quinta-feira, 30 de julho de 2020

De Setúbal se vê o mundo e o tempo que o faz



Se é verdade que os jornais narram o mundo por episódios que acrescem à medida da periodicidade, também constituem um documento datado (muitas vezes, fonte única) para que a História possa ser feita em qualquer momento, género de visitação ao passado, ali agindo os protagonistas dos tempos, desde o cidadão comum à mais destacada personalidade.

Se dúvidas existissem, bastaria olharmos o livro Setúbal no Centro do Mundo que acaba de sair, editado pelo jornal O Setubalense a partir de ideia do seu director, trabalho coordenado por Albérico Afonso Costa e devido a uma equipa de vinte colaboradores. O título faz justiça ao papel do jornal e localiza-nos (aos leitores e aos autores): Setúbal como miradouro onde o mundo e o passado podem ser revisitados, perspectiva útil para a imprensa dita regional, que deve noticiar o local sem esquecer o nacional ou o universal pelas implicações destes dois universos nas nossas vidas.

O pretexto do livro, trabalhado por uma equipa com ligações a múltiplas áreas do saber (declaração de interesse: sou um dos membros do grupo), foi o 165º aniversário do título jornalístico O Setubalense, puxado para o mundo da imprensa pelo sadino Almeida Carvalho em 1855, data em que O Setubalense se colou à identidade desta região, muito embora com algumas interrupções.

Estruturado em seis partes, Setúbal no Centro do Mundo sustenta-se em diversos vectores que favorecem o pendor narrativo, por um lado, e o encontro com momentos, acções ou personagens essenciais ao espaço setubalense, por outro. Do ponto de vista dos acontecimentos, estão eles organizados em dois grupos - os que têm a marca local, gerados a partir de Setúbal, e os que assentam em mais vastas latitudes, sejam nacionais ou internacionais. Desde 1855, foram escolhidos 55 factos ocorridos na margem do Sado, em áreas tão diversas quanto o associativismo e as colectividades, o lazer, a educação, o desporto, a política, o mundo do trabalho, a mobilidade, os investimentos em obras e melhoramentos, a industrialização, a afirmação de valores, a cultura, a economia, a religião ou a preocupação ambiental. No plano nacional ou internacional, o destaque caiu sobre 23 eventos, selecionados a partir da segunda fase de publicação do jornal (1916), todos de suma importância para o nosso estado de cidadãos pelas réplicas geradas - a título de exemplo, refiram-se a Revolução Russa, a guerra civil em Espanha, as duas guerras mundiais, a guerra colonial, a europeização do Benfica, as implicações do domínio soviético em diversos países, as visitas papais a Portugal, a entrada na União Europeia, o caso de Timor, o nobelizado Saramago ou o 11 de Setembro, todos eles contados a partir daquilo que O Setubalense escreveu na altura sobre os mesmos, via relato informativo ou texto de opinião.

Não se fazendo a história sem personagens, outra parte da obra é construída sobre perfis de 52 nomes ligados a Setúbal durante este século e meio ou sobre os quais houve eventos neste mesmo tempo. Por aqui passam nomes indiscutivelmente conhecidos e divulgados, associados a outros sobre os quais haverá menos conhecimento - Agostinho da Cruz, Américo Ribeiro, António José Baptista, António Maria Eusébio, Bocage, Francisco Paula Borba ou Jacinto João, entre outros, levam-nos à redescoberta, assim como Agripino Maia, António Joaquim de Melo, Armando de Medeiros, Mendes Dordio, José Augusto Coelho, José Bernardo ou Maria Emília Barradas, entre muitos outros, chamam à descoberta. De personagens se fala também num outro capítulo com notícias avulsas, coleccionadas a partir de 1855, tendo como protagonista o cidadão comum e as suas vivências do quotidiano, imagens do que a cidade foi também nas histórias que muitas vezes se não contam.

Finalmente, o jornal e a sua história, porque o leitor deve conhecer esta figura que lhe traz as notícias e as caras todos os dias, surgem num capítulo que contextualiza o tempo em que o jornal se criou e em que são lembradas as várias fases por que passou (por vezes interrompidas por acontecimentos políticos, razões económicas, situações de contexto) e num outro em que são visitadas algumas páginas que tiveram continuidade (das várias possíveis), normalmente ligadas à cultura ou ao pensamento.

