quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O Bocage que Romeu Correia legou

 


Na sua obra, Romeu Correia (1917-1996) não deixou de se preocupar com Bocage, tornando-o tema e personagem central de uma peça, usando como título o nome do poeta (Lisboa: Editora Ulisseia, 1965). Bocage é, de resto, personalidade que se tem prestado a ser personagem de vários textos dramáticos, assinados por Herlander Machado (1966), Luzia Maria Martins (1967), José Sinde Filipe (1974), Fernando Cardoso (1999) ou Fernando Gomes (2005).

A obra de Romeu Correia (que mereceu segunda edição em 1978), aparecida quando passava o segundo centenário do nascimento de Bocage, só estreou em palco cinco anos depois, em iniciativa do Grupo de Teatro do Instituto Comercial do Porto, no Teatro Sá da Bandeira. O leitor ainda hoje pode ver um vigor moderno pela interpretação da obra e do percurso bocagiano, pela estrutura da peça, com muitas intromissões do autor no que poderiam ser recomendações de encenação, pela vontade de levar uma época e um país para dentro de um palco. Nesta peça representa-se também o teatro, com figuras da arte dramática como Arlequim, Pierrot, o Histrião, os Saltimbancos ou as Máscaras (sugerindo o papel do coro), numa espécie de “espectáculo de feira”, uma “representação dentro de outra representação”, como o pretendeu o autor.

Bocage foi apresentado como “crónica dramática e grotesca” para destacar, mais do que a imagem que do poeta ficou, o percurso que ele teve e as circunstâncias que o fizeram. A abrir a obra, ficou a observação: “Inconstante e volúvel como o momento histórico que testemunhou, o poeta, entrando na Lenda como um incorrigível trocista e desfrutador de prazeres, confunde-se com a agonia do próprio século, o XVIII, – e os anseios anónimos, a irreverência e o escárnio de um mundo novo que nasce…”

A história começa com a evocação de uma anedota protagonizada por um Bocage mítico, lembrada por “uma voz”, ainda com o pano descido, ao mesmo tempo que no palco se vai delineando a personagem José Pedro da Silva (das Luminárias), amigo e protector do poeta (que, em cena, zela pela sua memória, insurgindo-se contra o anedotário), e conclui com a morte do mesmo Bocage, numa encenação que o projecta para a memória, tal como é acentuado na didascália que orienta a encenação: “Súbito, mil mãos caem sobre o leito, rasgam o lençol e trucidam o morto, dividindo-o entre si, como relíquia. Este com um pé, aquele com um braço, aqueloutro com a cabeça, etc., e somem-se, felizes, no horizonte.”

Pela história passam momentos vários da vida e do tempo do poeta sadino – a viagem à Índia, o balão de Lunardi, a boémia, o café “Nicola”, a tertúlia, a censura, a prisão, a reeducação no mosteiro, as relações de amizade (Morgado de Assentis, Bingre, Santos Silva, os padres do mosteiro) e de desavença (Pina Manique, José Agostinho de Macedo) –, num trajecto em que a sua figura se vai impondo para, depois, começar a declinar, ao mesmo tempo que o ambiente vai ficando impregnado da poesia bocagiana.

A intenção desta peça passa por corrigir um pouco a memória que de Bocage se fez. Argumentava o Histrião, ao falar sobre o teatro, que “um homem sobre as tábuas dum palco é rei, é tudo o que ele sonha ser (…), é imperador, sendo um pobre de Cristo”, talvez um pouco como foi o trajecto de Bocage no palco da vida, apresentado como valor seguro e superior.

 * J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 466, 2020-09-16, p. 3


sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Naquele tempo: contar as dores da pandemia na cidade

 


O livro fala-nos através de fotografias e de legendas, que começam, quase todas, pela expressão “naquele tempo”, à semelhança do início do evangelho nas cerimónias religiosas, dando a ideia de recuo na cronologia, de súbita transição para um passado, de rememoração de algo. No entanto, Cidade suspensa - Lisboa em estado de emergência, de Miguel Valle de Figueiredo (fotografia) e Bruno Vieira Amaral (texto), é bem actual, pois recolhe fotografias da cidade feitas entre Março e Abril, época de recolhimento obrigatório devido à pandemia.

Editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (2020), pelas suas fotografias, vemos a cidade que não vimos (estava-se em situação de emergência), a cidade distante do seu fundamental elemento, as pessoas, num olhar de falso vazio, pois a verdade é que a cidade albergava essas mesmas pessoas. Pelo texto, seguimos pistas de leitura e de exploração que nos acordam, recordam, relembram, colocando já o tempo num passado, assim reagindo a esse estado de suspensão que o título chama.

