros. E a sessão foi interessante, numa relação entre leitura de poemas e considerações, jogos de palavras e episódios biográficos, conversa e algum humor.

Fez-me seu amigo e, de cada vez que saía um livro seu, sentia o prazer de o receber com palavras simpáticas.

Encontrámo-nos algumas (poucas) vezes. Fui sabendo dos seus prémios pelas notícias, fui sabendo do seu estado de saúde à distância.

Partiu ontem. E fica um vazio que ultrapassamos ao pegar nos livros e ao ler os seus poemas. Obrigado, Pedro Tamen!


Do livro Horácio e Coriáceo, de 1981, a “Fábula Redonda”:

 

                  Um bando de pombas voa

                  algo de banda, mas pumba,

                  um caçador que as chumba

                  abate a pomba de proa.

 

                  Furtivo; mas apregoa

                  a proeza que o enfuna.

                  Outra pomba, boa aluna

                  de sua mestra falcoa,

 

                  procura, de asa fincada

                  no bico, com que redima

                  tanta justiça ultrajada:

 

                  do caçador se aproxima,

                  por ira e vento levada,

                  e pumba, caga-lhe em cima.


quarta-feira, 28 de julho de 2021

Carlos Rates, o “incorrigível” de Setúbal


 

Quase a fazer 24 anos (seria dali a cerca de três semanas), um despacho do Major-General da Armada, de 26 de Janeiro de 1903, considerou-o “incorrigível, devendo ser transferido como soldado para o exército do ultramar”, consequência da sua segunda deserção da Marinha. Uma década depois, em 18 de Dezembro de 1913, por ter realizado uma conferência na Terrugem sem autorização do Governo Civil e resistido ao regedor local, dizia-lhe o juiz, no Tribunal de Elvas: “Eu tenho de aconselhá-lo a mudar de vida. (...) A verdade é que o senhor tem de arrepiar caminho, pois que assim prepara para si a vida do cárcere.” O homem em causa era o setubalense Carlos Rates (1879-1961), biografado por Pedro Prostes da Fonseca na obra Incorrigível - A história desconhecida de Carlos Rates (Ponto de Fuga, 2021).

A surpresa sobre a personalidade desta história é logo acentuada no subtítulo - “De primeiro Secretário-Geral do PCP a apoiante de Salazar” -, assim como no início do prefácio assinado por Fernando Rosas, que diz estarmos perante “o percurso político, social e até de vida privada do mais emblemático dos trânsfugas da história do movimento operário português no primeiro quartel do século XX”.

Em duzentas páginas, acompanhamos o trajecto de Rates: ardina, operário conserveiro, marinheiro, sindicalista, jornalista, autor de peças de teatro, de romances e de ensaios sobre política (defendendo a ditadura do proletariado), co-fundador e primeiro Secretário-Geral do Partido Comunista Português, apaixonado por duas irmãs, colaborador do governo sidonista e da União Nacional, preso várias vezes e deportado, conhecedor do país pela causa sindical, expulso do partido que ajudou a criar (por colaborar com a “imprensa burguesa”), personagem de um romance autobiográfico escrito pela filha, até falecer esquecido, nem sendo motivo de notícia nos vários jornais em que participou.

A intervenção pública e política de Carlos Rates é acompanhada de perto por Prostes da Fonseca, de muito valendo os artigos que o biografado foi publicando nos vários jornais como O GerminalA BatalhaBandeira VermelhaO SindicalistaO SéculoA PátriaO IntransigenteO Comunista ou o funchalense O Jornal. Simultaneamente, revê-se a história do movimento operário e da política portuguesa, sua inconstância e clivagem - bastará pensar-se em toda a intervenção operária no final da monarquia ou no afastamento entre o operariado e o regime republicano (ambos os momentos com incidência fortemente sentida em Setúbal) ou na permanente falta de consensos governativos (até Dezembro de 1925, foram 46 os governos republicanos).