Ao ter este livro uma mensagem de saudação do Presidente da República (e sabemos como Marcelo Rebelo de Sousa sempre foi ligado aos jornais), ele acaba por ser também uma homenagem à própria história da imprensa sadina e a todos aqueles que sistematicamente a fazem para garantir a opinião como um dos elementos-base da democracia. Este é, aliás, um dos aspectos pensado por Viriato Soromenho-Marques no texto introdutório, ao referir a necessidade de o homem “olhar criticamente o quotidiano de uma cidade”, depois de evocar uma interessante e feliz citação hegeliana - “a leitura dos jornais é a oração matinal do homem atento à realidade.”

Setúbal no Centro do Mundo é, pois, um livro para não esquecer - pelo que consegue coligir do muito que nos faz o que somos, pelas histórias que nos (re)conta, pelo contributo para a história local absolutamente interligada com o universal, com a vantagem de todos os contributos serem apresentados em textos curtos e autónomos. Podemos questionar-nos sobre os acontecimentos escolhidos ou as personagens selecionadas... Podemos, claro. Mas esta obra é apenas um olhar plural sobre a vida de uma região, necessariamente com escolhas, sempre discutíveis porque, na nossa livre opinião, conseguimos sempre encontrar um, dois (ou mais) eventos ou uma, duas (ou mais) personagens que deveriam constar. Mas há uma razão de fundo: uma escolha pressupõe os caminhos do essencial, sendo que o mundo se faz com o essencial e com tudo aquilo que o rodeia. Como se costuma dizer: um livro a não perder e a ser visitado sempre que apeteça olhar como chegámos até aqui.
J.R.R. O Setubalense: nº 447, 2020-07-30, pg. 2

quarta-feira, 29 de julho de 2020

O chapéu que defende o descarregador



Foi no início da década de 1980 que uma francesa de Reims e um setubalense dos “Quatro Caminhos” se conheceram em Setúbal. Pretexto: o ofício dele. Passados anos (ela, a caminho do doutoramento; ele, “iletrado”), casaram-se e viveram entre Setúbal e Paris.

Noëlle Perez-Christiaens (1925-2019) e José Miguel da Fonseca (1932-2015) são os autores de Setúbal - ‘Quatro Caminhos’ et le ‘descarregador’ - Petit guide pour découvrir des choses cachées, livro editado pelo Institut Supérieur d’Aplomb (Paris, 1987). Noëlle, etnóloga, correra diversos países por mor da sua investigação - comunidades em que “as pessoas transportam à cabeça, porque, em geral, não sofrem nem das costas nem do pescoço” e, junto do Sado, em Setúbal, encontrou a colónia dos “descarregadores” de peixe, “homens belos como deuses, com uma forma de andar altiva e rápida”, “como árvores tranquilas apesar da brisa marinha”, “humildes”, “simples”. Impressionada, convenceu-os a serem radiografados nas suas posições naturais de trabalho (o primeiro voluntário foi Miguel), usando o característico chapéu de descarregador (utensílio candidato por Setúbal às 7 Maravilhas da Cultura Popular, na modalidade de artefactos), análise que jamais fora feita: “era a primeira vez que radiologistas viam colunas vertebrais em bom estado e as suas formas espantaram-nos”: os descarregadores conservavam o tórax com as características observáveis no “recém-nascido ou nas crianças ainda pequenas, sem as deformações pelas posturas que vão assumindo na escola”.

A investigação levou Noëlle Perez-Christiaens a conhecer as condições de vida desta comunidade (caracterização da cidade, vida na lota, alimentação, tipologia das casas, distracções), guiada por Miguel, havendo referências a outros companheiros de ofício como Ernesto, “Encarnadinho”, Eduardo, “No”, “Piguita”, Silvinho e “Limpinho”, entre outros. Entrar nestas formas de vida justifica o subtítulo escolhido, “pequeno guia para descobrir coisas escondidas”, chamando a atenção dos visitantes, onde quer que eles estejam, para sentirem os valores que o óbvio esconde.

