Na sua obra, Romeu Correia (1917-1996) não deixou de se preocupar com Bocage, tornando-o tema e personagem central de uma peça, usando como título o nome do poeta (Lisboa: Editora Ulisseia, 1965). Bocage é, de resto, personalidade que se tem prestado a ser personagem de vários textos dramáticos, assinados por Herlander Machado (1966), Luzia Maria Martins (1967), José Sinde Filipe (1974), Fernando Cardoso (1999) ou Fernando Gomes (2005).
A obra de Romeu Correia (que mereceu segunda edição em 1978), aparecida quando passava o segundo centenário do nascimento de Bocage, só estreou em palco cinco anos depois, em iniciativa do Grupo de Teatro do Instituto Comercial do Porto, no Teatro Sá da Bandeira. O leitor ainda hoje pode ver um vigor moderno pela interpretação da obra e do percurso bocagiano, pela estrutura da peça, com muitas intromissões do autor no que poderiam ser recomendações de encenação, pela vontade de levar uma época e um país para dentro de um palco. Nesta peça representa-se também o teatro, com figuras da arte dramática como Arlequim, Pierrot, o Histrião, os Saltimbancos ou as Máscaras (sugerindo o papel do coro), numa espécie de “espectáculo de feira”, uma “representação dentro de outra representação”, como o pretendeu o autor.
Bocage foi apresentado como “crónica dramática e grotesca” para destacar, mais do que a imagem que do poeta ficou, o percurso que ele teve e as circunstâncias que o fizeram. A abrir a obra, ficou a observação: “Inconstante e volúvel como o momento histórico que testemunhou, o poeta, entrando na Lenda como um incorrigível trocista e desfrutador de prazeres, confunde-se com a agonia do próprio século, o XVIII, – e os anseios anónimos, a irreverência e o escárnio de um mundo novo que nasce…”
A história começa com a evocação de uma anedota protagonizada por um Bocage mítico, lembrada por “uma voz”, ainda com o pano descido, ao mesmo tempo que no palco se vai delineando a personagem José Pedro da Silva (das Luminárias), amigo e protector do poeta (que, em cena, zela pela sua memória, insurgindo-se contra o anedotário), e conclui com a morte do mesmo Bocage, numa encenação que o projecta para a memória, tal como é acentuado na didascália que orienta a encenação: “Súbito, mil mãos caem sobre o leito, rasgam o lençol e trucidam o morto, dividindo-o entre si, como relíquia. Este com um pé, aquele com um braço, aqueloutro com a cabeça, etc., e somem-se, felizes, no horizonte.”
Pela história passam momentos vários da vida e do tempo do poeta sadino – a viagem à Índia, o balão de Lunardi, a boémia, o café “Nicola”, a tertúlia, a censura, a prisão, a reeducação no mosteiro, as relações de amizade (Morgado de Assentis, Bingre, Santos Silva, os padres do mosteiro) e de desavença (Pina Manique, José Agostinho de Macedo) –, num trajecto em que a sua figura se vai impondo para, depois, começar a declinar, ao mesmo tempo que o ambiente vai ficando impregnado da poesia bocagiana.
A intenção desta peça passa por corrigir um pouco a memória que de Bocage se fez. Argumentava o Histrião, ao falar sobre o teatro, que “um homem sobre as tábuas dum palco é rei, é tudo o que ele sonha ser (…), é imperador, sendo um pobre de Cristo”, talvez um pouco como foi o trajecto de Bocage no palco da vida, apresentado como valor seguro e superior.