Descontente com os partidos, que responsabiliza pela crise geral vivida, Carlos Rates escreverá para o jornal Diário da Manhã, em Julho de 1931, solicitando filiação na União Nacional, embora com algum pendor crítico e defendendo que “a ditadura não deve ceder o campo sem lançar as bases de uma democracia estável”. Sonhava Rates com a transitoriedade da ditadura, que prepararia o terreno para a vivência democrática...

A vida de Carlos Rates a partir da década de 1930 surge sob o signo do desencanto, refugiando-se na família (vivendo com a filha Celeste e regularizando a sua situação com Aura, após o falecimento de Maria da Conceição, mãe de Celeste) e na escrita. As últimas três décadas da sua vida são apresentadas a partir do romance autobiográfico Grades Vivas, escrito pela filha, Celeste da Conceição (1954).

A vida do “Incorrigível” preenche os caminhos da contradição, tal como se refere no fecho do livro: um percurso “complexo, contraditório, tão perdido entre as luzes e sombras dos seus labirintos interiores como entre as que iluminam ou obscurecem o grande palco da história.” 

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 673, 2021-07-28, p. 5.


quarta-feira, 21 de julho de 2021

Anabela Coelho e Fernando Fitas: Prémios Sebastião da Gama e Bocage 2020



Anabela Coelho (n.1969) e Fernando Fitas (n. 1957) venceram as edições de 2020 do Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama e do Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage, respectivamente, com trabalhos agora publicados - Distância de mim para mim (Associação Cultural Sebastião da Gama) e O vidro desabitado (LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão).

Fazendo justiça à interiorização que o título sugere, o livro de Anabela Coelho abre com epígrafe de Vergílio Ferreira - “De ti é apenas o silêncio... Pensa-o ardentemente, profundamente, absolutamente.” Logo no poema inicial surgem algumas das palavras-chave que vão determinar a leitura - “voar”, “luz”, “flor” -, a que se juntará “sonho”, assim se compondo o quarteto imagético decisivo desta escrita, fazendo “florir um poema” que, depois, é visto a “seguir o rasto das estrelas”. Qualquer uma das quatro palavras vai tendo substitutos ao longo do livro, numa relação de coerência lexical - “asas”, “anjos”, “pássaros”; “sol”, “estrelas”, “lume”, “iluminar”; “rosas”, “girassol”, “magnólia”, “papoilas”, “tulipas”. Já o “sonho” corre em linguagem predominantemente metafórica, como “adormecer”, “vento”, ou em imagens como “água corrente”, “labaredas de azul”.

A escrita prende-se a locais, objectos, momentos, gestos, sempre percepcionados na primeira pessoa - “encostei-me ao silêncio / e olhei o dia num sudário de luz” - e o leitor assiste à construção de um mundo dominado pelo imaginário, por vezes através de momentos de transfiguração - “Escrevo as rosas e é primavera / e já as asas e as pétalas / na doação infinita dos espaços / espalham cores e perfumes” ou “Inventemos um mar, um mar imenso / com o mesmo azul, o último azul / (...) / igual ao que fez nascer Vénus”.

Em O vidro desabitado, Fernando Fitas parte também de uma epígrafe, devida a Al berto: “ergue-se uma cidade de melancolia na incerteza dos punhos e nela nos ferimos”. Os vários textos constituem um longo poema em que o leitor se confronta com a pandemia e com as marcas de refúgio e de afastamento que a caracterizam, constituindo boa oportunidade para o poeta se encontrar com a memória e com a esperança, preferindo o verso longo, mais consentâneo com a demora das imagens.

O presente, vivido sob as marcas da catástrofe, é construído com imagens fortes de dor - “Morte ignóbil esta, que mata os indefesos sem alguém que os lembre, / (...) / que o tempo não consome num forno crematório / ainda que os seus nomes tenham perdido as sílabas, as vogais, a alegria / e sejam simplesmente números frios e tristes.” Este tempo de silêncio em tudo se opõe a outros envolvimentos que o poeta vai memorando, que foram de esperança - “Vivi a epidémica festa dos abraços, o tempo inebriante dos sorrisos / espontâneos, esse momento único em que o erguer dos punhos coloria avenidas”.

