quarta-feira, 13 de maio de 2020

A sala de aula: Entre os apeadeiros e a gare central



Uma centena de páginas para vinte cartas entre dois correspondentes, produzidas entre Outubro de um ano e Dezembro do ano seguinte, constroem Autobiografia de uma sala de aula, assinada por Christopher Damien Auretta e João Rodrigo Simões (Lisboa: Edições Colibri, 2020), ambos professores, um no ensino superior, outro no ensino secundário, ambos a trabalhar a sul do Tejo. Como subtítulo, uma indicação compromissiva remete para referências na área da educação e para certa forma de sentir o mundo, vivido entre a totalidade e os diferentes caminhos que nela se percorrem - “Entre Ítaca e Babel com Paulo Freire”.
Começa a primeira carta, subscrita por João: “A manhã, o despertar, o ruído, o autocarro, o metro, o autocarro e o ruído e a rotina e o ruído e o autocarro e o metro e o autocarro e o ruído e a metrópole e o ruído e as Pessoas e os sítios e o ruído e a noite... E Nós? E Eu?” Esta sucessão, cheia de repetições, sintetizando um dia de massificação, só podia terminar por perguntas curtas que vão ao essencial: o lugar do humano para ser, mote para a reflexão sobre a escola no seu quotidiano, na sua dimensão humana entre cidadãos, sujeitos, pessoas.
Estas cartas não são um manifesto, muito embora a palavra por lá passe e o pudessem ser. São a pausa para a revisão e para as consequências desse olhar, necessárias para que o professor se repense e encontre um fio de humanidade no que faz. No limite, seria a reflexão que cada professor deveria fazer, se tivesse (ou quisesse ter) tempo para tal, sem peias, ainda que podendo chegar a diversas conclusões.
Pelas mensagens vai passando o que deveria ser a escola: “motor de curiosidade”, criadora de “laços de solidariedade entre os seres”, tempo para criação nos jovens de uma “relação passional com o conhecimento” e para promover a reflexão e o espírito crítico. Também circulam linhas do que não deve ser a escola: o espaço do “auto-elogio do poder instituído”, o campo de “culpabilização dos alunos”, o território dos “testes contínuos” e da memorização oportunista, o local de “escravização de alunos e docentes”. Para tudo isto, há um argumento de peso, que toca a todos, como refere Christopher, ao concluir uma das missivas: “O que é que está em jogo na Escola? Tudo: os destinos dos jovens e o destino da comunidade humana.”
Saltam para a conversa questões como a pertinência e actualidade dos programas, a ausência de tempos em que “os alunos se deparem com o não-ter-nada-para-fazer”, a “saudável utilização da tecnologia”, o sistema de avaliação (que muitas vezes compromete o futuro e as profissões sonhadas), a relação entre as escolas secundárias e as universidades... numa escola tantas vezes distante da educação “com afectividade e com alegria”.
Defendem os dois autores uma reinvenção da escola, que é “ora um dos apeadeiros na vida dos alunos, ora a gare central na vida dos docentes”. No centro desta visão está a necessidade de se criar e humanizar a sala de aula, porque ela “é também isto: a arte da escuta, a partitura dos afectos, a autobiografia íntima da espécie.” Um livro a ser assumido para que a sala de aula aconteça!
* "500 Palavras". O Setubalense: nº 393, 2020-05-13, pg. 10

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