O essencial desta obra visa explicar o contributo do transporte à cabeça para a manutenção da saúde da coluna: “não só o pescoço mobiliza a cabeça para suportar a carga, mas também todos os músculos dorsais, as costas, se ajustam em contra-peso, num movimento ágil e eficaz”, em que a coluna se estira e o tronco se alonga. Nesta acção entra o famoso chapéu do descarregador, utensílio “sagrado”, pois, “sem ele, a vida seria muito mais complicada”, tornando-se “amigo indispensável, que simplifica tudo” naquela profissão. Pela descrição de Noëlle, sobre a cabeça é usado um “lenço”, por cima do qual assenta a “barretina” e, depois, o chapéu (na altura, feito de tecidos grossos bem envolvidos em camada de óleo, hoje construído com outros materiais), circular, com larga aba de forma tubular, resistente à água, aqui se percebendo a sua função primeira: proteger o descarregador da água que escorre das canastras ou das caixas cheias de peixe, que, a partir do barco, transporta à cabeça. Podendo pesar cerca de dois quilos quando seco, o chapéu atinge seis quilos quando molhado, ajudando a suportar cestas que rondam os trinta quilos. Uma segunda função relaciona-se com o proveito próprio do descarregador - o peixe que caia da caixa e se mantenha na aba passa a pertencer-lhe; por outro lado, é também dentro dessas abas que o descarregador prepara o peixe para ser cozinhado. 

Noëlle Perez-Christiaens destacou o que se pode aprender com os descarregadores em termos de posturas corporais e, ao chamar Miguel para co-autor, homenageou este grupo e deu uma prova de gratidão e de amor a quem lhe desvendou este universo.

* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 446, 2020-07-29, pg. 5.


sexta-feira, 24 de julho de 2020

Lenda da Arrábida recontada



Em 1989, o padre Manuel Frango de Sousa (1929-2000) assinava o opúsculo policopiado A Lenda de Santa Maria da Arrábida, revelando as fontes de tal narrativa.

O essencial da lenda (candidata às “7 Maravilhas da Cultura Popular” na modalidade “Lendas e Mitos”) conta-se rápido: por 1215, o mercador Hildebrant navegava de Inglaterra para Lisboa e, próximo do destino, uma tempestade atirava o seu barco para a zona da Arrábida; perante desastre iminente, o inglês correu ao camarote para suplicar protecção a uma imagem de Nossa Senhora que o acompanhava, reparando que a figura desaparecera; desamparada, a tripulação rápido se reanimaria ao avistar grande clarão sobre a serra, tentando seguir nessa direcção; na manhã seguinte, os que conseguiram chegar a terra procuraram na serra o sítio de onde brotara o clarão, aí encontrando a imagem desaparecida; Hildebrant decidiu ficar naquele lugar, construindo uma capela, a Ermida da Memória, e iniciando, com alguns companheiros, vida eremita.

Na sua investigação, Frango de Sousa transcreve vários documentos relacionados com esta lenda, começando por reproduzir, a partir de obra de Frei António da Purificação (1638), testemunho de Hildebrant quanto à fundação da ermida e à obra ali iniciada, datado de Março de 1220, acrescentando Frei António ser Hildebrant um religioso eremita, capelão de Bartolomeu, viajante fidalgo a bordo. Quase um século depois, em 1721, Frei António da Piedade dirá que a embarcação de Hildebrant teria vindo parar a Alportuche, não se desviando, no resto da narrativa, daquilo que a lenda contava. Até aqui, as versões apresentadas não eram alheias a oposições entre ordens religiosas (agostinhos e franciscanos) que tentavam a primazia na ocupação religiosa da Arrábida.

Por 1896, Joaquim Rasteiro (1834-1898) relacionou a vinda de Hildebrant com a fuga de comerciantes de Inglaterra na sequência de acontecimentos políticos no século XIII; na restante narrativa, Rasteiro pincelou a paisagem e os sentimentos algo ao gosto romântico, mantendo a linha dos acontecimentos. O último relato recolhido por Manuel Frango de Sousa reproduz o poema de Arronches Junqueiro (1868-1940) publicado na obra Arrábida, organizada por José Maria da Rosa Albino (1874-1941) em 1939 - com 23 estrofes, o texto anuncia a excepcionalidade da história ao dizer: “Vou contar a santa lenda / desta serra. Ouvi, ouvi! / É tão bela esta legenda, / que outra igual eu nunca vi.” Depois, é a luta do homem contra os elementos, buscando a salvação, e o encontro do sítio onde raiou a “luz branca”, poiso da imagem e futuro local de culto.

