Se é verdade que os jornais narram o mundo por episódios que acrescem à medida da periodicidade, também constituem um documento datado (muitas vezes, fonte única) para que a História possa ser feita em qualquer momento, género de visitação ao passado, ali agindo os protagonistas dos tempos, desde o cidadão comum à mais destacada personalidade.
Se dúvidas existissem, bastaria olharmos o livro Setúbal no Centro do Mundo que acaba de sair, editado pelo jornal O Setubalense a partir de ideia do seu director, trabalho coordenado por Albérico Afonso Costa e devido a uma equipa de vinte colaboradores. O título faz justiça ao papel do jornal e localiza-nos (aos leitores e aos autores): Setúbal como miradouro onde o mundo e o passado podem ser revisitados, perspectiva útil para a imprensa dita regional, que deve noticiar o local sem esquecer o nacional ou o universal pelas implicações destes dois universos nas nossas vidas.
O pretexto do livro, trabalhado por uma equipa com ligações a múltiplas áreas do saber (declaração de interesse: sou um dos membros do grupo), foi o 165º aniversário do título jornalístico O Setubalense, puxado para o mundo da imprensa pelo sadino Almeida Carvalho em 1855, data em que O Setubalense se colou à identidade desta região, muito embora com algumas interrupções.
Estruturado em seis partes, Setúbal no Centro do Mundo sustenta-se em diversos vectores que favorecem o pendor narrativo, por um lado, e o encontro com momentos, acções ou personagens essenciais ao espaço setubalense, por outro. Do ponto de vista dos acontecimentos, estão eles organizados em dois grupos - os que têm a marca local, gerados a partir de Setúbal, e os que assentam em mais vastas latitudes, sejam nacionais ou internacionais. Desde 1855, foram escolhidos 55 factos ocorridos na margem do Sado, em áreas tão diversas quanto o associativismo e as colectividades, o lazer, a educação, o desporto, a política, o mundo do trabalho, a mobilidade, os investimentos em obras e melhoramentos, a industrialização, a afirmação de valores, a cultura, a economia, a religião ou a preocupação ambiental. No plano nacional ou internacional, o destaque caiu sobre 23 eventos, selecionados a partir da segunda fase de publicação do jornal (1916), todos de suma importância para o nosso estado de cidadãos pelas réplicas geradas - a título de exemplo, refiram-se a Revolução Russa, a guerra civil em Espanha, as duas guerras mundiais, a guerra colonial, a europeização do Benfica, as implicações do domínio soviético em diversos países, as visitas papais a Portugal, a entrada na União Europeia, o caso de Timor, o nobelizado Saramago ou o 11 de Setembro, todos eles contados a partir daquilo que O Setubalense escreveu na altura sobre os mesmos, via relato informativo ou texto de opinião.
Não se fazendo a história sem personagens, outra parte da obra é construída sobre perfis de 52 nomes ligados a Setúbal durante este século e meio ou sobre os quais houve eventos neste mesmo tempo. Por aqui passam nomes indiscutivelmente conhecidos e divulgados, associados a outros sobre os quais haverá menos conhecimento - Agostinho da Cruz, Américo Ribeiro, António José Baptista, António Maria Eusébio, Bocage, Francisco Paula Borba ou Jacinto João, entre outros, levam-nos à redescoberta, assim como Agripino Maia, António Joaquim de Melo, Armando de Medeiros, Mendes Dordio, José Augusto Coelho, José Bernardo ou Maria Emília Barradas, entre muitos outros, chamam à descoberta. De personagens se fala também num outro capítulo com notícias avulsas, coleccionadas a partir de 1855, tendo como protagonista o cidadão comum e as suas vivências do quotidiano, imagens do que a cidade foi também nas histórias que muitas vezes se não contam.
Finalmente, o jornal e a sua história, porque o leitor deve conhecer esta figura que lhe traz as notícias e as caras todos os dias, surgem num capítulo que contextualiza o tempo em que o jornal se criou e em que são lembradas as várias fases por que passou (por vezes interrompidas por acontecimentos políticos, razões económicas, situações de contexto) e num outro em que são visitadas algumas páginas que tiveram continuidade (das várias possíveis), normalmente ligadas à cultura ou ao pensamento.
Ao ter este livro uma mensagem de saudação do Presidente da República (e sabemos como Marcelo Rebelo de Sousa sempre foi ligado aos jornais), ele acaba por ser também uma homenagem à própria história da imprensa sadina e a todos aqueles que sistematicamente a fazem para garantir a opinião como um dos elementos-base da democracia. Este é, aliás, um dos aspectos pensado por Viriato Soromenho-Marques no texto introdutório, ao referir a necessidade de o homem “olhar criticamente o quotidiano de uma cidade”, depois de evocar uma interessante e feliz citação hegeliana - “a leitura dos jornais é a oração matinal do homem atento à realidade.”