quarta-feira, 21 de julho de 2021

Anabela Coelho e Fernando Fitas: Prémios Sebastião da Gama e Bocage 2020



Anabela Coelho (n.1969) e Fernando Fitas (n. 1957) venceram as edições de 2020 do Prémio Nacional de Poesia Sebastião da Gama e do Prémio Literário Manuel Maria Barbosa du Bocage, respectivamente, com trabalhos agora publicados - Distância de mim para mim (Associação Cultural Sebastião da Gama) e O vidro desabitado (LASA - Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão).

Fazendo justiça à interiorização que o título sugere, o livro de Anabela Coelho abre com epígrafe de Vergílio Ferreira - “De ti é apenas o silêncio... Pensa-o ardentemente, profundamente, absolutamente.” Logo no poema inicial surgem algumas das palavras-chave que vão determinar a leitura - “voar”, “luz”, “flor” -, a que se juntará “sonho”, assim se compondo o quarteto imagético decisivo desta escrita, fazendo “florir um poema” que, depois, é visto a “seguir o rasto das estrelas”. Qualquer uma das quatro palavras vai tendo substitutos ao longo do livro, numa relação de coerência lexical - “asas”, “anjos”, “pássaros”; “sol”, “estrelas”, “lume”, “iluminar”; “rosas”, “girassol”, “magnólia”, “papoilas”, “tulipas”. Já o “sonho” corre em linguagem predominantemente metafórica, como “adormecer”, “vento”, ou em imagens como “água corrente”, “labaredas de azul”.

A escrita prende-se a locais, objectos, momentos, gestos, sempre percepcionados na primeira pessoa - “encostei-me ao silêncio / e olhei o dia num sudário de luz” - e o leitor assiste à construção de um mundo dominado pelo imaginário, por vezes através de momentos de transfiguração - “Escrevo as rosas e é primavera / e já as asas e as pétalas / na doação infinita dos espaços / espalham cores e perfumes” ou “Inventemos um mar, um mar imenso / com o mesmo azul, o último azul / (...) / igual ao que fez nascer Vénus”.

Em O vidro desabitado, Fernando Fitas parte também de uma epígrafe, devida a Al berto: “ergue-se uma cidade de melancolia na incerteza dos punhos e nela nos ferimos”. Os vários textos constituem um longo poema em que o leitor se confronta com a pandemia e com as marcas de refúgio e de afastamento que a caracterizam, constituindo boa oportunidade para o poeta se encontrar com a memória e com a esperança, preferindo o verso longo, mais consentâneo com a demora das imagens.

O presente, vivido sob as marcas da catástrofe, é construído com imagens fortes de dor - “Morte ignóbil esta, que mata os indefesos sem alguém que os lembre, / (...) / que o tempo não consome num forno crematório / ainda que os seus nomes tenham perdido as sílabas, as vogais, a alegria / e sejam simplesmente números frios e tristes.” Este tempo de silêncio em tudo se opõe a outros envolvimentos que o poeta vai memorando, que foram de esperança - “Vivi a epidémica festa dos abraços, o tempo inebriante dos sorrisos / espontâneos, esse momento único em que o erguer dos punhos coloria avenidas”.

Alguns textos recorrem à primeira pessoa do plural, por vezes com pendor exortativo e sentencioso - “o amanhã é apenas aquilo que não vemos, ou se quiserdes, / o lugar onde um dia iremos construir nossa nova morada.” A pandemia, privação de liberdade, é olhada pela janela, metáfora da trincheira, miradouro para a esperança do recomeço - “lugar onde espero que chegue a hora exacta de levantar o braço, / erguer de novo o punho e entoar a Grândola, a plenos pulmões, / como um rio que transborda”.

Anabela Coelho e Fernando Fitas, que já obtiveram diversos prémios literários, tornam-se assim oleiros de imagens sobre o mundo que nos faz.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 668, 2021-07-21, p. 9.


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