Uma das razões para o estudo do padre Manuel Frango de Sousa foi a publicação, em 1988, pelo azeitonense Carlos Alberto Ferreira Júnior (1906-1997), de Lenda da Arrábida, longa narrativa em prosa, que não se afasta do essencial da história, povoando-a de marcas locais e de personagens com profundo sentido religioso e tentando explicar o culto popular sentido em Azeitão relativamente a Nossa Senhora da Arrábida.

Em 2014, nova versão literária da história foi dada a conhecer - Lenda de Nossa Senhora da Arrábida, de Sebastião da Gama (1924-1952), poema de Janeiro de 1942, inédito até ao momento em que a Associação Cultural Sebastião da Gama o divulgou. Contando a aventura de Hildebrant, o texto é sobretudo um poema de fé, em cujo final o homem surge inundado de uma paz interior, possível porque nunca lhe faltou a confiança num Deus próximo.

A lenda da Arrábida, contada a partir da historiografia religiosa, entrou no imaginário popular e na literatura, assim se cumprindo a dinâmica que anima todas as lendas.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 441, 2020-07-22, pg. 14. 

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Quando Luiz Pacheco escreveu a Raposo Nunes



Na bibliografia de Luiz Pacheco (1925-2008) constam vários títulos que reúnem parte da sua epistolografia, área em que foi pródigo, talvez por constituir esse género um espaço de liberdade e de autenticidade (à mistura com alguma teatralidade e com alguma preocupação em deixar obra), valores que o nortearam. Entre 1990 (19 de Dezembro) e 2003 (9 de Abril), em Setúbal, o livreiro e alfarrabista João Carlos Raposo Nunes recebeu 22 missivas do seu amigo Pacheco, conjunto que, em 2005, foi publicado sob o título de Cartas ao Léu, agora republicado (Lisboa: Maldoror, 2020).

Organizador das edições foi António Cândido Franco, que assume este reaparecimento como uma oportunidade para “revisitar” aquilo que considera “o retrato de uma geração fim de século que se reuniu à volta de Raposo Nunes entre 1989 e 2000”. Com efeito, o destinatário destas cartas, responsável pela livraria setubalense Uni-Verso, fomentou, nesse tempo, um grupo que tinha como características mais evidentes o amor ao pensamento e à poesia, muitos dos seus elementos participantes na página “Arca do Verbo”, que Raposo Nunes animou no periódico O Setubalense ao longo de quase uma década (362 números, entre 1988 e 1997), por onde passaram cerca de 350 autores, incluindo Luiz Pacheco (em cinco números).

Este conjunto de dezassete postais e cinco cartas tem a primeira mensagem datada de 1990, estando as outras registadas entre 1999 e 2003. O hiato de nove anos na escrita explica-se por ter sido esse o tempo em que Pacheco viveu entre Setúbal e Palmela, propício a muitos encontros entre os dois amigos; em 1999, ao mudar-se para o Montijo (e, depois, para Lisboa), Pacheco recorreu às cartas para o convívio com o amigo de Setúbal.

Não são longas as comunicações; mas são povoadas por muita gente e por uma forma de pensar que põe a descoberto o espírito do emissor. O fascínio de Pacheco pelo estabelecimento do amigo é vivamente demonstrado logo no postal de 1990: “Isso não é uma livraria; isso não é um alfarrabista; isso não é para vender selos da Indonésia. (...) Isso é o Olimpo.” A partir de 1999, o destinatário é referido como “Raposão”, “Senhor Raposão”, “Poeta editor, livreiro”, “Dr.”, “Sr. Raposão-Mor”, “Dr. Raposão”, “Poeta”, “Poeta e Amigão” e “Mister Raposão”, formas de tratamento que demonstram a proximidade, o afecto, a criatividade e a vivacidade discursiva do subscritor.

Os assuntos abordados são diversos - a vida editorial, pedido de livros, o dinheiro (ou a falta dele), os amigos, a opinião sobre algumas obras, desabafos sobre a vivência nas residências por onde passou -, sempre numa escrita de impulso, rápida, eficaz na brevidade, povoada por um sentido de humor à maneira pachequiana - alternando entre o irónico e o terno, o humano e o satisfeito com a vida.

