No prefácio à edição espanhola
de Retalhos da Vida de um Médico, de
Fernando Namora, o crítico madrileno Gregório Marañon
(também ele escritor e médico) escreveu algo como: “O essencial da profissão
médica não é a dor, não é a doença, mas as circunstâncias que a rodeiam. O acto
de curar, teoricamente, as maleitas que se podem curar é um problema de dois e
dois serem quatro que qualquer um poderia aprender em poucos meses. Mas o
importante na Medicina é o halo misterioso de circunstâncias imprevistas que
rodeia a doença, que dependem, umas, da personalidade do doente, e outras, as
mais importantes e numerosas, do seu ambiente”.
Recorro a esta citação para a
associar ao mais recente livro do médico e também escritor Mário da Silva Moura
(n. 1927), Os “Acasos” na Construção da
Vida (Book Link, 2017), que, como subtítulo, na capa, apresenta a
explicação seguinte: “contos médicos que dão sentido à Utopia, à Fé e ao Amor,
como exemplos de Liberdade e Humanidade”. Só esta nota de apresentação envolve
um programa ou uma forma de estar na vida e na medicina, de tal maneira são
referências os valores que a integram, ficando o leitor a pensar que, pelo
caminho das narrativas, eles vão ser o norte e a âncora de personagens e de
práticas.
Os treze contos são
antecedidos de um texto preambular em que o autor descobre a origem dos
escritos, maioritariamente publicados no âmbito de colectâneas de contos
médicos sujeitos ao mote “o lado humano da medicina”, incentivadas pela
Associação Portuguesa dos Médicos de Clínica Geral, pela indústria farmacêutica
e pela editora Padrões Culturais. Mas a vantagem de este texto introdutório é
mais vasta, pois faz considerações sobre o percurso da prática médica do
próprio autor, evolução que, já no final, sintetiza desta maneira: “Em toda
esta minha caminhada na compreensão do adoecer humano, fui avançando da
medicina exclusivamente biológica dos meus tempos de faculdade para os conceitos
mais globais da medicina psicossomática, entrando rapidamente na consideração
das influências do meio no desenvolvimento do ser humano e depois, como é
evidente, no seu adoecer; o que nos levou à medicina biopsicossocial, e daí à
consideração dos processos definidores dos nossos ambientes, bem como da acção
da nossa capacidade criativa.”
Assim mostrado o percurso,
Mário Moura abre depois o pano para que vários dos seus pacientes desfilem no
seu consultório e nas suas vidas, sempre tendo como fundo o cenário de Setúbal,
que conseguimos reconhecer pela paisagem histórica, geográfica e social que nos
vai sendo apresentada, sempre com pinceladas de autenticidade, caucionadas por
referências ao contexto.
Muito embora as personagens
povoem histórias que podem sugerir o domínio do ficcional, a verdade é que
todas elas foram construídas a partir do cruzamento de pessoas com o autor,
assim se estando perante narrativas autobiográficas, algumas bem coladas à
história real de vida, como acontece logo com a primeira, em que perpassa a
história de amor entre o médico e a paciente. Personagem central e permanente
em todos os contos é o médico, sempre o mesmo, como é referido no relato
“História dum crime... já prescrito”, invocando acontecimento de 1954, ao
mencionar “o protagonista destas histórias”. E o médico, muito embora mereça do
narrador o tratamento preferencial na terceira pessoa, assim sugerindo alguma
ficcionalidade, passa também por relatos na primeira pessoa, sendo dado ao
leitor observar a sobreposição dos momentos da vida do autor e dos passos da
narrativa (estudo em Coimbra, chegada a Setúbal, hospitais e serviços em que
trabalhou, prática jornalística, por exemplo - esta junção de percursos poderá
ser mais evidente se o leitor acompanhar a leitura desta obra com outra que
Mário da Silva Moura publicou em 2013, À
Conquista da Liberdade, esta assumidamente autobiográfica).
O último conto, “A história de
um ombro”, resolve definitivamente a questão da autobiografia, recorrendo mesmo
ao autorretrato: invocando a história passada em 1954 relatada no primeiro
conto, é dado o salto para seis décadas depois, em 2014, quando, “ali ao lado,
estava sentado num cadeirão o nosso clínico, agora marido da doente, de cabelo
e barba branca, (...) ainda com algum vigor intelectual, mas algo alquebrado
pelos seus 86 anos de idade”. O tal “velho clínico” aproveitava para rememorar
a sua vida enquanto acompanhava a hospitalização da esposa, momento em que
“seis décadas de vida passaram em revista” com sinal positivo - “Era o saldo
duma vida de paixão e amor. Era o saldo duma vida de trabalho, vivida a dois,
era a visão daquele braço que nascia daquele ombro, segurando ao colo os nossos
cinco filhos”. É um texto em que o narrador se junta com a personagem central,
momento que legitima a autobiografia. E a terminar o conto e o livro, novamente
essa sobreposição, agora justificada pela oferta a “esta mulher a quem dedico
este escrito, vivenciado no quarto dum hospital comigo ao seu lado.”
Ao longo dos contos, Mário
Moura assume muitas vezes também o seu papel de comentador, fazendo
considerações sobre a medicina, sobre as condições de trabalho, sobre a prática
médica, defendendo sempre o interesse pela Medicina Geral e Familiar, revelando
uma preocupação com a evolução na sua área de trabalho e uma atenção permanente
à nobreza do acto médico.
Este livro conjuga, assim, as
histórias dos pacientes e a história do próprio médico, parecendo um hino de
amor à profissão e também uma ode ao amor vivido pelo próprio narrador-autor,
deste modo se justificando a chamada inicial da referência de Marañon e a afirmação dos valores expressos na brevíssima
apresentação do subtítulo da obra. Por outro lado, mesmo tratando-se de um
conjunto de experiências pessoais (e também por isso), este livro afirma-se
como um contributo importante para a história da medicina e da assistência em
Setúbal, quer pelas descrições que faz da vida no Hospital do Espírito Santo,
quer pela formação que reclama para a evolução da medicina local, quer pelos
retratos sociais que dão corpo às suas narrativas.