Alguns textos recorrem à primeira pessoa do plural, por vezes com pendor exortativo e sentencioso - “o amanhã é apenas aquilo que não vemos, ou se quiserdes, / o lugar onde um dia iremos construir nossa nova morada.” A pandemia, privação de liberdade, é olhada pela janela, metáfora da trincheira, miradouro para a esperança do recomeço - “lugar onde espero que chegue a hora exacta de levantar o braço, / erguer de novo o punho e entoar a Grândola, a plenos pulmões, / como um rio que transborda”.

Anabela Coelho e Fernando Fitas, que já obtiveram diversos prémios literários, tornam-se assim oleiros de imagens sobre o mundo que nos faz.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 668, 2021-07-21, p. 9.


quarta-feira, 14 de julho de 2021

Descobrir espaços religiosos em Setúbal



Pertence a Maria das Dores Meira, presidente da Câmara de Setúbal, a primeira justificação: “Contar a história das igrejas, capelas e ermidas do concelho de Setúbal é, acima de tudo, relatar a vida dos homens e mulheres que edificaram, ao longo de muitos séculos, a grande comunidade que somos hoje.” O mesmo respeito pelo valor humano surge nas palavras de D. José Ornelas Carvalho, bispo de Setúbal: “Conhecer, visitar e usufruir do nosso património histórico é um ato de gratidão para com aqueles que nos precederam, de afirmação da nossa identidade histórica, cultural e religiosa e uma forma de afirmar a vontade de futuro, não para copiar, mas para dar cunho próprio ao novo que criamos.” Os dois desafios abrem o livro Património religioso de Setúbal, publicado recentemente pela Câmara Municipal de Setúbal, com recolha informativa de Horácio Pena e fotografia de José Luís Costa.

Ao longo de uma centena de páginas, em que não falta uma bibliografia do essencial, tornamo-nos visitantes de 33 espaços (22 em Setúbal, 11 em Azeitão), circulando por igrejas (8), capelas (11), conventos (8), ermidas (5) e um recolhimento, pontos de descoberta de património e de histórias. Que o propósito desta publicação está virado para o visitante torna-se evidente pela informação assente apenas sobre o primordial das construções, apresentada em português, francês e inglês, constituindo convite para a procura (facilitada por inclusão de moradas e de mapas de localização) e para a descoberta pessoal, com o apoio da fotografia que nos apresenta os exteriores dos edifícios, a profundidade de alguns interiores e, por vezes, o contorno de pormenores.

Os espaços assinalados permitem encontrar momentos da história cruzada da região e do país (Convento de Jesus), do envolvimento social (o papel dos pescadores e das confrarias), da presença de ordens religiosas diversas (franciscanos, jesuítas, carmelitas, dominicanos, agostinhos), estéticas de época (manuelino, na igreja de S. Julião ou nos Conventos de Jesus e de S. João, ou barroco, na capela da Fortaleza de S. Filipe), referências de decoração (azulejo, talha, imagens) e lendas (igreja de Nossa Senhora da Anunciada ou ermida da Memória). De fora não fica a protecção invocada quanto à defesa dos inimigos (capela de Nossa Senhora da Conceição) ou das profissões (capela da Casa do Corpo Santo, ligada aos pescadores), como não ficam as vicissitudes e alterações funcionais por que passaram algumas construções - o Convento de Nossa Senhora da Boa Hora, que foi liceu, tribunal e espaço da polícia; o Convento de São Domingos, que albergou hospital militar e quartel e teve a quinta transformada em cemitério público; o Convento de S. João, cujo claustro serviu para praça de touros; o Convento de Nossa Senhora dos Anjos, que foi quartel militar. As histórias destas construções permitem também o encontro com personagens da história como D. João II e Boitaca (Convento de Jesus), Frei António das Chagas (Convento de Nossa Senhora dos Anjos), Frei António da Visitação (Convento de Nossa Senhora do Carmo) ou o jesuíta Gabriel Malagrida (Recolhimento de Nossa Senhora da Saúde). Há ainda aspectos curiosos como as colunas “torsade” ou o ensaio da igreja-salão (Convento de Jesus), a talha nunca dourada (ermida de S. Marcos), a devoção passada para o Brasil (Senhor do Bonfim) ou a ermida construída para proteger um cruzeiro gótico (Nossa Senhora das Necessidades).