Esta nova edição de Cartas ao Léu apresenta os textos que constavam na anterior (a correspondência amplamente anotada, alguns ensaios sobre a epistolografia e a crítica de Pacheco e um roteiro cronológico de contextualização, assinados pelo organizador; dois textos de Luiz Pacheco saídos no suplemento “Arca do Verbo”;  e apreciações sobre a obra Raposo Nunes assinadas por António Cabrita, Avelino de Sousa e Agostinho da Silva), acrescidos de dois curtos textos que actualizam a obra em termos de bibliografia aparecida nos 15 anos que medeiam as duas edições e justificam a reedição e de fotografias.

Obra a (re)ler. Sobretudo porque revivemos o tempo feliz (apesar de tudo) que Luiz Pacheco passou, à sua maneira, em Setúbal.
* J.R.R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 436, 2020-07-15, pg. 10.

sábado, 11 de julho de 2020

Maria Albina Bartolomeu: História(s) de família em Azeitão



O livro abre com uma fotografia do casal José dos Santos e Maria José, em jeito de quem inicia a visita a um álbum de família de que eles serão os inauguradores (se é que há fundadores de família...). Parte importante da narrativa vai viver deste par, bisavós de Maria Albina Bartolomeu, que assina Um dia que mudou vidas (Lisboa: Edições Vieira da Silva, 2019), recriação da história de várias gerações a partir de relatos transmitidos pela avó, Susana Martins, e pelo pai, Albino Martins.

O propósito é anunciado em nota prévia - “deixar um testemunho dos nossos antepassados aos meus descendentes” - e reforçado no final, ao fechar a narração (e a escrita): “que esta narrativa sirva para os mais novos nunca esquecerem as suas origens”. Assumido o carácter testemunhal, o leitor entra na história da família, muitas vezes ouvindo a voz da narradora, quer enquanto mediadora entre o passado e o presente, contextualizando muitas vezes os tempos e as suas circunstâncias (por vezes, comentando as diferenças resultantes dos hábitos e das modas), quer como responsável pelo enunciado, visível logo no início do primeiro capítulo - “Começo hoje este texto, dia 5 de Outubro de 2017. Primeiro a ideia surgiu de forma espontânea, mas, ao iniciar o mesmo, lembrei-me de que este dia tinha também muito significado na vida de alguns dos intervenientes nesta pequena biografia de uma família.”

José dos Santos (1858-1930), cognominado “Caramelo”, natural da Anadia, chegou a Azeitão em 1866, depois de um percurso em busca da subsistência e marcado pelos medos e pelas inseguranças, sendo acolhido pelo casal Manuel e Josefa num regime de adopção aceite por ambas as partes. Do casamento de José dos Santos com Maria José nasceram vários filhos, acompanhando o leitor o percurso de Susana (1897-1977), que enviuvou de Francisco (1923) depois de seis anos de casamento, relação de que houve três descendentes, sendo privilegiado o percurso de Albino Xavier (1918-2005), casado com Maria Bárbara (f. 2013), também com três filhos, sendo uma das irmãs Maria Albina (n. 1951), a autora, casada em 1975 com Manuel. Quatro gerações passam nesta história, ainda que haja referências aos pais da primeira geração e aos filhos e netos da última.

As personagens vivem entre Azeitão e Setúbal (com alusões a outros locais da região), espaços em que se cruzam com figuras localmente conhecidas (Alexandre Cardoso, o médico Teixeira, Artur Cardoso, Isabel Chagas, Manuel Pato, Peres Claro, Mestre Oliveira, entre outras). Embora a narrativa não explore as descrições, ao longo das décadas abrangidas, há lugar para contextualizar tempos como a Segunda Grande Guerra, a Guerra Colonial, o do receio causado pela polícia política ou o 25 de Abril. A propósito de alguns episódios, surgem também comentários ao presente (“hoje em dia, teme-se que as nossas crianças fiquem afectadas negativamente pelo facto de ajudarem os pais nas tarefas domésticas”, por exemplo), manifestando-se assim o propósito de testemunhar a diferença e a mudança dos valores.

