Em 1758, Jerónimo Afonso Botelho, cura da paróquia setubalense de Santa Maria, respondeu ao questionário feito pelo padre Luís Cardoso e, quanto à possibilidade de já ter sido tirado ouro do Sado, não hesitou: “Não sei se das suas areias se tirasse ouro, mas não duvido que o tenham. (...) Se algum poeta quiser dar às águas do Sado o epíteto de douradas, aprovarei (...) porque, em muitos lugares, resplandecem como ouro.” Décadas passariam para que o rio fosse identificado por uma cor, a azul, graças a um poeta aqui chegado para ser médico, Luís Cabral Adão.
Que o rio que desagua em Setúbal pode ser matéria poética, disso não duvidou Bocage quando se despediu do seu “pátrio Sado”, numa das poucas referências à sua terra no muito que escreveu. E foi Bocage a personagem escolhida por Lina Soares para um percurso histórico-cultural nas duas margens do rio, do estuário à nascente, por uma das margens, e daqui até à foz, pela outra, num registo em que não faltam os poemas do vate nem o sentir poético - Elmano e Marília - Uma viagem no Sado (Setúbal: Centro de Estudos Bocageanos, 2019) é a obra que quer “dar a conhecer as histórias reais e lendárias” em torno do rio, evocando um poeta maior e a sua musa Marília.
Esta viagem no rio faz-se sobretudo através de palavras - desde logo para contar a história dos nomes que teve, desde “Callipus” (do tempo dos Romanos) até “Sádão” e, depois, “Sado” - cujo discurso principal compete a Marília, a amada, que vai guiando Bocage, numa sedução perante o que é dado ver e o que é dado contar, num falar de declaração amorosa, havendo do poeta cerca de três dezenas de intervenções em verso em que predomina a área de significação do olhar (avistar, ver, notar, distinguir, divisar). E o apaixonado conhece as pessoas - “Nasceste virado ao rio, mas cedo partiste, não sabes o que sente quem vive nele. Muita gente da cidade que te deu à luz conhece o pão que o diabo amassou, partindo, de noite ainda, nos barcos rumo ao alto-mar para trazê-los de volta carregados de peixe, isto se a sorte estiver do seu lado e os impedir de serem lançados borda fora em águas agitadas!”. E o apaixonado contempla as vistas - na Carrasqueira, no porto palafítico, a recomendação: “Gosto deste sítio, tão calmo e tão bonito! Escuta comigo, amor, os pássaros e o avançar da água do rio, sussurrante. Nunca será perdido o tempo que passarmos, sentados, num destes caminhos de madeira envelhecida, antes de terminarmos a viagem.”
Vai o leitor vendo o mundo pelos olhos de Bocage, que Marília guia, mesmo na parte imaterial das lendas, memórias e histórias, num universo que passa também pelos nomes de referência cultural, uns oriundos das margens, outros correligionários de Bocage, outros ainda marcos do saber português - desde Aleixo Sequeira a Tomás Santos e Silva, desde Ana de Castro Osório a Pedro Nunes, desde Bernardim Ribeiro a Rogério Chora, num conjunto de duas dezenas de nomeações. Ao falar de figuras posteriores a Bocage, Marília faz também uma viagem no tempo, até ao século XXI, como se pretendesse relembrar a eternidade do seu amor...
Pelo meio, há fotografias actuais, constituindo o conjunto um bom pretexto para conhecer a região sadina e a cultura que lhe está ligada, a intenção principal deste livro.
* "500 Palavras". O Setubalense: nº 400, 2020-05-22, pg. 5.
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