Estamos perante um livro acessível, que surpreende pela quantidade de construções que nos apresenta, e prático, que contém o essencial para que nos tornemos visitantes do nosso património, visando conhecê-lo e valorizá-lo pelo que de importante nos traz até ao presente.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 663, 2021-07-14, p. 9.


quarta-feira, 7 de julho de 2021

Matilde Rosa Araújo entre a verdade e a redenção (3)



O conto foi a tipologia literária que Matilde Rosa Araújo preferiu para o seu percurso de escritora, marcando todo o seu trajecto literário, opção justificada desde cedo: em 18 de Julho de 1944, Sebastião da Gama era o destinatário de uma carta de Matilde, que incluía alguns poemas anunciados como partes integrantes de um futuro livro, “Mar Alto” (que não viria a ser publicado), em que a preferência pelas histórias era registada - “Creio bem que o Mar Alto há-de ficar sempre numa gaveta à espera de maré. Prefiro publicar novelas que são menos eu. Tenho medo de que digam mal do mar alto porque dizem mal de mim.” E, uns meses depois, em Março de 1945, o poeta da Arrábida recebia nova carta, acompanhada de páginas do diário de Matilde, que proclamava, em 24 desse mês: “Eu vou fazer um conto quando tudo grita poesia. Mas a poesia não conta, fala sem dizer. E o conto conta, diz. (...) Eu tenho que dizer.”
Depois de se ter estreado com A Garrana em 1943, Matilde Rosa Araújo foi publicando contos em revistas diversas. Pela Páscoa de 1947, publicava Estrada sem Nome (Portugália), reunindo vários deles, depois de uma hesitação entre a conhecida editora da capital e a Coimbra Editora. Por todos passam vidas, num desejo grande de as contar, povoadas por crianças muitas vezes, mas sobretudo por personagens femininas - a solidão de uma professora (“Raquel, Raquel, Raquel”), o ciúme a atiçar o contrabandista e a faina dura de uma mulher que trabalhava para alimentar sete filhos de sete pais (“Papoila vermelha”), uma história de amor inventada entre solidão (“Catarina”), a viuvez de uma mulher que vira “barco sem vela” (“O marido que Deus tem”), a angústia perante o silêncio (“Atlântico”), a mistura dos sentidos e dos sentimentos (“Sala de espera”), a consciência do crescimento a partir do olhar sobre o corpo (“A menina das pernas grandes”), a ocupação do tempo e as distâncias sociais (“O aquário”).
A mais extensa narrativa assume o título do livro e surge pela voz de um narrador masculino, Manuel, em catorze partes. História contada em jeito de memórias ou de autobiografia, o relato de Nelo é uma entrada pela sobrevivência e pela descoberta do amor, redigida num momento de doença vivida em seis meses de hospital, forma que a personagem assume para se despedir de histórias do seu passado numa aldeia da zona monçanense e para encetar nova vivência do amor na capital, seduzido pela insistência da enfermeira que lhe vai lendo esses escritos um pouco às escondidas.
As vidas que perpassam por estes contos são marcadas pelo sofrimento e pela tristeza, pela doença e pelas dificuldades da vida, pela desprotecção e pela miséria, pelo trabalho infantil e pela solidão, numa permanente insatisfação medida na distância que vai entre a realidade e o sonho, muitas vezes com refúgio num imaginário salvífico, conjunto favorecedor de retratos de denúncia, intensos na estética neo-realista.
A aceitação do destino é bem descrita por Nelo: “A gente não sabe como as coisas começam, não. Primeiro são as folhas que caíram, a fazer remoinho. Depois sem mais começa o vento que até arranca as árvores. E nós somos o canavial que vai ficando moído sem se quebrar...” Quando Matilde Rosa Araújo dizia, na entrevista ao Século Ilustrado, que a literatura seria “verdade e redenção”, estaria, com certeza, a defender esta personagem, que, para tentar dar a volta ao destino, optou pela escrita para se libertar, para encontrar a redenção...
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 658, 2021-07-07, p. 9.