A história (num texto que mereceria uma revisão cuidada) resume cerca de 150 anos do percurso de uma família (1866-2017, entre a chegada de José a Azeitão e o início da escrita), em que intervieram pessoas que foram heróis das suas vidas, numa narrativa que mostra de que são feitas as identidades e que aqueles com que nos cruzamos no mundo são, todos eles, bom assunto para um relato, pois qualquer vida dá um bom filme...

* J. R. R. "500 Palavras". O Setubalense: nº 431, 2020-07-08, p. 10.



sexta-feira, 3 de julho de 2020

Olga de Moraes Sarmento - Vida feita memória



“Nem só as pessoas que foram ou se julgaram importantes podem escrever as suas Memórias. Podem escrevê-las também - e eu diria até que devem escrevê-las - aquelas que com todo o seu coração amaram a vida, a observaram com intensidade, lhe deram grandes momentos de formosura ou de tristeza. Além disso, segundo tudo indica, vivemos uma hora de transições profundas. Amo demais a beleza para descrer dela - e estou certa de que hoje, amanhã, depois, a vida humana em suas evoluções conservará a beleza, ou a ela voltará.” Assim abre o prefácio do seu livro As minhas memórias (Lisboa: Portugália Editora, 1948) a setubalense Olga de Moraes Sarmento (1881-1948), aí denotando duas questões desde logo importantes - o memorialismo como escrita de uma vida intensamente sentida e como forma de recuperação dos aspectos belos da vida, convindo não esquecer que esta obra foi redigida a partir de Outubro de 1942 (até Janeiro de 1948), vivia a autora nos Estados Unidos, ali exilada por causa do que era a dominação nazi na Europa, particularmente em França, onde Olga de Moraes Sarmento vivera antes (acompanhando a sua amiga Hélène de Zuylen, do ramo Rothschild, na fuga da perseguição nazi).

Nestas memórias, a escritora setubalense conta todo o seu percurso, desde as “recordações dolorosas” da infância (a severidade do pai; o cordeiro de que ela gostava como seu “assassinado para o jantar”, gesto que a levou a chorar “niagaras de lágrimas”; o fascínio sentido pelo avô materno, liberal e amigo de D. Luís, figura marcante na sua personalidade; a indignação sentida quando viu o tio a chicotear uma criada negra) à viuvez a que chegou aos 23 anos (e que manteve até ao final dos seus dias) e ao ambiente de salão e de tertúlia de que se fez grande parte da sua vida, animada por conferências e pela intervenção cultural e cívica.

Nascida em Setúbal, foi Olga de Moraes Sarmento aos quatro meses viver para Elvas na sequência de uma colocação do pai, militar. Por influências familiares e sociais, a sua adesão à monarquia sempre a acompanhou, uma das razões por que passou a viver em França após a implantação do regime republicano em Portugal. Desde aí, correu mundo a fazer conferências. As suas casas em Portugal, em França (em Paris ou em Hendaia) ou nos Estados Unidos sempre albergaram o escol cultural da época e, assim, conviveu com os nomes mais representativos da música, da literatura, da pintura e da política dos vários países por onde passou, fazendo amizade com muitos deles.

Episódios intensos deste volume de memórias são vários, podendo-se destacar: o momento em que, em 1919, assistiu ao desfile da vitória dos aliados em Paris; o discurso feito em Setúbal aquando da oferta ao município de parte dos bens que tinha na casa de Paris (“desenhos de Delacroix e Columbano, autógrafos de Goethe, desenhos de Victor Hugo e inúmeras outras” recordações, biblioteca incluída), decisão tomada em 1938, quando viu que a Europa ia ser dominada pela pilhagem; o momento em que, nos Estados Unidos, participou no entusiasmo pelo fim da Segunda Guerra.

“Tempo passato, tempo amato” foi o subtítulo escolhido para este volume de memórias, nele reflectindo o propósito essencial: evocar o passado, sobretudo nos seus momentos felizes, e assumi-lo. Apesar de alguns momentos de crítica social e política, este registo alinha sobretudo na recordação dos momentos de felicidade e de alegria, de convívio e empenho social, percurso pontuado pelos acontecimentos históricos que selaram os 67 anos da autora.

* "500 Palavras". O Setubalense: nº 426, 2020-07-01, p. 12.