Foi Italo Calvino quem escreveu, nessa obra magnífica que é As cidades invisíveis (1972), que “todas as cidades recebem a sua forma do deserto a que se opõem.” E é esta ideia que Bruno Vieira Amaral assinala, ao dizer que “uma cidade vazia é um deserto com prédios”. Isto é: a cidade adquire sentido com as pessoas que fazem com que ela mexa, viva. Se estiver vazia, a cidade torna-se desconhecida, fantasmagórica, assustadora, desumana.

Ainda à maneira do evangelho, o livro começa: “No princípio, eram os Números. Casos confirmados, casos suspeitos, óbitos, recuperados”, colunas de uma estatística que nos habituámos a ouvir desde Março, mês que deveria ser o de anúncio da Primavera e da alegria rejuvenescedora... E vemos a transformação nas fotografias, evidenciando uma outra existência: parques infantis fechados; estações de transportes vazias; esplanadas encerradas; vias rápidas e avenidas silenciadas pela ausência de tráfego; ruas, praças e bairros sem gente; estátuas sem quem as admire; aviões estacionados... Um tempo sem pressa e sem destino. Simultaneamente, nos poucos rostos que aparecem, é a inovação da máscara (ocultadora de expressões, de iras, de sorrisos), associada a pessoas sós ou a grupos muito restritos, apercebendo-se o leitor de que as varandas, em contrapartida, passam a ser espaços de respiração dos albergados na cidade, pontos de leitura da vida e do mundo.

O livro termina com uma ideia de persistência de uma normalidade condicionada pelas circunstâncias: assiste o leitor a momentos de solidariedade e de partilha e à celebração pascal na Sé de Lisboa ou às orações do Ramadão na Mesquita de Lisboa sem que haja fiéis, enchendo-se esses espaços com a presença do cardeal-patriarca ou do imã, num gesto de aproximação e de permanência em tempos de confinamento. E, depois, a fechar, uma fotografia que também nos ficará na memória: a manifestação do Primeiro de Maio, em disposição matemática, como se estivéssemos a ser preparados para um lento e progressivo fim da suspensão.

As imagens marcam-nos por tudo isto e por aquilo que pudemos viver, ainda que sem termos visto as entranhas da cidade porque dela nos ausentámos. E há ainda frases que batem como badaladas: “a grande história da pandemia é a de tudo o que não aconteceu” ou “naquele tempo, cada rua era um tratado de silêncio”.

Cidade suspensa é um livro intenso, que servirá para mostrar e contar a experiência de um tempo que a História haverá de registar.

 * JRR. "500 Palavras". O Setubalense: nº 461, 2020-09-09, p 10.


quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Viriato Soromenho-Marques: Entre a normalidade e a salvação do planeta



Vale a pena ler a entrevista que Sílvia Júlio fez a Viriato Soromenho-Marques, publicada na edição do jornal Tempo Livre (nº 25, 2020-09, pp. 12-13), editado pelo INATEL (e disponível no seu "site", em acesso livre). Intitulada "Nós somos hóspedes do tempo", a entrevista incide sobre o actual momento, dominado pela pandemia, e o encontro de uma "normalidade" que seja consentânea com o planeta.

Entrevista de linguagem acessível, directa, quase como se estivéssemos a assistir a uma conferência ou aula sobre ética, com recurso a vários pensadores e tirando da História o que podem ser exemplos para o nosso 'saber estar', a conversa aborda a principal questão da nossa actualidade e da nossa preocupação de forma a envolver cada leitor na responsabilidade máxima. Uma leitura que se impõe.

 

Fica o registo de três momentos:

Normalidade - “Não estamos permanentemente preparados para o trágico, ou seja, para a possibilidade de acontecerem coisas terríveis - como acontecem. Temos de amaciar essa aspereza trágica da realidade, construindo a tal ‘normalidade’ (...) uma ficção, uma construção que fazemos para tornar a nossa vida mais suportável e menos angustiada. No fundo, é dar um padrão de certeza que, de facto, a vida não tem.”

Viver - “Os seres humanos não são donos do mundo, não são donos do tempo, não são donos do futuro. Nós somos hóspedes do tempo. A melhor forma de vivermos no tempo é percebermos as nossas limitações, porque nem os reis conseguem desfiar o destino. (...) Temos de aprender a viver aceitando a nossa falta de controle sobre a nossa própria vida. (...) O melhor sentido da vida que podemos retirar daqui é viver com autenticidade, intensidade e verdade o tempo que nos é dado viver.”

Técnica - “A nossa civilização já não acredita na ética, acredita na técnica. Como não queremos mudar o nosso comportamento, queremos mudar a forma como controlamos a realidade. E como é que fazemos isso? Com a tecnologia. E o mercado é a máquina de fazer tecnologia. Inventámos o mercado com as características modernas.”

Planeta (salvar o) - “Neste momento, o principal problema é salvar o palco da História: o planeta. Este é único - não conhecemos outro, nem no sistema solar, nem na galáxia. Tivemos uma sorte da qual não estamos a ser dignos. (...) Um dos grandes males que nos aconteceu foi a arrogância do controle, a arrogância do saber, a arrogância de que nós resolvemos tudo. Não podemos substituir a arrogância de um optimismo idiota por arrogância de um pessimismo sem esperança. Temos de ter um optimismo crítico, um optimismo activo, um optimismo transformador, um optimismo voluntarista. Temos de acreditar no futuro através de actos que acompanhem e realizem as palavras.”

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Grumberg: Um conto para que a vida continue

  

No princípio: “Era uma vez, numa grande floresta, uma pobre lenhadora e um pobre lenhador.” No final, uma centena de páginas adiante: “É esta a única coisa que merece existir, tanto nas histórias como na vida real. O amor, o amor dirigido às crianças, às nossas e às dos outros. O amor que faz com que, apesar de tudo o que existe, e de tudo o que não existe, a vida continue.” Entre estes segmentos decorre o conto A mais preciosa mercadoria, do francês Jean-Claude Grumberg (n. 1939), recentemente editado (Publicações Dom Quixote, 2020), história emocionante em torno de um bebé com destino marcado para Auschwitz, mas que lá não chegou, assim tendo sorte diferente da de seu irmão gémeo e dos seus pais.

Por esta narrativa passam todos os seres que já conhecemos de outras histórias sobre o Holocausto, identificados sobretudo pelo seu aspecto e função, com escassa referência ao nome - mesmo os lenhadores do casal, salvadores da criança, não têm um nome, apesar de apresentarem um perfil de heróis, cruzando-se o leitor com figuras facilmente identificáveis como os “caçadores dos sem-coração”, os “sem-coração”, o “toupeira”, os “guardas das fardas cor de verdete”, os “caras de caveira”, os “soldados de estrela vermelha”, em claras alusões aos perseguidores e perseguidos, ao denunciante e às polícias, aos libertadores. O papel dos nomes e das marcas que revelam o estatuto das personagens é particularmente forte no caso da criança que depois se torna mulher: Rose, nome dado pelos pais, passará a ser “o pequeno embrulho” (quando é recebida pela lenhadora), “preciosa mercadoria” (quando o casal do bosque descobre tratar-se de uma menina) e Maria Tchekolova (quando, adulta, integra o grupo de pioneiros de elite).

De todos os horrores que constituíram os campos de concentração se lê neste livro, ainda que sem minúcia, pois eles são muito mais sugeridos do que relatados, num gesto de economia descritiva e de incentivo à imaginação e reflexão do leitor, havendo um símbolo que atravessa a história: um comboio, cisterna enigmática e tenebrosa, que passa uma vez por dia por uma linha expressamente construída para um destino que ninguém conhece, a não ser os próprios passageiros que o alcançam. É ele o centro de um curto capítulo, próximo do final, forte no que carrega de chamada de atenção e de aviso às consciências: “Os dias sucederam aos dias, os comboios aos comboios. Nos vagões selados agonizava a humanidade. E a humanidade fazia de conta que não sabia.  Passavam e voltavam a passar comboios provenientes de todas as capitais do continente ocupado (...). Passaram e voltaram a passar, noite e dia, dia e noite, perante a indiferença generalizada.” Simultâneamente, assiste o leitor ao processo de transformação do herói, pai de Rose, retrato de sobrevivente - “ex-barbeiro de crânios, ex-estudante de Medicina, ex-pai de família, ex-ser vivo transformado em sombra”.

O narrador, um contador de histórias, interfere com o leitor em variados momentos, levando-o a pensar que este relato tem um sentido, um objectivo, uma intenção, revelada no final do percurso. Acção intensa, com momentos surpreendentes, muito pela dor, às vezes pela alegria, este A mais preciosa mercadoria tem uma ligação afectiva e sofrida com o autor: o avô, cego, e o pai de Grumberg partiram de Drancy (onde funcionou um campo de detenção de judeus, que daqui partiam para a deportação, e de onde também saiu a família de Rose nesta história), de comboio, em Novembro de 1942 e em Março de 1943, respectivamente, para não sobreviverem.

* JRR. "500 Palavras". O Setubalense: nº 456, 2020-09-02, p. 10.